25/08/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 12


Valente não se contém e surpreende com um beijo apaixonado, aparecendo atrás de Cissa quando ela pinta o próprio quarto com uma tinta verde-limão. O varão valoroso continua a todo vapor, revezando suas noites entre Recifeeling e Comportas do Céu. Obviamente, o beijo não contém nada além do que ele tem como permitido. Mas Cissa adora.
-Como é bom ficar contigo hoje, ajudando-me na reforma do quarto.
-Falei com o Hélio e ele liberou a mim. Não te deixarias fazer essa pintura sozinha.
-Ainda bem que tu estás aqui. Se eu dependesse do meu irmão para comprar uma lata de tinta, seria capaz de aparecer aqui com um frasco de guache!
-Ah, não fales assim do Michel. Tudo bem que ele é um tanto doidivanas, mas ele te ama, Cissa.
-Disto, eu tenho certeza. Como também do teu amor... – suspira fortemente.
-Que carinha é esta?
-Quatro anos vivendo o sonho de estar ao teu lado. Às vezes eu tenho medo de que tudo acabe.
-Vai depender de ti, Clarissa. Queres que tudo acabe?
-Nunca- beija o saxofonista.
-Todo melado... Preciso é de um bom banho.
-Tomes aqui mesmo.
-Não precisa, Cissa.
-Qual o problema? Eu não vou espiar pela porta do banheiro.
-Amor, eu não disse isto- fica envergonhado.
-Brincadeira, querido!- ri bastante- Se tu conseguisses ver a tua cara quando eu falei em tomar banho aqui...
-Apesar de a minha roupa estar lamentável, a solução é sair assim mesmo- corre para a cozinha, onde lava o rosto salpicado de tinta- Tenho que ir.
-Fiques mais um poucochinho, Valente...
-Ensaio, meu amor. Aproveitar que o Recifeeling está com um movimento tranquilo a esta hora e vou escolher o repertório. Fiques com Deus- beija a namorada, sorridente.
-Amém. Mais tarde eu passo lá para te ver.
Beatriz aparece à porta quando Valente a abre.
-Oi, Beatriz. A paz do Senhor para ti.
-Oi, Valente, tudo bem?- cumprimenta o saxofonista com um beijo no rosto.
-Tudo. Tenho que ir. Tchau, amor!- acena para Clissa.
-Beijo, lindo.
-Teu namorado não perde a mania de tentar evangelizar a mim... Atrapalhei alguma cousa?
-Por que a pergunta?
-Tua cara de insatisfação.
-Beatriz, eu adoro o Valente. Juro, eu amo mesmo. Mas este modo correto de portar-se, às vezes, me enoja.
-Tens aguentado o comportamento imutável do teu namorado há quatro anos, qual é o problema?
-Amiga, ser certinho não é sinônimo de gente interessante.
-Hum, parece que um casal que eu conheço acabou de cair na rotina...
-O Valente parece apaixonar-se por mim a cada dia. Disso eu não tenho dúvidas.
-A questão, Clarissa, é que ele não tem nada de você. Fica inacreditável até de ver o relacionamento dos dois durar tanto.
-Justamente. Eu investi nesse namoro porque ele nada tinha a ver comigo. O que eu achava que tinha a ver comigo não dava certo. Sinal de que eu estava errada, e envolvida com quem não acrescentava em nada a minha vida.
-Uma curiosidade que eu sempre quis perguntar, mas nunca tive a audácia: como ele é... Naquelas ocasiões?
-Beatriz, estás falando de quê? De sexo? Queres saber se transamos?
-Transam???
-Claro que não, não é? Não vamos ter nada até o nosso casamento.
-Imaginei que fosse assim. Mas, Cissa, é difícil de engolir.
-O quê?
-Meu bem, se tu fosses uma virgenzinha desamparada, eu até entendo que sexo não fosse lá uma questão fundamental para o namoro, mas não. Tu tens uma vida sexual.
-Tinha. Abdiquei dela, por enquanto.
-Voto de castidade? Agora conseguiste surpreender-me!
-Qual o problema, Beatriz? É a minha natureza.
-É uma imposição que te fizeram, colocaram para ti um modelo de regras. E o Valente fica alimentando isto.
-Alimenta, sim, e eu agradeço por isso.
-E como tu consegues? Não sentes falta?
-Beatriz, isto não é pergunta que se faça.
-Faço, sim. Sou tua amiga, quero saber.
-Bem, eu... Sinto, sim. E mais do que isso: sinto vontade de ir para a cama com ele o quanto antes.
-O que te impede?
-O casamento.
-Mas vocês ainda nem são noivos, podem ter que esperar mais ainda.
-Vamos suportar essa provação, então.
-Francamente, eu não entendo. Quer dizer, até compreendo que tu e Valente queiram casar, mas sem sexo é demais.
-Quem não entende as tuas neuras com o assunto sou eu.
-Dizem que se guardam um para o outro. Se é assim, melhor seria transar de uma vez.
-Enlouqueceste?
-O que fiz eu agora? Só estou usando a lógica. Tu pretendes manter relações apenas com ele; então, transes. Ninguém está a trair-se.
-Se fosse tão fácil assim...
-Qual a tua dificuldade?
-Atende pelo nome de Valente Valença. Mesmo eu sabendo que ele também deseja a mim, e que não está interessado em nenhuma outra pessoa, ele nunca aceitaria.
-Vamos analisar friamente os fatos: insististe bastante para ter ao seu lado um gajo que não tinha nada a ver contigo, mas que segundo a tua concepção de desiludida romântica, completava-te.
-E...
-E acho que depois de quatro anos, um casal tem cumplicidade o suficiente para falar abertamente sobre sexo. A cama para a qual queres levar teu namorado não vai receber ninguém além dele. Só não faças o papel da hipócrita.
-Acho curiosos os valores que ele tem... Passou boa parte da vida num orfanato, mas é como se tivesse sido criado dentro de uma igreja o tempo todo.
-O que prova por A mais B que teu saxofonista tem mais vocação para padre do que para qualquer outro ofício. Mas Valente não namora sozinho, e sim você. Se estás insatisfeita, fales com ele.
