Havia um costume quase religioso praticado por Olívia, desde
que ela viajou para investir em sua pós-graduação: entrar em contato com
Beatriz, nem que fosse ao menos uma vez ao dia. É verdade que as irmãs não eram
tão próximas, mas a distância contribuiu para que uma sentisse a falta da
outra. Dezoito horas após os últimos acontecimentos, aquela que ficou em sua
terra natal abre o notebook para
tentar uma videochamada. Sem sucesso em sua empreitada, ela comenta sobre o
fato com o amigo, Michel, estando no apartamento do rapaz.
-Três vezes. Foram três vezes, e a Olívia não atende.
-Ligaste para o celular da tua irmã?
-E achas que não tentei? Mas está fora da área de cobertura.
Essa falta de notícias está deixando-me um pouco preocupada.
-Não leves tudo ao extremo, estás parecendo até a própria
Olívia. Na certa, ela deve estar ocupada elaborando a tese de mestrado, ou em
uma reunião com o seu orientador.
-Deve ser...
-Mais tarde, ela ligará e vocês duas conversarão.
-Agora, digas: e a Cissa, hein? Rompeu com o tal varão
valoroso?
-Claro que não- abatida, a jovem sai do quarto e vem até a
sala- Deixes de dizer tolices.
-Até que enfim a libélula resolveu sair do casulo. Era eu capaz
de jurar que tinhas tomado uma caixa inteira de Lexotan!- observa Michel,
enquanto prepara uma playlist para
tocar numa boate lisboeta à noite.
-Tua anedota eu dispenso, está bem? Passei a noite inteira
sem dormir- Cissa senta em seu sofá.
-Amiga, como tu estás abatida... Não imaginei que o Valente
te deixaria a este ponto.
-Mas não vai ser por muito tempo, não, Beatriz. Durante este
tempo, eu pensei bem no que vou fazer.
-Já sei: dispensar o insuportável do saxofonista? Olhes,
querida, se for isto, eu te dou a maior força. Podemos curar a tua fossa
passando uns dias no SPA, programando uma viagem para encontrar a Olívia...
Melhor: vinte dias em Ibiza, que tal?
-Achas que estou mesmo com cabeça para Ibiza, Beatriz?- Cissa
levanta e põe as mãos na cintura- A minha felicidade está aqui e eu vou desfrutar
dela, nem que para isto eu tenha que passar por cima dos princípios do Valente.
-Minha irmã, minha irmã... O que é que tu pretendes com esta
conversa?
-Se o meu amor não é suficiente para que o meu noivo antecipe
o casamento, a solução é outra: apelar para o peso na consciência.
-Do Valente?- Beatriz ri do plano da amiga- Aquele ali é
evangélico, mas sonha em ser canonizado pelo Papa, Clarissa! E do jeito que ele
se mantém imaculado, olhes que ele será capaz de conseguir...
-E quem disse que o Valente não tem uma mancha que seja na
sua vida íntima?
-Calma... O que é que tu sabes, Cissa? Porque até onde tu
contaste para mim e para a Beatriz, o Valente ainda é virgem.
-Por enquanto, sim. Mas não será assim para todo o sempre,
Michel.
-Claro que não. Mesmo porque ele insiste naquela baboseira do
sexo depois do casamento.
-Talvez ele faça antes.
-Não estás tentando dizer que...
-Exatamente. Eu vou levar o Valente para a cama antes do
casamento!
-Cissa, trates de raciocinar. Tudo bem que sexo é bom, mas o
Valente não tem o prazer como foco. Achas mesmo que ele transará contigo sem
sentir culpa alguma, minha amiga?
-O que estou oferecendo é uma faca de dois gumes, e que
certamente vai beneficiar-me. Se o Valente e eu transarmos, ele pode sentir-se
extremamente culpado.
-Daí, ele sequer cogitará olhar para ti novamente.
-Não, Beatriz. Com o remorso de não ter resistido a mim, ele
quererá reparar o mal que a mim fez. Portanto, falará com o Pastor Fabiano e
pedirá que o nosso enlace aconteça o quanto antes, por medo de que descubram
que nós nos entregamos.
-Tudo bem, mas... E se ele não quiser? Hum?- Michel indaga a
irmã- Conheces tão pouco o Valente para sequer cogitar a possibilidade de que
ele pode rejeitar-te para não chegar ao casamento sem a aclamada virgindade?
-Achas que não pensei nisto, Michel? Exatamente por conta desta
hipótese é que a minha ideia é uma verdadeira faca de dois gumes. Valente tem
vinte e dois anos de idade, é ultraconservador em pleno dois mil e vinte,
defende com afinco os valores nos quais acredita, principalmente se estiverem
relacionados à igreja. Duvido muito que
ele negue prazer à mulher que será sua em qualquer que seja a circunstância.
