09/03/2018

SOBREVIDA/ CENA 6

Sabrina entra no auditório acompanhada de Montserrat e fica apavorada.
SABRINA: Por que as luzes estão apagadas?
MONTSERRAT: Certamente não querem que ninguém saiba o que está acontecendo aqui.
SABRINA: Quem são aquelas pessoas que estão cobrindo-se com um capuz?
MONTSERRAT: São José Fernando e Alejandra. Mas vejo outras duas pessoas também.
SABRINA: Amiga, será que este é um culto dedicado às forças ocultas?
MONTSERRAT: Não sei, mas se ele tocar naquela mulher, a única que ele verá é a força do meu braço na sua cara!
SABRINA: O melhor a fazer é nos disfarçarmos também.
MONTSERRAT: Tens razão, Sabrina. Não estou gostando nada, nem do que estou vendo, nem do que estou imaginando.
SABRINA: Umbadabada, badabá, badaué! Undegundê, degundê, degundê...
MONTSERRAT: Mas o que pensas que estás fazendo, Sabrina?
SABRINA: Falando coisas incompreensíveis. Não é isto que sempre fazem nessas ocasiões?
MONTSERRAT: Querida, tu estás completamente louca. Isto é um meme brasileiro.
SABRINA: E desde quando memes são compreensíveis?
MONTSERRAT: Tenho uma ideia melhor: nós sentamos e esperamos José Fernando cair em desgraça para eu trucidá-lo.
SABRINA: E se nos perguntarem alguma coisa a respeito do que estamos fazendo aqui?
MONTSERRAT: Concordamos com tudo. Exceto se disserem que dois mil e dezoito só tem ótimos candidatos à presidência.
SEBASTIÁN: Silêncio! Os novos integrantes são bem-vindos e podem sentar-se, mas só falarão quando a nossa seita permitir.
MONTSERRAT: Seita?
SEBASTIÁN: A seita que dói menos! Este espaço é para todos que sofrem deste grave problema e não sabem como liquidá-lo.
MONTSERRAT: De que problema ele está falando?
SEBASTIÁN: Da universidade!
MONTSERRAT: O homem escuta tudo, melhor nós não sussurrarmos.
SABRINA: Melhor mesmo.
SEBASTIÁN: Correligionários, vamos começar a compartilhar nossos problemas acadêmicos com nossos amigos. Antes de mais nada, eu quero contar uma vitória pessoal: eu estou há dois dias, cinco horas, vinte minutos e quarenta e sete segundos acessando o Sistema de Irritação Garantida, o Siga. E sem problemas no servidor.
Todos aplaudem.
SEBASTIÁN: Quem gostaria de falar?
ALEJANDRA: Eu. Eu quero dar meu depoimento, Mestre Sebastián.
SABRINA: A tarada!
MONTSERRAT: Calada, Sabrina!
ALEJANDRA: Minha confissão é muito difícil de ser feita, mas é necessária. Eu sinto muitos calores.
MONTSERRAT: Percebe-se.
ALEJANDRA: Há anos, o prédio do meu curso comprou dois condicionadores de ar. Mas o governo não concedeu a licitação para a instalação do equipamento. Derretemos dentro daquela sala, Mestre. Já vi pessoas desmaiarem duas vezes na faculdade: a primeira na fila do Restaurante Universitário e a segunda na minha sala. A vontade que eu tenho é de assistir à aula nua! Mas minha graduação está no fim, e eu tenho medo de ser jubilada por atentado ao pudor. Por causa disso, eu não pude tirar a roupa durante os protestos no impeachment.
SEBASTIÁN: Não digas. Queres dizer que apoiaste a entrada de Michel Temer na presidência da república?
ALEJANDRA O impeachment do reitor, não é, meu filho?
SEBASTIÁN: Comoventes tuas palavras. Próximo frustrado!
PABLO: Eu quero falar. Na verdade, eu fui obrigado a falar anteriormente.
SEBASTIÁN: Fiques à vontade. Não como a tua colega gostaria de ficar, mas podes.
PABLO: Desde que eu comecei o segundo período, eu passei a ser usuário de um entorpecente perigoso.
SEBASTIÁN: Qual entorpecente, correligionário?
PABLO: Café.
SEBASTIÁN: Mas café não é droga, rapaz!
PABLO: Por ingestão venosa, é! Certa vez, o ônibus em que eu estava foi parado por uma blitz, e os policiais revistaram apenas os homens.
SEBASTIÁN: Algo foi encontrado em tua mochila, Pablo?
PABLO: Um pacote de Melita! Muito suspeito!
SEBASTIÁN: Tu estás exagerando em teu desespero...
PABLO: Eu? Não é você que tem que ficar acordado vinte e quatro horas por dia. A minha vida social acabou antes mesmo de existir! A última vez em que eu fui flagrado em público, estava cantando “Gaivota”.
SEBASTIÁN: Por que isto?
SABRINA: É o tema de abertura de “Café com aroma de mulher”. Eu vi a novela!
PABLO: Também tive que vender meu apartamento. Com o dinheiro, paguei as multas que a biblioteca me cobrava.
SEBASTIÁN: Agora me veio à memória: tu disseste que estava num ônibus e ela foi parado numa blitz. Mas não dirigias um carro?
PABLO: Dei fim a ele. Vendi para pagar as fotocópias das quais ainda precisarei até o final do curso. Eu tenho um professor que pediu-me para ler cem páginas do seu livro para a prova. Coloquei fita isolante nos olhos para mantê-los abertos... Porque sou malandro!
SEBASTIÁN: Queres desabafar com o grupo aqui presente, José Fernando?
JOSÉ FERNANDO: Sim, Mestre. Possuo uma espécie de fetiche acadêmico.
SEBASTIÁN: Mas o que estás dizendo?
JOSÉ FERNANDO: Quando eu volto para casa e deito-me na cama, não consigo dormir.
SEBASTIÁN: Sim, e o que tu fazes?
JOSÉ FERNANDO: Ponho “Sábado”, de José Augusto, para tocar até que eu durma.
SABRINA: Ah! Eu estou passada, chocada!
SEBASTIÁN: Desde quando este comportamento tem a ver com a universidade?

JOSÉ FERNANDO: Todas as vezes que eu a ouço, lembro-me de que sábado é o único dia em que posso dormir até mais tarde e não preciso preocupar-me com as aulas. Não tenho mais tempo para mim, para minha namorada, para nada. Porque quando chega o domingo, e eu recordo que o dia seguinte será dentro do Barro/ Macaxeira (Várzea), que o professor fará uma chamada durante duas horas...  Outro dia ele me perguntou se eu sabia quanto era a raiz quadrada de 1. Quando eu respondi que era 1, ele falou que era para eu desenvolver a resposta! Como, Mestre? A impressão que eu tenho é de que o mundo caminhou e eu congelei dentro de uma sala de aula. Sem contar na especialização, no mestrado e no doutorado!  As pessoas assinam seus nomes na ata e correm para o bar. Já eu... Corro para o manicômio! Isto é vida que se leve, Mestre? Isto é vida?

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