-Sabes o pior de tudo? É manter um relacionamento com um homem tão lindo quanto ele... E não poder usufruir.
-Caso ele faça objeção, amiga, melhor trocar.
-Beatriz, não vou tratar ninguém feito objeto.
-Credo, falas cada vez mais parecida com a Olívia.
-Porque ela tem razão. E quanto mais o tempo passa, mais eu fico arrependida das vezes que não dei ouvidos à tua irmã.
-Vamos ver até quando a tua fantasia de convertida consegue divertir-te.
Beatriz não crê nem um pouco na aceitação do evangelho por parte de Cissa, e continua sua amiga porque entendia o interesse escuso na conversão da moça: a conquista de Valente. Em algum momento, ela espera pela revelação de um caráter que em nada foi modificado. Se a moça realmente não sofreu mudanças, o tempo dirá.
A bem da verdade, a passagem de tempo somente serviu para mostrar que tudo, ainda que provisoriamente, permanecia igual. Todos seguiam acreditando que a vida que levavam estava próxima do que foi por eles idealizado. Olívia, por exemplo, foi se apaixonando mais e mais pela graduação que escolheu, e agora estava formada. Depois de toda a emoção vivida em sua colação de grau, bastam poucos dias apara que ela reencontre o caridoso professor, que tanto lhe deu incentivo, nos corredores da Universidade de Lisboa. Cumprimentam-se com um abraço.
-Como é que o senhor está?
-Abarrotado de trabalho, Olívia. E tu estás fazendo o quê na universidade?
-Vim à coordenação pegar o diploma provisório. Disseram-me que eu deveria esperar cinco dias úteis.
-Agora é desfrutar das férias, depois de tanto tempo.
-Ou procurar emprego, que é o que a realidade reserva a mim.
-Desististe de fazer uma pós-graduação no exterior?
-O senhor falou disso há um tempo. Mas eu não sei...
-Penses na sua área, no que tu tens vontade de investir. Acredito em você, na sua capacidade. Além do mais, mesmo que depois tu se canses e não sintas mais interesse na área, poderás se dedicar a tempo de obter um título de mestre. Isto conta bastante num currículo, Olívia. As chances de emprego aumentam consideravelmente quando o teu histórico é visto.
Segura de si na maioria das vezes, Olívia foi tomada de dúvidas devido à proposta do professor. Protelaria sua procura por emprego, o item mais procurado dos últimos tempos? Pouco demoraria para a graduada em Medicina dar uma resposta ao ilustre docente. Só que, enquanto ela pensa, outros dilemas vão acontecendo, e até mais graves do que a opção por um mestrado no exterior. É o caso de Michel, o irmão de Cissa, que mal sabe o que de tão grave acarretará, já que a sua vida será uma das menos afetadas. Futuro cunhado de Valente, e já cunhado em decorrência da consideração de um casamento sonhado por quem conhece o casal, de valoroso este não tem nada, exceto o afeto sincero pela irmã.
Voltando ao seu bagunçado apartamento após tocar em uma boate- por conta da pintura realizada por Cissa e Valente- ele se atira contra o sofá cinza da sala de estar e retira o celular do bolso. Liga para Tato, com o intento de marcar um encontro, mas como o telefone deste está em modo silencioso, e ele está prestes a sair com Dora num automóvel que havia ganhado de Kleber há quase dois anos, a chamada não é atendida.
O DJ liga mais uma vez, não obtendo sucesso em sua empreitada. Kleber percebe a movimentação excessiva e pergunta:
-Mas que correria toda é esta?
-Aproveitarei a liquidação que terá lá no Amoreiras- Dora esclarece, referindo-se a um dos shoppings center locais- E levarei Tato junto, porque também quero comprar umas peças novas para ele.
-Que pensamento de terceiro mundo é este, mulher? Quem te vê assim, até é capaz de pensar que não tens dinheiro para comprar um mísero ovo!
-Uma mulher sempre procura economizar, Kleber. Para as minhas compras serem exorbitantes, somente se forem presentes de aniversário.
-E o senhor, Pai? Por que ficaste hoje em casa?
-A agência está em reforma, lembras? A solução é ficar em casa e resolver as pendências por aqui mesmo.
-E quando vai ficar pronta, meu amor?
-Dentro de uns três dias.
-Então, já vamos- Dora beija o marido- Prometemos não demorar.
-Por sorte, eu não confio em ti quando munida de um cartão de crédito.
-Tolinho... – a esposa está ansiosa com as compras.
-A bênção, Pai- Tato beija a mão de Kleber.
-Deus te abençoe, meu filho.
Assim que saem Dora e Tato para retirar o carro deste da garagem, o agente de viagens sobe ao quarto para fazer alguns pagamentos através de seu notebook. Mas a porta do quarto do filho está aberta, e a chave do veículo está sobre uma moderna escrivaninha que havia comprado. Kleber vê o molho e pensa em correr para entregar, até que a tela do celular de seu filho liga a luz. Junto ao tal molho, é inevitável que o pai veja o aparelho acender o seu visor. A inscrição “mensagem de Michel” aparece no telefone.
-Não é possível que ele demore tanto para ler meu texto.
Não há demora, é verdade, mas Kleber está de posse do aparelho e lê o que Michel acaba de enviar. Tato e Dora chegam à garagem, já aberta, e ao encostar-se ao carro, o filho do casal põe as mãos nos bolsos da calça jeans que traja.
-O que foi, Tato?
-A chave do carro, Mãe. Deixei lá em cima, no quarto. Vou lá dentro buscar.
-Esperes, querido, eu vou contigo.
Kleber lê o texto enviado por Michel andando pela casa, parando no alto da escada. Tato e Dora encontram o patriarca dos Lacerda Goulart atordoado, e ele só consegue olhar para o celular. Acreditando que se trata de um mau súbito, o rapaz corre para auxiliar o pai, que desce às escadas esquivando-se do contato físico com o filho.
-O que é que o senhor tem?
-Nojo! Nojo de você, desgraçado! Infeliz! Não encoste tuas mãos sobre mim nunca mais!
-Kleber! O que te deu pra falar assim com o nosso filho?
-“Nosso filho”? Esse... – leva as mãos à boca- Tu não és nada meu! Não passas de uma farsa!
