08/09/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 14


O jovem músico corre para amparar o desconhecido.
-Está tudo bem contigo?
-Sim, não te preocupes- Tato sai do chão com a ajuda de Valente.
-Tens certeza? Não sofreste nenhum arranhão?
-Infelizmente, não- Tato chora.
-“Infelizmente”?
-Teria sido melhor se aquele maldito motociclista tivesse me matado de uma vez.
-Não estás nada bem...
-Fiques tranquilo, não sofri nenhuma escoriação.
-Melhor irmos ao pronto-socorro.
-Para quê? Ter de esperar por um médico para que ele diga o que sabemos?
-Podes ter quebrado alguma cousa.
-Quebrado eu já estava, e antes daquela moto aparecer... Desculpe, estou sendo ríspido demais contigo, que só queres ajudar-me.
-A minha casa é logo ali. Por que não entras?
-E vou fazer o quê lá?
-Telefones para alguém, peças para que venham buscar-te. Obviamente, precisas de ajuda.
-Não precisas preocupar-se comigo, gajo.
-Ouças-me. Ligues para alguém da tua família, que te conduza até a tua casa.
-Não tenho mais ninguém no mundo. Nem um lugar para morar.
Penalizado, Valente se identifica, por acreditar que Tato também seja um órfão, e sem-teto como ele já foi um dia.
-Venhas comigo. Eu vou dar-te um copo com água.
-Moço, não é necessário.
-Não é incômodo nenhum. Se não for para ajudar os outros, estamos fazendo o quê nesse mundo? Podes confiar, não tenhas medo.
Pedido aceito. Tato vai até o apartamento alugado por Valente, que cumpre a promessa de lhe trazer um copo d'água. E volta o filho expulso de sua casa a chorar.
-Tanto trabalho que eu estou dando...
-Tua preocupação não deve ser comigo, e sim consigo próprio. Estás mais calmo?
-Acho que sim.
-Para onde estavas indo? Eu posso chamar um táxi.
-Nem eu mesmo sei para onde eu ia. Estava completamente sem norte.
-Deve ter ocorrido algo bem grave...
-Meu pai, ele... Ele expulsou-me de casa.
-Sinto muito, não sei nem o que dizer.
-Sabes quando tu tens alguém como porto seguro, e esta mesma pessoa é responsável por tirar o teu chão? Foi o que ele me fez.
-A bem da verdade, eu não sei. Fui criado a maior parte da minha vida num orfanato. A sensação de ter um pai eu jamais vivi.
-Sorte a tua.
-Não digas isso. Vais ver que em breve os dois se reconciliarão.
-Talvez fosse melhor que não acontecesse. Ouvi tantos disparates, xingamentos que...
-E a tua mãe? Tu deves ter mãe...
-Minha mãe não é o tipo de mulher que tem voz ativa, sabe? Sempre estará subjugada ao marido, ainda que isto a coloque contra mim. Não quis ela livrar-se das amarras como eu fiz.
-Não tentou interceder por ti?
-Até quis, sabes? Mas foi a vontade dele que prevaleceu. E estou eu na rua.
-Penses que não será uma situação definitiva. Talvez algum outro parente queira te oferecer um teto para ficar.
-Ainda tenho um tio, irmão do meu pai- refere-se a Hélio, o patrão de Valente- Certamente ele tomou partido dele e não vai receber a mim. Melhor assim. Não terei que depender de ninguém ligado àquela casa.
-O que tu fizeste?- Hélio, que recebeu um telefonema de Dora para que deixasse o Recifeeling e viesse à residência da Família Lacerda Goulart, fica indignado com a posição adotada pelo irmão- Colocaste o Tato para fora de casa?
-Deveria mesmo era ter dado uma boa surra. A bofetada que eu desferi não foi o suficiente.
-E onde ele pode estar agora?
-Na zona!- grita- Lá é o lugar de gente tão desavergonhada quanto ele.
-Como tu pudeste fazer isto com o teu próprio filho?
-Otávio não é mais meu filho, Hélio! Não tenho mais filho nenhum!
-Não adianta, não adianta. Eu te chamei até aqui para ver se tu o convencias de procurar o Tato, mas ele é irredutível.
