24/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 25


Havia um costume quase religioso praticado por Olívia, desde que ela viajou para investir em sua pós-graduação: entrar em contato com Beatriz, nem que fosse ao menos uma vez ao dia. É verdade que as irmãs não eram tão próximas, mas a distância contribuiu para que uma sentisse a falta da outra. Dezoito horas após os últimos acontecimentos, aquela que ficou em sua terra natal abre o notebook para tentar uma videochamada. Sem sucesso em sua empreitada, ela comenta sobre o fato com o amigo, Michel, estando no apartamento do rapaz.
-Três vezes. Foram três vezes, e a Olívia não atende.
-Ligaste para o celular da tua irmã?
-E achas que não tentei? Mas está fora da área de cobertura. Essa falta de notícias está deixando-me um pouco preocupada.
-Não leves tudo ao extremo, estás parecendo até a própria Olívia. Na certa, ela deve estar ocupada elaborando a tese de mestrado, ou em uma reunião com o seu orientador.
-Deve ser...
-Mais tarde, ela ligará e vocês duas conversarão.
-Agora, digas: e a Cissa, hein? Rompeu com o tal varão valoroso?
-Claro que não- abatida, a jovem sai do quarto e vem até a sala- Deixes de dizer tolices.
-Até que enfim a libélula resolveu sair do casulo. Era eu capaz de jurar que tinhas tomado uma caixa inteira de Lexotan!- observa Michel, enquanto prepara uma playlist para tocar numa boate lisboeta à noite.
-Tua anedota eu dispenso, está bem? Passei a noite inteira sem dormir- Cissa senta em seu sofá.
-Amiga, como tu estás abatida... Não imaginei que o Valente te deixaria a este ponto.
-Mas não vai ser por muito tempo, não, Beatriz. Durante este tempo, eu pensei bem no que vou fazer.
-Já sei: dispensar o insuportável do saxofonista? Olhes, querida, se for isto, eu te dou a maior força. Podemos curar a tua fossa passando uns dias no SPA, programando uma viagem para encontrar a Olívia... Melhor: vinte dias em Ibiza, que tal?
-Achas que estou mesmo com cabeça para Ibiza, Beatriz?- Cissa levanta e põe as mãos na cintura- A minha felicidade está aqui e eu vou desfrutar dela, nem que para isto eu tenha que passar por cima dos princípios do Valente.
-Minha irmã, minha irmã... O que é que tu pretendes com esta conversa?
-Se o meu amor não é suficiente para que o meu noivo antecipe o casamento, a solução é outra: apelar para o peso na consciência.
-Do Valente?- Beatriz ri do plano da amiga- Aquele ali é evangélico, mas sonha em ser canonizado pelo Papa, Clarissa! E do jeito que ele se mantém imaculado, olhes que ele será capaz de conseguir...
-E quem disse que o Valente não tem uma mancha que seja na sua vida íntima?
-Calma... O que é que tu sabes, Cissa? Porque até onde tu contaste para mim e para a Beatriz, o Valente ainda é virgem.
-Por enquanto, sim. Mas não será assim para todo o sempre, Michel.
-Claro que não. Mesmo porque ele insiste naquela baboseira do sexo depois do casamento.
-Talvez ele faça antes.
-Não estás tentando dizer que...
-Exatamente. Eu vou levar o Valente para a cama antes do casamento!
-Cissa, trates de raciocinar. Tudo bem que sexo é bom, mas o Valente não tem o prazer como foco. Achas mesmo que ele transará contigo sem sentir culpa alguma, minha amiga?
-O que estou oferecendo é uma faca de dois gumes, e que certamente vai beneficiar-me. Se o Valente e eu transarmos, ele pode sentir-se extremamente culpado.
-Daí, ele sequer cogitará olhar para ti novamente.
-Não, Beatriz. Com o remorso de não ter resistido a mim, ele quererá reparar o mal que a mim fez. Portanto, falará com o Pastor Fabiano e pedirá que o nosso enlace aconteça o quanto antes, por medo de que descubram que nós nos entregamos.
-Tudo bem, mas... E se ele não quiser? Hum?- Michel indaga a irmã- Conheces tão pouco o Valente para sequer cogitar a possibilidade de que ele pode rejeitar-te para não chegar ao casamento sem a aclamada virgindade?
-Achas que não pensei nisto, Michel? Exatamente por conta desta hipótese é que a minha ideia é uma verdadeira faca de dois gumes. Valente tem vinte e dois anos de idade, é ultraconservador em pleno dois mil e vinte, defende com afinco os valores nos quais acredita, principalmente se estiverem relacionados à igreja.  Duvido muito que ele negue prazer à mulher que será sua em qualquer que seja a circunstância. Mas, considerando esta possibilidade e que o nosso compromisso está de pé, nada mais justo para ele do que adiantar ao máximo, para desfrutar de tudo de bom que o espera: eu mesma.