-Pai, o que está acontecendo?
-Isto cá!- mostra o celular- Permites que eu leia, na frente da tua mãe, o belo texto de amor que tu recebeste do Michel?
-Michel? Quem é Michel, Tato?
-Deixes que eu te responda, Isadora: o amante do teu filho! Do desavergonhado do Otávio!

18/08/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 11


-Como assim, Cissa? Pelo tal de “varão valoroso”?- após dezessete segundos de silêncio, ouve-se a manifestação de Beatriz- Que critério passaste a utilizar para interessar-se por um homem?
-Beatriz, por favor! Não vês que Cissa está falando seriamente?
-Por isto mesmo, Olívia. Por isto mesmo que pretendo dar uma bela de uma chacoalhada nesta garota! Estás nos afirmando que gostas daquele gajo?
-O que eu disse foi que acredito estar apaixonada. Mas não tenho a dimensão do que sinto exatamente, e não citei por quem nutro o que sinto.
-Obviamente, falas do tal Valente Valença. Desde que o saxofonista sem eira nem beira surgiu na tua vida, só falas sobre ele, de como ele é simpático, acessível, bonito...
-Não te entendo. Sinceramente, Beatriz, compreendo-te cada vez menos! Não foste tu a minha maior incentivadora? Aquela que tantas vezes disse que eu deveria mudar de ares, investir uma nova paixão?
-Com alguém que valha a pena, e não com um tipo livre de qualquer perspectiva! Se eu soubesse que tu cogitarias sair com um pé-rapado, teria sugerido o celibato!
-Meu Deus, parece que esta conversa que estamos tendo não é real. Como é possível que vocês não se deem conta dos absurdos que estão falando? Clarissa, não podes usar o tal de Vicente como válvula de escape para o seu sofrimento!
-Valente- Cissa corrige a amiga.
-Por que não pode? Fico estupefata com teus juízos de valor, sempre empurrados goela abaixo para nós todos! Não foi isto que o canalha do Ricardo fez com a nossa amiga? O problema é o saxofonista ser tudo aquilo que a Cissa abomina!
-O problema com Ricardo ela resolve com ele! Ela não precisa envolver uma terceira pessoa nesta história, ele não te fez nada!
-Calma, Olívia, eu não quero esquecer o Ricardo ou me vingar dele envolvendo-me com o Valente. Apenas estou dando a mim mesma o direito de começar uma nova história. E é inegável o quanto Valente faz com eu me sinta atraída.
-Vamos aos fatos, Cissa: tu não suportas crentes, que por natureza já são insuportáveis, e ainda por cima não trocou meia dúzia de palavras com ele. Falou-te coisas bonitas? Minha querida, não nasceste ontem para não saber que é parte da natureza masculina.
-O que tu pretendes? Frequentar a igreja com o intuito de conquistá-lo? E se conseguires, farás o quê, Clarissa? Vais descartar o rapaz por já ter conseguido o que querias? Por já ter cansado-se dele?
-Olívia, pares de levar as coisas a ferro e a fogo. Não quero um envolvimento com Valente por conta do que aconteceu com o Ricardo, nem com qualquer outro homem! O que eu quero é construir uma história com alguém que me interessa, qual é a tempestade que vocês fazem nisso?
-O Valente é uma pessoa, Clarissa! Tem sentimentos como tu!
-Pares de tomar as dores do saxofonista pedinte, Olívia!
-Sabes de quem é a culpa disso, não, Beatriz? Tua! Se não tivesses ficado no ouvido da Cissa...
-Olhem só, não finjam que eu não estou aqui. Eu sei bem o que quero para a minha vida de agora em diante!
-Às custas da infelicidade de outra pessoa?
-Olívia, eu gosto do Valente de verdade.
-Assim, sem mais nem menos? Não faz nem um mês que tu conheceste esse gajo, Cissa!
-Nisto, eu terei que concordar com a Olívia. Queres um compromisso sério com um homem do qual não sabes quase nada, só que ele veio das ruas?
-O que eu sei é mais do que suficiente: Valente é alguém que vale a pena. De longe, podemos ver que ele não tem a certeza do quanto é especial, mas é. Sem contar na fé que ele tem. Quase uma coisa inabalável!
-Eu não acredito que eu estou ouvindo isto- Beatriz fica nervosa e anda em círculos- Não és tu, Clarissa. Não podes ser tu!
-Fabiano, que é o pastor da igreja, disse que no próximo sábado terá um culto para casais à beira do mar. E convidou Valente para tocar durante a pregação. Talvez resida nesta noite a oportunidade para dizer tudo que eu quero viver ao lado dele.
-Por que tu não pões o joelho no chão e pedes orientação, como todo cristão faz? Ou achas que ele te aceitará sem colocar a igreja no meio? Um relacionamento amoroso evangélico nunca é a dois, ao que me consta. É você, o homem que tu ama e o Espírito Santo...
-Não sejas ridícula, Olívia! Esta conversa mole de protestante que se guarda e que...
-Já não basta viveres na promiscuidade, agora és mal-educada também? Se não tens nada de importante para falar, deixa que eu coloco um pingo de juízo na cabeça de Clarissa e calas essa boca de uma vez! Cissa, ponhas a mão na consciência. Se usares este rapaz sem estar, de fato, amando-lhe, os dois vão pagar caro pela tua teimosia.
-Conheces-me tão bem e acreditas que sou mulher de desistir, Olívia?
-O que mais jogarás fora quando teu passatempo perder a graça? A comunhão com todos? A dignidade, que já parece ter ido ao espaço? É tão difícil assim valorizar-se sem precisar acabar com a vida de um homem?
-Minha decisão já está tomada. Vou declarar-me ao Valente. E depois, se ele quiser ter-me como namorada, veremos. Só que, calada diante do que eu vivo por ele, eu não fico mais.
Olívia leva as mãos à cabeça, e Beatriz não está nem um pouco satisfeita com o possível envolvimento entre os jovens, mas por razões diferentes de sua irmã. A teimosia acaba por criar uma tensão naquele apartamento, menor que a de Joana, certa de que a situação enfrentada pelo orfanato será difícil de ser revertida. Pela manhã, após suas orações, a madre encontra o mesmo professor que aconselhou Olívia a investir em uma pós-graduação no exterior. Chega a surpreender o quão cedo ele faz a visita ao Lar do Menino Tobias, caminhando vagarosamente pelos corredores quase vazios.