Mas, considerando esta possibilidade e que o nosso compromisso está de pé, nada
mais justo para ele do que adiantar ao máximo, para desfrutar de tudo de bom
que o espera: eu mesma.
-Cissa, não achas que é esforço demais para um evangélico
insuportável que pouco se lixa para os teus desejos sexuais?
-Vejas bem como falas do meu homem, Beatriz.
-Ah, desculpa-me, Cissa, mas terei que concordar com ela. O
Valente pode muito bem perceber que teu interesse por ele é só sexo e desistir
do casamento.
-Como vejo, vocês não conhecem o Valente tão bem como eu. Eu
tenho certeza do desejo que ele sente por mim.
-O que é normal em qualquer relacionamento. Também entendo a
tua vontade de ter a primeira vez com ele, mas... É esforço demais para pouco
resultado. O que tu pensas que vais ganhar transando com um gajo e fazendo com
ele remoa-se de culpa, Clarissa?
-A expulsão do Otávio daquele apartamento.
-Minha irmã, deixes de ser tola. O Valente e o Tato são
amigos, e nada mais do que isto.
-Eu sei, mas o resto do mundo não sabe. E eu não vou deixar
que falem mal do meu noivo por conta da presença infecta daquele homem na casa
do Valente.
-Os comentários que devem fazer a respeito do teu noivo são
incentivados por tu mesma, Cissa. Se não desses tanta importância ao Tato, se
pensasses que ele está morando com o Valente provisoriamente, não haveria
tantas discussões e tampouco mexericos a respeito da sexualidade do teu noivo.
-Escutes o teu irmão. Se o Valente não transou contigo até
agora, por que faria isto sem casar?
-Mas eu vou atiçá-lo até ele não poder resistir mais.
-A virgindade do Valente é uma escolha que ele fez.
-Só que ele escolheu esperar por mim também, Beatriz, e eu
não acho nada justo. Se tenho a certeza de que vamos nos casar e ficar juntos
para toda a vida, eu não vejo motivos para não fazermos sexo. E depois, eu não
consigo entender-te. Não é justamente a senhorita que acha retrógrada esta
castidade, até para um homem?
-Cissa, não é o Valente que está em discussão, e sim o futuro
do teu romance com ele. O que pensas em fazer? Aparecer na casa do rapaz e
dizer “façamos amor” como se ele fosse concordar sem questionamentos?
-Se houver questionamentos, é sinal claro de que amor não há,
pelo menos não da sua parte. Até posso esperar pelo casamento, mas só se ele
adiantar a cerimônia falando com o Fabiano.
-Pareces estar ficando amalucada! Valente está contigo há
quatro anos, por que é que tu não podes esperar mais um pouco, se aguentaste
esta situação até agora?
-Quanto, Michel? Até a honra do meu noivo ser suja por aquele
sujeito mequetrefe que está instalado na sua casa?
-Avalies bem este plano teu, amiga. Vamos supor que tu e
Valente chegueis às vias de fato. Só que, por culpa ou por qualquer outro
motivo, ele desista de ti para sempre. O que pretendes? Jogar aos quatro ventos
que foi para a cama com ele por mera vingança? Cissa, se somente a presença do
Tato naquele apartamento incomoda muita gente, fornicação incomoda muito mais.
-Uau! Falou agora a legítima irmã da Olívia. Por um momento,
pensei que ela não tivesse ido viajar.
-Surpresa por quê? Os valores que ela segue são os mesmos que
os teus, ou não? Tu insististe em levar esta relação adiante, mesmo quando
Olívia e eu aconselhamos a não passares do convívio social. Agora, queres
levá-lo para a cama pressionado?
-Pensam que meu interesse é só sexual, mas não é. Meu sonho é
de casar-me com ele.
-Porque a noite de núpcias está incluída no casamento,
Clarissa! O Valente conhece-te como a palma da mão. Quando ele perceber que não
estás mais com ele por mera curiosidade e sim por uma obsessão desenfreada, ele
te largará. Minha irmã, no dia em que ele perceber que não há mais amor de tua
parte, ele acaba este compromisso!
-E quem és mesmo tu para falares de amor? O homem que finge
diversas conquistas femininas para que ninguém saiba que ele é um enrustido?
Ah, já sei, é o mesmo que dispensou o amante de tanto tempo e que causou um
caos completo na minha vida! Foste tu que trouxeste aquela praga para as nossas
vidas, e só cabe a mim limpar o rastro que vocês deixaram no caminho!
-Agora vais apelar para a agressividade contra o teu próprio
irmão, Clarissa? Já não basta o quanto tu falas mal da decisão do Valente para
a tal de Ednete, que pensa e espalha horrores a respeito do teu noivo?
-Para ver se assim, ele se sente pressionado de uma vez por
todas e casa comigo!