-Cissa, não achas que é esforço demais para um evangélico insuportável que pouco se lixa para os teus desejos sexuais?
-Vejas bem como falas do meu homem, Beatriz.
-Ah, desculpa-me, Cissa, mas terei que concordar com ela. O Valente pode muito bem perceber que teu interesse por ele é só sexo e desistir do casamento.
-Como vejo, vocês não conhecem o Valente tão bem como eu. Eu tenho certeza do desejo que ele sente por mim.
-O que é normal em qualquer relacionamento. Também entendo a tua vontade de ter a primeira vez com ele, mas... É esforço demais para pouco resultado. O que tu pensas que vais ganhar transando com um gajo e fazendo com ele remoa-se de culpa, Clarissa?
-A expulsão do Otávio daquele apartamento.
-Minha irmã, deixes de ser tola. O Valente e o Tato são amigos, e nada mais do que isto.
-Eu sei, mas o resto do mundo não sabe. E eu não vou deixar que falem mal do meu noivo por conta da presença infecta daquele homem na casa do Valente.
-Os comentários que devem fazer a respeito do teu noivo são incentivados por tu mesma, Cissa. Se não desses tanta importância ao Tato, se pensasses que ele está morando com o Valente provisoriamente, não haveria tantas discussões e tampouco mexericos a respeito da sexualidade do teu noivo.
-Escutes o teu irmão. Se o Valente não transou contigo até agora, por que faria isto sem casar?
-Mas eu vou atiçá-lo até ele não poder resistir mais.
-A virgindade do Valente é uma escolha que ele fez.
-Só que ele escolheu esperar por mim também, Beatriz, e eu não acho nada justo. Se tenho a certeza de que vamos nos casar e ficar juntos para toda a vida, eu não vejo motivos para não fazermos sexo. E depois, eu não consigo entender-te. Não é justamente a senhorita que acha retrógrada esta castidade, até para um homem?
-Cissa, não é o Valente que está em discussão, e sim o futuro do teu romance com ele. O que pensas em fazer? Aparecer na casa do rapaz e dizer “façamos amor” como se ele fosse concordar sem questionamentos?
-Se houver questionamentos, é sinal claro de que amor não há, pelo menos não da sua parte. Até posso esperar pelo casamento, mas só se ele adiantar a cerimônia falando com o Fabiano.
-Pareces estar ficando amalucada! Valente está contigo há quatro anos, por que é que tu não podes esperar mais um pouco, se aguentaste esta situação até agora?
-Quanto, Michel? Até a honra do meu noivo ser suja por aquele sujeito mequetrefe que está instalado na sua casa?
-Avalies bem este plano teu, amiga. Vamos supor que tu e Valente chegueis às vias de fato. Só que, por culpa ou por qualquer outro motivo, ele desista de ti para sempre. O que pretendes? Jogar aos quatro ventos que foi para a cama com ele por mera vingança? Cissa, se somente a presença do Tato naquele apartamento incomoda muita gente, fornicação incomoda muito mais.
-Uau! Falou agora a legítima irmã da Olívia. Por um momento, pensei que ela não tivesse ido viajar.
-Surpresa por quê? Os valores que ela segue são os mesmos que os teus, ou não? Tu insististe em levar esta relação adiante, mesmo quando Olívia e eu aconselhamos a não passares do convívio social. Agora, queres levá-lo para a cama pressionado?
-Pensam que meu interesse é só sexual, mas não é. Meu sonho é de casar-me com ele.
-Porque a noite de núpcias está incluída no casamento, Clarissa! O Valente conhece-te como a palma da mão. Quando ele perceber que não estás mais com ele por mera curiosidade e sim por uma obsessão desenfreada, ele te largará. Minha irmã, no dia em que ele perceber que não há mais amor de tua parte, ele acaba este compromisso!
-E quem és mesmo tu para falares de amor? O homem que finge diversas conquistas femininas para que ninguém saiba que ele é um enrustido? Ah, já sei, é o mesmo que dispensou o amante de tanto tempo e que causou um caos completo na minha vida! Foste tu que trouxeste aquela praga para as nossas vidas, e só cabe a mim limpar o rastro que vocês deixaram no caminho!
-Agora vais apelar para a agressividade contra o teu próprio irmão, Clarissa? Já não basta o quanto tu falas mal da decisão do Valente para a tal de Ednete, que pensa e espalha horrores a respeito do teu noivo?
-Para ver se assim, ele se sente pressionado de uma vez por todas e casa comigo!