-Posso ajudá-lo?- Joana desconfia do misterioso homem.
-Sim. Estou procurando a Madre Joana. Soube que posso encontrá-la aqui.
-Sou eu mesma, senhor. Em que posso ser útil?
-Vim aqui para entregar-lhe isto- abre a carteira e entrega um cheque.
-Do que se trata?
-Fiquei sabendo que o orfanato tem passado por sérias dificuldades financeiras. Então, eu resolvi contribuir para que, de alguma forma, possamos reverter o quadro e ele não chegue a fechar. Pode abrir.
Joana encontra uma quantia de noventa mil euros preenchida no cheque dado pelo professor.
-Isto é uma brincadeira?
-Longe de mim, Madre.
-Não pode ser... É muito mais do que precisamos ou imaginamos!
-Sei que farão bom uso deste dinheiro. E posso ver o quanto as crianças são amadas neste lugar.
-Desculpe, senhor, eu não sei nem o que dizer.
-Não precisas dizer nada. Só entregue o cheque ao diretor. Ele saberá administrar.
-Que Deus abençoe ao senhor. Eu... Eu posso trocar um abraço contigo?
-Calma, Madre, não precisa ficar assim.
-Mas é que é inacreditável. Ontem mesmo, eu estava desesperada porque o diretor disse que teríamos que dispensar algumas crianças para contenção das dívidas.
-Ainda bem que não foi necessário nem anunciar aos meninos. Entrariam em pânico só de imaginar.
-Como o senhor ficou sabendo do problema do orfanato?
-Digamos que eu sempre ajudo quando sei que precisam de ajuda.
-Eu não tenho como agradecer-te, nem como recompensar-te, mas eu sei que Deus não vai deixar o senhor um só momento. Ele vai honrar-te pelo que fizeste a essas crianças- Joana, em prantos, abraça o professor- Obrigada! Muito obrigada!
-Terei que ir, tenho um compromisso.
-Mas o teu nome? Não vais dizer o teu nome?
-Alguém precisa de mim neste momento. Mas vá. Vá e entregue o cheque ao diretor.
Joana sai correndo, e o professor volta para a universidade. Na frente do local, passa por Tato e Michel, que estão conversando após muitos dias sem se verem.
-Por que tanto tempo sem entrar em contato comigo?
-Sabes que é tudo uma novidade pra mim, Michel.
-Entendo. Mas eu não quero que este afastamento perdure para sempre.
-Nem eu. Só que precisas me entender. Por mais que eu queira repetir tudo que vivido naquela noite, e eu quero repetir, não vou correr o risco de tudo vir abaixo.
-Tudo bem, Tato. Eu também não quero prejudicar a você. Tanto é que marquei este encontro num terreno neutro.
-Não tão neutro assim. Esqueceste que toda faculdade é movimentada?
-Só que ninguém nos conhece. Fiques tranquilo, eu não quero expor o que sentimos e não vou fazê-lo, exceto se tu me pedires.
-Ouças-me: o que estamos vivendo pode muito bem ser vivido. Não pretendo, e nem vou, causar uma indisposição com a minha família.
-Tato, não quero que faças isso. Se é de teu agrado que vivamos no anonimato, que fiquemos, então. O que eu te peço é que não interrompas nada, nem transformes nada em lembranças.
-Deixes que eu te diga uma coisa: aquela viagem ensinou-me a passar os meus dias sem preocupações com o futuro. Já que estamos tão felizes, Michel, passemos a desfrutar do presente- os rapazes apertam as mãos- Prometas para mim somente uma coisa.
-O que tu queres?
-Mesmo que tudo que passamos e ainda passaremos venha à tona, não me deixes seguir qualquer caminho sem ti.
-Isto nem precisaria ser pedido. Atenderei-te sempre.
A preocupação de Michel naquele instante era saber do futuro, sem ter a mais remota ideia do que faria. Iniciativa era o que não faltava para a sua irmã, que na noite daquele sábado, caminhava pela praia. E não havia nada que remetesse à reflexão do que Beatriz e Olívia disseram, e sim a declaração que pretendia fazer a Valente. A oportunidade era à beira do mar, onde a Comportas do Céu realizava um culto exclusivamente para casais, mas que contou com a participação de Valente porque... Bem, primeiro porque deve haver um pretexto que possibilite o encontro entre os dois jovens; segundo porque Fabiano e Nete viram de longe o potencial que todos nós conhecemos, e acreditaram que algumas canções de fundo embalariam bem o aspecto romântico da ocasião.
-Ouçam com atenção, irmãos: marido e mulher não são para ficarem unidos somente quando ambas as partes estão em plena felicidade. Casais só podem ser chamados de verdadeiros casais quando um se mostra disposto a acompanhar o outro no sofrimento, quando o marido sente que a dor de sua esposa não pode ser só dela, e sim dele também. O nome disso é empatia, irmãos. Em todos os aspectos da nossa vida, não somente focando no lado amoroso, precisamos ser dotados do sentimento empático. Varoas guerreiras, não se envolvam na esperança de que a vida será o mesmo mar de rosas da lua de mel, porque não é.
-Como é, Fabiano?
-Deixa-me terminar a pregação, abençoada...
-Cuidado com o que vais falar, não... – Nete lança mão de um timbre ameaçador.
-Uma vida a dois não é fácil, mas os casais na terra formaram-se justamente para este fim: não ficarem sozinhos. Hoje em dia, muitos casam pensando na própria separação e afirmam: “se der certo, deu certo. Se não funcionou, separamo-nos e tentaremos com outras pessoas”. Mas na prática não deve ser assim. Um homem que desiste na primeira tentativa não pode ser considerado como tal. Além dele, aquela com quem ele divide a vida também será afetada por qualquer decisão que ele se atrever a tomar- Cissa vem chegando exatamente naquele instante- Nas discussões mais banais, tantas coisas são jogadas ao vento, e muitos tentam se defender ou atingir as parceiras, afirmando que elas tentam colocar palavras torpes em suas bocas... Ei!- a interjeição é proferida em alto e bom som, chamando a atenção dos transeuntes de um movimentado asfalto- Já que tens tantas palavras a serem ditas em meio a uma acalorada discussão, comecem a pedir ajuda Àquele que pode todas as coisas, inclusive salvar o vosso matrimônio!