-O que tu esperas com toda esta maledicência que formaste ao
redor do teu noivo? Que ele se sinta tão constrangido a ponto de deixar a
igreja, já que todos agora têm o nome do Valente na boca para falar mal a seu
respeito?- Michel tenta trazer a jovem a si, sem êxito.
-Pouco estou eu importando-me com a igreja. Aliás, eu não me
importo com mais nada. A única coisa que sei é que Valente será meu em todos os
sentidos, e eu estou disposta a passar por cima de quem atravessar o meu
caminho.
Após horas inconsciente, Olívia finalmente desperta, mas
estão seus braços e pernas atados a uma cadeira de ferro, localizada em um
galpão abandonado e cheio de verminoses. A mestranda olha ao redor para ver se
há alguém por perto, até que sua visão turva mostra um homem se aproximando
calmamente.
-Quem está aí?
-Calma, Olívia. Não está me reconhecendo mais?
-Nicolas?
-Acho que exagerei na dose do sonífero, não é? Pensei que
nunca mais você iria acordar... Se bem que seria uma ótima ideia...
-O que foi que fizeste comigo?
-Trouxe você para um lugar agradável, aconchegante e, principalmente,
sem ninguém pra incomodar.
-Foste tu que me trouxeste até aqui?
-Puxa, até que enfim você entendeu. Pensei que teria que
desenhar, e eu não sou tão bom com artes visuais... Sente fome, meu amor?-
retira da sacola que está carregando um prato descartável, com um almoço típico
da região- Trouxe pra você.
-Nicolas, tira-me daqui.
-Mas já? Nós nem começamos a nos divertir... Que coisa chata,
Olívia. Tive que esperar dezoito horas pra que você acordasse e já quer ir
embora? Puxa...
-O que vais fazer comigo? Abusar de mim? Foi para isto que
planejaste meu rapto?
-Se eu estivesse mesmo apaixonado por você, como te fiz
pensar, até poderia te mostrar o que é um homem de verdade. Mas nem pra
despertar desejo em mim você serve.
-Então, o que é que tu queres comigo?- grita, até que Nicolas
joga o prato em seu rosto.
-Pensa que gritando vão te escutar, Olívia? Este lugar aqui
só eu conheço. E quem conheceu além de mim não ficou vivo pra ensinar o caminho
a ninguém. Estamos longe de tudo e de todos, meu amor...
-Não chegues perto de mim. Por que estás fazendo isto?
-Adoro me divertir, Olívia. E chegou a sua vez de se divertir
comigo. Pensa que eu vou te estuprar? Não. Eu já me sinto realizado pela tua cara
de pânico, de cogitar a ideia de que eu te trouxe num lugar deserto pra te
matar. Mas é assim... Satisfeito mesmo, eu não estou... Só vou me dar por
completo quando...
-Quando o quê? Fales, infeliz!
-Pensa bem, porque é uma charada difícil, Olívia. Eu não
quero transar com você à força, ainda não encostei um dedo em você... O que
será que eu posso ter e você ainda não me deu? Quem sabe, uma confissão?
-Tu não me sequestraste para que eu confessasse alguma cousa.
Nunca te fiz nada, Nicolas. Se for verdade, o que eu posso falar para que tu me
deixes sair daqui com vida?
-Dê tempo ao tempo, gatinha. Homem não gosta de mulher
ansiosa, não.
-Só que tu não és um homem. És um monstro.
-Melhor assim. Com ódio mútuo, o nosso jogo fica mais
excitante ainda- Nicolas sai calmamente do galpão.
-Onde vais? Não podes deixar-me aqui sozinha! Voltes aqui,
Nicolas.
-Posso, sim. Por acaso está com medo dos ratos do galpão?
Fica quietinha, assim eles não mordem você- deixa o galpão definitivamente.
-Nicolas, não me deixes aqui sozinha! Tira-me daqui! Socorro!
Alguém me ajuda, pelo amor de Deus! Meu Deus, tira-me daqui! Eu não quero
morrer, meu Deus, não quero...
E na manhã seguinte Kleber recebe a visita de seu irmão,
Hélio, na clínica em que está internado.
-Quanto tempo, hein, meu querido?
-Parece que passei uma vida inteira sem ver o teu rosto.
-O importante é que agora tudo de ruim passou. Como te
sentes?
-Melhor... Quer dizer, ainda agoniado. Posso dizer-te que
estou assim desde a hora em que despertei após a operação.
-O que aconteceu para tu ficares deste jeito, Kleber? Nada te
tira do eixo.
-Hélio, mesmo que tu tenhas feito esforço para que eu não
escutasse cousa alguma, eu ouvi aquilo que confidenciaste à Dora.
-Que parte da confidência em específico, Kleber?
-Toda ela.
-Ah, meu Deus.
-Portanto, tu vais prestar-me um favor.
-O que tu queres, meu irmão?
-Discretamente, entres em contato com o doador misterioso.
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