-O que tu esperas com toda esta maledicência que formaste ao redor do teu noivo? Que ele se sinta tão constrangido a ponto de deixar a igreja, já que todos agora têm o nome do Valente na boca para falar mal a seu respeito?- Michel tenta trazer a jovem a si, sem êxito.
-Pouco estou eu importando-me com a igreja. Aliás, eu não me importo com mais nada. A única coisa que sei é que Valente será meu em todos os sentidos, e eu estou disposta a passar por cima de quem atravessar o meu caminho.
Após horas inconsciente, Olívia finalmente desperta, mas estão seus braços e pernas atados a uma cadeira de ferro, localizada em um galpão abandonado e cheio de verminoses. A mestranda olha ao redor para ver se há alguém por perto, até que sua visão turva mostra um homem se aproximando calmamente.
-Quem está aí?
-Calma, Olívia. Não está me reconhecendo mais?
-Nicolas?
-Acho que exagerei na dose do sonífero, não é? Pensei que nunca mais você iria acordar... Se bem que seria uma ótima ideia...
-O que foi que fizeste comigo?
-Trouxe você para um lugar agradável, aconchegante e, principalmente, sem ninguém pra incomodar.
-Foste tu que me trouxeste até aqui?
-Puxa, até que enfim você entendeu. Pensei que teria que desenhar, e eu não sou tão bom com artes visuais... Sente fome, meu amor?- retira da sacola que está carregando um prato descartável, com um almoço típico da região- Trouxe pra você.
-Nicolas, tira-me daqui.
-Mas já? Nós nem começamos a nos divertir... Que coisa chata, Olívia. Tive que esperar dezoito horas pra que você acordasse e já quer ir embora? Puxa...
-O que vais fazer comigo? Abusar de mim? Foi para isto que planejaste meu rapto?
-Se eu estivesse mesmo apaixonado por você, como te fiz pensar, até poderia te mostrar o que é um homem de verdade. Mas nem pra despertar desejo em mim você serve.
-Então, o que é que tu queres comigo?- grita, até que Nicolas joga o prato em seu rosto.
-Pensa que gritando vão te escutar, Olívia? Este lugar aqui só eu conheço. E quem conheceu além de mim não ficou vivo pra ensinar o caminho a ninguém. Estamos longe de tudo e de todos, meu amor...
-Não chegues perto de mim. Por que estás fazendo isto?
-Adoro me divertir, Olívia. E chegou a sua vez de se divertir comigo. Pensa que eu vou te estuprar? Não. Eu já me sinto realizado pela tua cara de pânico, de cogitar a ideia de que eu te trouxe num lugar deserto pra te matar. Mas é assim... Satisfeito mesmo, eu não estou... Só vou me dar por completo quando...
-Quando o quê? Fales, infeliz!
-Pensa bem, porque é uma charada difícil, Olívia. Eu não quero transar com você à força, ainda não encostei um dedo em você... O que será que eu posso ter e você ainda não me deu? Quem sabe, uma confissão?
-Tu não me sequestraste para que eu confessasse alguma cousa. Nunca te fiz nada, Nicolas. Se for verdade, o que eu posso falar para que tu me deixes sair daqui com vida?
-Dê tempo ao tempo, gatinha. Homem não gosta de mulher ansiosa, não.
-Só que tu não és um homem. És um monstro.
-Melhor assim. Com ódio mútuo, o nosso jogo fica mais excitante ainda- Nicolas sai calmamente do galpão.
-Onde vais? Não podes deixar-me aqui sozinha! Voltes aqui, Nicolas.
-Posso, sim. Por acaso está com medo dos ratos do galpão? Fica quietinha, assim eles não mordem você- deixa o galpão definitivamente.
-Nicolas, não me deixes aqui sozinha! Tira-me daqui! Socorro! Alguém me ajuda, pelo amor de Deus! Meu Deus, tira-me daqui! Eu não quero morrer, meu Deus, não quero...
E na manhã seguinte Kleber recebe a visita de seu irmão, Hélio, na clínica em que está internado.
-Quanto tempo, hein, meu querido?
-Parece que passei uma vida inteira sem ver o teu rosto.
-O importante é que agora tudo de ruim passou. Como te sentes?
-Melhor... Quer dizer, ainda agoniado. Posso dizer-te que estou assim desde a hora em que despertei após a operação.
-O que aconteceu para tu ficares deste jeito, Kleber? Nada te tira do eixo.
-Hélio, mesmo que tu tenhas feito esforço para que eu não escutasse cousa alguma, eu ouvi aquilo que confidenciaste à Dora.
-Que parte da confidência em específico, Kleber?
-Toda ela.
-Ah, meu Deus.
-Portanto, tu vais prestar-me um favor.
-O que tu queres, meu irmão?
-Discretamente, entres em contato com o doador misterioso.

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