-Glórias a Deus- alguns dos fiéis, mais exaltados, procuram honrar a Deus, subentendido no discurso de Fabiano.
-Queres deixar tuas esposas por conta de problemas que podem ser resolvidos? Ouçam-me com atenção, meus amados: o possível é responsabilidade sua e de sua mulher, apenas o impossível é uma especialidade de Deus. Conversem, dialoguem, busquem, sentem-se para colocar os anseios e as angústias de um casal! Se nem assim conseguirem salvar vossos casamentos, abram espaço para o agir Daquele que morreu na cruz para salvar aos pecadores. Só peço que não desistam, sabem por qual razão? Porque o Noivo Fiel, sabendo que há no altar uma noiva tão fiel quanto, não a deixa esperando. Sejam tão fieis quanto o Noivo. Sejam fiéis aos princípios cristãos que tanto defendem. Sejam igreja!
Fabiano recebe uma salva de palmas, sendo que Nete mostra-se comovida diante da pregação do marido. Por um breve momento, olha ao lado e acena para Cissa, já de olho no saxofonista, que se coloca atrás do pastor para orar junto com ele, durante a bênção de encerramento do culto. Ouve-se, antes da iniciativa, a glorificação do conjunto de cônjuges.
-Aleluia!
-Exaltado seja o Teu nome, Senhor!
-Toda honra, toda glória e todo louvor sejam dados a Ti, Jesus.
-Santo, santo és Tu, Senhor dos exércitos...
-Nosso Deus e nosso Pai- Fabiano toma a palavra novamente e ora pelos presentes no local, uma tenda improvisada contendo o saxofone de Valente, as Bíblias de Nete e de seu esposo e um pequeno púlpito- Cubras com Tua inigualável bênção os filhos teus que aqui estão. Despede-nos em paz e segurança, e com a certeza de que a Tua palavra, nesta noite, fez morada em nossos corações para não mais sair deles. Assim, eu Te agradeço por tudo que Tens feito, e que a graça maravilhosa do Senhor, nosso Deus, o Seu amor e as doces consolações do Santo Espírito estejam conosco agora e para todo o sempre...
-Amém- os membros completam a despedida.
Lentamente, Cissa vem caminhando pela areia, na mesma velocidade em que Nete aproxima-se do mesmo alvo que a intempestiva jovem: Valente Valença. Antes, um elogio vindo do marido.
-Parece que tocaste melhor do que nos dias normais.
-Imagina, Padre... Digo, Pastor...
-Sem problemas. Fico feliz de teres resolvido a tua situação financeira.
-Devo agradecer não só a Deus, mas ao senhor também, porque sei que oraste por mim, tanto quanto eu mesmo.
-Que é isso? Não tens nada que me agradecer. Vou recolher algumas das cadeiras e carregar até o caminhão que me emprestaram. Podes vir comigo?
-Claro, só deixa-me guardar o saxofone.
-Também fico muito feliz por teus novos rumos, varão valoroso- Nete dirige-se ao músico quando seu marido está afastado.
-Bem como eu supunha: a alcunha pegou como coqueluche...
-Mas voltando ao que eu dizia, Davi...
-Valente!
-Ora, pois que seja! Ainda bem que conseguiste um emprego fixo. Ao menos não terás desculpas para permaneceres naquele antro de perdição chamado Lisboa Noite.
-A senhora não é aquele canal internacional, o tal de Globo que é retransmitido por aqui, mas o “Vale a Pena Ver de Novo” é seu programa favorito porque...
-Digamos que tua personalidade é muito atraente aos olhos de qualquer ser humano. Foste um gajo sem grandes ambições, conquistaste admiradores de teu trabalho mesmo ganhando pouquíssimo, arranjaste um emprego tão rapidamente que, se estivesse nos Estados Unidos, chamariam a ti para assumir a pasta do Ministério da Fazenda. Realmente, és um homem pitoresco.
-Seja lá o que este adjetivo signifique, muito obrigado. Mas ainda prefiro o “varão valoroso”.
-Tua ascensão foi tão rápida que estou plenamente desconfiada de que tu fazes parte dos Iluminatti.
-Hã?
-Esqueças. Mas deves ter notado que muitos querem saber tuas curiosidades.
-Pensei que o apelido já explicasse tudo sobre mim, ou pelo menos fizesse uma alusão a quem eu sou.
-Mas não faz!
-Esta criatura não vai parar de falar?- Cissa pensa alto, sem ser ouvida.
-Já leste toda a Bíblia Sagrada em um ano?
-Acho que não conseguiria, é um texto muito extenso e...
-Vais ter que começar com isto. E, a propósito, qual é o teu livro bíblico preferido?
-Bom, por conta do nome do lugar onde eu sempre vivi, e também da história do próprio, o meu favorito é o livro de Tobias.
-Vais ter que parar com isto! Com licença.
-Ela não te dá trégua mesmo, não?
-Cissa, o que estás fazendo aqui? Este culto foi para casais.
-Quem sabe isto é um sinal de que formaremos um, já que tu também estás aqui?- a indagação cora Valente- Estava passeando e deparei-me com o culto, mas nem veio à minha cabeça que ele seria realizado aqui- mente.
-Desculpe, mas tenho te achado meio preocupada. O que houve?
-É que... Estive pensando justamente em você quando te vi aqui.
-Em mim? Falei alguma coisa de errado na igreja?
-Impossível, tu pareces ser perfeito!
-Isto, sim, é impossível.
-Não consegues ver?
-O quê, Cissa?
-Duas coisas: o quanto tu amas a Deus e o quanto eu amo-te?
-Não podes estar falando sério.  Veja-me, Cissa! O que podes ver num gajo como eu?
-O que o teu coração puro não te permite ver. Valente... - aproxima-se com uma voz suave.
-Tu conheceste a mim há pouquíssimo tempo, como podes estar apaixonada?
-Eu não sei, juro que não sei. Se soubesse, daria a minha vida em troca da resposta.
-Podes até gostar de mim, mas não a ponto de querer ficar comigo. Tua natureza é outra. Queres alguém que se assemelhe a ti.
-Ou que se diferencie tanto a ponto de levar-me para mais perto de Deus. O meu coração sabe que és tu, e pulsa só de pensar em ti. Sei também que ficas louco para correr até mim, esperando que eu diga o que estás ouvindo agora. Dá-me uma chance, Valente. Dês a nós dois uma chance.

11/08/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 10


-Que belíssimo par vocês formam... Deveriam investir numa relação- dispara Nete, a despeito das feições de constrangimento geradas por Cissa e Valente- Mas, se quiserem assistir ao culto, que já começou, podem parar com firulas e entrarem na igreja.
-Obrigada, irmã.
-Com licença- a esposa de Fabiano volta ao templo.
-Se ela está dizendo, quem somos nós para discordar?
-Tem razão. Falamos tanto e acabamos nos atrasando ainda mais para o culto.
-Refiro-me ao outro ponto em que ela tocou.
-Menina, tu não sabes o que dizes...
-Mas sei perfeitamente o que sinto. E deduzo o que possas sentir através de teu olhar, que faz questão de revelar que, a mim, tu não és indiferente.
-Coloques teus joelhos no chão. E depois conversamos- Valente responde à indireta, entrando rapidamente na Comportas para que não notem o quanto ele está envaidecido com as investidas da jovem. Imaginem: uma figura de beleza física ímpar, interessada num homem que não acreditava sequer em si próprio. Mas o jogo não estava ganho para Cissa e, no fundo, o saxofonista pensava que deveria seguir o próprio conselho para não sofrer mais danos emocionais. Ainda mais agora que os trilhos parecem estar na direção das realizações profissionais.
Se as aspirações financeiras daquele que é conhecido pela alcunha de “varão valoroso” estavam mais próximas de abandonar o campo das suposições, o mesmo não se podia dizer do Lar do Menino Tobias. Há anos, o orfanato vem sofrendo com problemas de gestão, não solucionados nem mesmo pelo rígido diretor que foi implacável ao defender a saída de Valente. No momento, ele tem um diálogo com Joana, mesmo a hora estando avançada.
-Parece que nossos mantenedores foram tragados pela terra. Vivemos tempos difíceis outras vezes, mas nunca como agora.
-Se continuarmos no vermelho, não dará nem para pagar a conta de luz do orfanato.
-O que o senhor sugere?
-Teremos que enxugar o quadro de internos daqui.
-E para onde eles vão?
-E eu é quem sei? Entramos em contato com o Conselho Tutelar e enviaremos alguns dos meninos para reformatórios localizados em outras regiões. Os mais novos serão a prioridade de permanência.
-Vai dar tudo certo. Eu vou rezar e pedir a Deus que venha uma solução o mais rápido possível.
-Não faças apenas isso. Ajas também. Amanhã a senhora vai tratar de reunir as outras freiras e começar a divulgar os números de nossa conta corrente para quem quiser nos ajudar com doações financeiras, ou mesmo com mantimentos.
-Vais ver que não será necessário tirar ninguém daqui. Acredites no poder de Deus, que não vai deixar nenhum dos meninos desamparado.
-Vou mostrar à senhora no que acredito: números. As dívidas são frequentes e urgentes, Madre. Portanto, trate de mexer-se. Milagres até podem acontecer, mas não colocarão nossas contas no azul apenas porque tu queres.
-Tens razão, senhor; Nossa situação melhorará porque Deus quer. Terei de me recolher agora. Passes muito bem.
Joana vai ao quarto e, de joelhos, ora para que Deus tome uma providência favorável ao Lar do Menino Tobias. O Seu nome, agora cada vez mais, não sai da boca da Madre. Uma verdadeira essência adoradora também pode ser encontrada na figura da evangélica Olívia, com mais motivos para agradecer do que pedidos. A gratidão é vista por Beatriz como algo ultrajante pois, segundo ela, sua irmã insiste em impor uma fé que ela faz questão de não possuir.
-Sabes que eu estava conversando sobre o assalto com meu professor? Ele concordou comigo: disse que foi um verdadeiro milagre de Deus.
-Olívia, pelo amor deste Deus que tu tanto amas, pares de falar sobre isso. Não houve milagre nenhum porque não houve assalto. Chega de firulas, Olívia!
-Se tu quiseres ser incrédula, eu não posso mudar a tua visão. Mas eu sei o que vi e o que vivi, Beatriz. E se não entenderes que aquilo foi fruto de uma epifania...
-Era só o que me faltava. Não basta ser crente: ainda tem que usar vocábulos que a maioria desconhece o significado. Eu posso aguentar isto, Cissa?- a moça está distraída- Clarissa?
-Não estavas nos ouvindo?
-Desculpem-me, é que estava eu voando alto.
-Queres nossa ajuda?
-Quero, sim, Olívia. Mas não é exatamente um conselho: prefiro que prestem atenção ao que vou contar para vocês. Só que isto não pode sair das paredes deste apartamento, pelo menos por enquanto.
-Quanto suspense, amiga... Digas: o que tens?
-Beatriz, é inacreditável, mas eu posso dizer com segurança.
-Fales de uma vez, Cissa. O que tanto queres nos contar?
Após um longo suspiro, a garota toma ímpeto e satisfaz a curiosidade das amigas.
-Acho que acabei por apaixonar-me.
Tanto Olívia quanto a impetuosa Beatriz mantêm-se em absoluto silêncio após a revelação daquela madrugada no apartamento da Família Gusmão Alencar.

04/08/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 9


Foram mais nove músicas, cada uma delas com o mesmo encanto capaz de atingir ao público como se fosse a primeira interpretada por Valente. Ao fim, trinta segundos de aplausos, e o saxofonista encerrava sua saga eclética noturna sob assobios e algumas lágrimas de emoção vertidas por clientes de Hélio. Avesso a detalhes provenientes da vida alheia, Kleber vê-se na obrigação de perguntar ao irmão:
-Onde tu lapidaste esta pedra preciosa?
-Gostaste?
-Se eu gostei? Hélio, esse gajo é um verdadeiro fenômeno! Deves ter gasto bastante para trazê-lo até aqui!
-Conta-nos, Hélio: de que local conheces esse saxofonista?
-Isto é o mais inacreditável, Dora: fui falar com alguns fornecedores no centro e deparei-me com Valente, numa praça, reunindo pessoas para expor sua arte. Logo percebi o potencial que ele possui e prontamente fiz uma proposta de emprego.
-Por sorte, agora é ele um patrimônio do Recifeeling. Até nome de artista tem o dito cujo: Valente Valença.
-Não querem cumprimentá-lo?
-Com certeza- Dora fica entusiasmada.
-Valente, podes vir aqui um momento?- o jovem atende ao pedido de Hélio.
-Pois não, senhor?
-Já te disse que não sou tão velho quanto aparento. Esqueçamos as formalidades. Eu quero te apresentar duas pessoas bastante especiais para mim: este é meu irmão, Kleber...
-Prazer- aperta a mão do dono da agência de viagens.
-E esta é a minha cunhada, Isadora.
-Muito prazer, senhora.
-O prazer é todo meu, Valente.
-Gajo, já aprendeste saxofone ainda usando fraldas? Tu és um talento inquestionável!
-Mais ou menos isto. Aprendi logo quando criança. Algumas noções eu tive sendo autodidata, o resto a Madre Joana fez questão de ensinar.
-Esta mulher, então, deve ser praticamente o Kenny G de saias!- brinca Kleber.
-Kenny G? Desculpe, é que não sou muito adepto de músicos internacionais.
-Kenny G é uma referência dentre os maiores saxofonistas do mundo- Hélio explica ao órfão- Pensei que, por tuas habilidades, foste identificá-lo.
-Podem até não acreditar, mas até poucos dias atrás, eu passei os anos da minha vida como interno em um orfanato cristão.
-Como não perceber? Tens não somente o domínio da técnica, mas também uma pureza difícil de ser encontrada dentre uma humanidade cada vez menos amistosa- elogia Dora.
-Foi lá que aprendi o pouco que sei. A madre tocava o saxofone durante as quermesses e eventos para angariar fundos para o lar. De tanto observar, acabei me interessando.
-Mas estás tão habituado com o instrumento que pareces nem ter comprado recentemente...
-Ah, é que era este o saxofone que ela usava nas festas do orfanato. Quando eu completei dezoito anos, há uns dias, ela me presenteou com ele, mas eu já era habituado a tocá-lo. É como se já fosse uma parte de mim. Só não é mais inseparável de mim do que Deus.
-Por que tu não jantas conosco, Valente?
-Eu? Não, senhora, eu não vou atrapalhar o jantar de vocês.
-São meus convidados, Valente, fique à vontade. E um pedido da minha família é uma ordem- acena para a recepcionista do restaurante- Alessandra: peça para um dos garçons providenciar mais um lugar à nossa mesa.
-Sim, senhor.
-Começou angariando elogios justamente da minha família? Fazes valer mesmo a contratação, hein, gajo?
-Obrigado, se... Obrigado, Hélio- corrige-se.
-Mas confesso-te que algumas canções eu não conhecia. De que repertório tu as tiraste?- Kleber demonstra curiosidade.
-Bem, por ser cria de um local extremamente religioso, podes imaginar que há limitações no meu conhecimento musical.
-Viram só como Valente consegue envolver a todos? Um repertório católico e que consegue alcance tanto quanto os demais fados? E eu o vi ensaiar toda a tarde, até parecia habituado às músicas.
-Confesso que em “Canção do mar” houve um poucochinho de dificuldade para mim... Tentei dar ao máximo uma beleza a algo que, por si só, já tem beleza.
-Kleber, meu querido, tu tens toda razão. Viemos na esperança de ver um músico numa apresentação comum e vimos uma pedra preciosa lapidada.
-É uma pena que nosso filho não tenha vindo conosco, Dora. São de exemplos como Valente que o Otávio precisa cercar-se...
Tato preferiu resguardar-se de programas noturnos, após o incidente da madrugada que o envolvia, junto com Michel. Em contrapartida, Beatriz vai ao shopping, numa rara ocasião em que está acompanhada de Olívia. Terminadas as compras, a irmã desbocada chama um táxi.
-E então?
-O motorista está a caminho, disse que dentro de cinco minutos nos apanhará aqui no ponto- garante Beatriz, ao lado de mais duas mulheres.
-Mesmo sendo feriado, não deveríamos ter demorado tanto tempo lá dentro.
-Darling, uma mulher precavida é aquela que não repete roupa em ocasiões festivas.
-Beatriz, para quê tantos vestidos? Seu corpo é um só! E você frequenta festas a cada dois dias, porque fazes revezamentos com suas ressacas monumentais.
-Por isso gosto mais da companhia da Cissa. Ela, ao menos, apoia a mim.
-A Cissa faz vista grossa às tuas sandices. O que é um erro, pois tu és péssima companhia para qualquer um. Aproveitando que estamos aqui, eu queria pedir-te um favor: pares de influenciar a Cissa a vingar-se do Ricardo.
-Preferes vê-las sofrer a superar esse amor mal resolvido que ela insiste em viver?
-Promiscuidade não é válvula de escape para ninguém, Beatriz.
-Discordo. E se isto for motivo de orgulho, eu me orgulho bastante de não ser de um homem só.
-Não tens ideia do que falas...
-Sei, sim. E posso muito bem me responsabilizar acerca do que faço também. Minha vocação nunca foi para noviça.
Correndo, aparece numa moto um bandido, com o rosto coberto por um capacete preto, anunciando um assalto.
-O celular, moça- aponta uma arma à primeira moça, vestida de amarelo- Agora!
-Não faças nada comigo, por favor!
-Agora!- sem saída, a moça entrega- Tu também. O que tiveres dentro da bolsa, rápido!
-O que é isso?- Beatriz não esconde o susto.
-Ai, meu Deus... – pensa Olívia.
-Podes levar, é tudo que eu tenho- a segunda garota entrega o objeto. Quando Olívia tira do bolso a sua carteira, acreditando ser a última a ser abordada, espanta-se ao ver o meliante sequer dirigir-se à Beatriz.
-Não pode ser! Não pode ser! Alguém chame a polícia! Houve um assalto aqui!- Beatriz sinaliza para os passageiros de um ponto de ônibus ampararem as duas moças, bastante nervosas. Olívia levanta as mãos para o alto.
-Obrigado, Senhor! Obrigado pelo livramento que deste a mim e à minha irmã!
-Enlouqueceste? Um marginal aparece armado no ponto de táxi, rouba as moças e tu levantas as mãos para o céu? Ficaste maluca?
-O inimigo não tocou num só fio de cabelo nosso. Isto é motivo para agradecer ao Senhor.
Incomodada com as palavras da irmã, Beatriz acena para um carro policial que passa pela rua, e indica a direção seguida pelo ladrão sobre a moto. Por conta do susto, a jovem mal consegue dormir. Bem ao contrário de Valente, que levanta cedo para visitar o Lar do Menino Tobias. O motivo é cumprir a promessa de não deixar Joana sem notícias.
-Isto tudo em tão pouco tempo, meu filho?
-Nem eu mesmo consigo acreditar no que aconteceu, Madre.
-Mas tu achas que este teu patrão vai pagar o suficiente para te tirar lá do... De onde tu dormes?
-Mesmo que ele não pague tão alto, creio que consigo alugar um quarto numa pousada. Mas algo que possa ficar entre o restaurante e a igreja.
-Nunca pensei que aquele presente que eu te dei serviria tanto. Viu só como Deus age?
-Vi, e quero continuar vendo.
-Mas contes pra mim: e a igreja que estás frequentando?
-Bem diferente do que estou acostumado. Mas como sei que Ele está presente, não estranho nada. Afinal, o que me move é a vontade de encontrá-Lo.
-Valente, eu quero pedir-te um favor.
-Peças dois. Se estiver a meu alcance...
-Quando tu precisares de ajuda, não te esqueças de recorrer ao nosso Deus, tão cheio de misericórdia e amor. Mas eu peço que, quando precisares desabafar, contes comigo.
-Sabe que às vezes não entendo por que a senhora me protege tanto? É como se amasses mais a mim do que aos outros...
-É egoísmo da minha parte, eu sei, mas eu realmente protejo mais por um motivo. Lembras quando era pequeno, e ansiavas assim que vinham adultos buscando crianças para adotar?
-Isto, nem se eu fizesse esforço, esqueceria.
-Sorrias tanto, na esperança de que algum casal procurasse a alguma das freiras e dissesse: “é com ele que eu quero ficar”. Depois, os anos foram passando, os meninos foram embora, conseguiram família e tu foste se fechando, ficando cada vez mais calado. Quando não te refugiavas aprendendo a tocar, pedias que eu explicasse os capítulos da Bíblia que tu lias. E eu fui compreendendo que eu não poderia passar na tua vida para deixar a impressão de que tu eras mais um. O que eu quis foi que tu entendeste que Deus te ama tanto que não permitiu um passado feliz para que tu pudeste fazer um futuro maravilhoso.
-Terei de discordar. Deus e a senhora fizeram parte do meu passado. Não tinha como ser mais feliz do que fui. E sempre farão parte da minha vida. Sou eu quem tenho de pedir: chame a mim quando precisar de um amigo. Não é este o papel que a senhora quis assumir em minha vida?
A madre e o saxofonista se abraçam. E num contexto cristão, tão agradável quanto, é o encontro nos corredores da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa entre Olívia e o seu professor preferido, três dias depois do assalto não concretizado.
-Quarto período e com notas invejáveis, não é, Olívia?
-Imagina, Professor. Faço o que consigo.
-Já pensas em alguma pós-graduação?
-Sinceramente, sim. Sei que eu estou muito adiantada, mas penso mesmo em algo na área de Comunicação, Linguagem e Voz.
-A minha área? Nem é preciso dizer o quanto me sinto lisonjeado por esta escolha. E onde a farás?
-Como assim? Aqui mesmo, na universidade.
-Deverias tentar o exterior.
-Ah, não, imagines. Se ao menos fosse bilíngue, ajudaria bastante.
-Optes por alguma cujo Português é o idioma oficial... O importante é que onde tu fizeres, haja investimento real na área. Se tu quiseres, eu posso te passar uma lista de universidades que oferecem pós-graduação nessa especialidade.
-Adoraria, se não for causar-lhe incômodo...
-Vou mandar para teu e-mail. Não deixes de checar.
-O senhor parece que veio do céu. Muito obrigado.
Falando no termo, a Igreja Comportas do Céu recebe novamente as presenças de Valente e Cissa, que se encontram logo na entrada.
-A paz do Senhor... – falam mutuamente.
-Como estás tu?
-Melhor do que da última vez, tenho vivido maravilhas. E tu?
-Sigo pensando o tempo todo naquelas palavras que tu me disseste. Foi ótimo abrir-me contigo.
-Pelo menos não vejo mais aquele ar de menina indecisa. Agora pareces disposta a seguir em frente.
-E é a mais pura verdade. Mas não posso creditar o milagre sem agradecer ao santo que o realizou: tu.
-Não fiz nada, irmã. Milagre somente Deus é quem realiza.
-Abriste os meus olhos. Todas as vezes que eu derramei lágrimas foi porque eu quis derramá-las. Mas eu decidi que colocarei um sorriso no meu rosto, a contragosto de quem quiser ver-me por baixo.
-Que mal lhe pergunte: seu problema é amor?
-Antes fosse. Eu sempre quis alguém que suprisse a minha extrema carência. Mas estou disposta a dividir minha vida com quem merece fazer parte dela. E quem melhor para acompanhar uma mulher que ainda engatinha na fé do que um varão valoroso?
Nete chega à porta e observa Cissa e Valente próximos, ainda que ele não tenha entendido o uso da expressão por parte da moça. O incentivo à formação do casal provém de uma paráfrase inesperada (ainda que Nete nunca queira segurar a língua, ao que devemos nos acostumar)...
-Bonito. Que bonito, hein? Que cena mais linda!
-A paz, irmã... – diz o tímido músico.
-Será que estou a atrapalhar o casalzinho aí?