-E não pretendo mudar. Se eu fosse um pai complacente, Dora, o garoto teria passado a perna em nós há muito mais tempo.
-Vou trazer o Tato para a minha casa- adverte Hélio- Não vou deixar o garoto vagar cidade afora. Tinham que ter resolvido esta situação de outra maneira, Kleber!
-Outra opção eu dei a ele, Hélio: terminar o caso que tinha com o outro desgraçado. Se ele se recusou, a culpa não pode ser imputada a mim.
-Colocaste o garoto contra a parede, o que querias?
-Pares de chamá-lo de “garoto”! Teve ele que ser muito homem para dividir a cama durante quatro anos às escondidas!
-Vou ligar para ele e descobriu onde ele está.
-Não adianta, Hélio. A única coisa que ele levou foi a roupa do corpo. E foi bom ele ter deixado o celular aqui, sabes por quê? Porque eu tive acesso aos textos anteriores que ele havia trocado com o tal de Michel. Dá nojo só de ler e imaginar como eu pude ter sido tão idiota!
-Eu mesma vou procurar o meu filho, e trazê-lo de volta a esta casa, contra a sua vontade.
-Falou a mulher que pouco interveio na discussão que tive com o Otávio. Por que será, Isadora? Vais ver que é porque sabes que aquele lá estava errado o tempo todo. E é por eu ter esta certeza que eu determino que ele não volta mais.
-Tu, Kleber, não mandas em mim.
-Mas mando na minha casa! E vou dizer com todas as letras, até entenderes de uma vez por todas: enquanto vida eu tiver, o Otávio não pisa mais aqui!
-Quer dizer que teu pai te tirou de casa porque descobriu que tu gostavas de... Enfim.
-É, entendeste bem.
-E agora? O que vais fazer?
-Meu primeiro pensamento foi procurar a pessoa com a qual me envolvi, mas descobri que ela não vale um décimo do que eu imaginava- Tato olha um quadro com uma pintura de Jesus na parede do apartamento de Valente e abaixa a cabeça, supondo que o saxofonista é adepto do Cristianismo- Deves estar pensando que passo por isto porque procurei, não é?
-Antes de ver o teu defeito e apontar o meu dedo, eu preciso tirar a trave do meu olho e olhar as minhas muitas falhas. Eu só posso orar por ti, ainda que não entendas o porquê.
-Por que eu não entenderia uma oração? Porque sou “do mundo”, como vocês dizem?
-Deixar de compreender o sentido de uma oração é algo que pode atingir a qualquer um. Quando oramos por uma causa, queremos uma resposta imediata, e a bênção que esperamos atingir só chega num tempo que nós não fomos capazes de determinar.
-O que estás tentando me dizer?
-Que talvez tu estejas orando para que Deus seque suas lágrimas, e isto demore um poucochinho de tempo para ocorrer. O mais importante é saber que Ele não criou a humanidade para permanecer no eterno sofrimento.
-Sinceramente, eu não estava pedindo a Deus por isto. Aliás, eu nem estava pedindo nada. Só sei que lágrimas secas vêm bem a calhar nesta hora.
-Tens certeza de que não queres que eu procure alguém de tua família?
-Pouco adiantaria. Teria que lidar com as condenações, ou por ter escondido o que tinha com... Ou por ser bissexual.
-Se quiseres, eu falo com o dono do prédio e ele te aluga um apartamento.
-Como pagaria? Certamente a minha conta o meu pai mandou bloquear. Terei que me sustentar, só não faço a mais remota ideia de como.
-Assim sendo, fiques aqui.
-Na tua casa? Mas nos conhecemos hoje.
-Mas o Senhor te conhece há mais tempo.
-Não imaginei que este dia terminaria desta forma.
-Com um crente?
-É. Vamos colocar assim.
-Normal, não é? São duas pessoas que alegam se orgulhar daquilo que são. E eu não tenho cabeça, muito menos coração, para julgar os outros. Fiques por hoje, amanhã veremos o que fazer.
-Desculpa-me, eu nem disse como me chamo. Otávio, mas podes chamar-me de Tato.
-Prazer. Valente, mais conhecido como “varão valoroso”- arranca risos de Tato.
-Qual é o motivo do apelido?
-Não sei, só sei que falaram isto na igreja e ficou esta alcunha até hoje.
-Abençoada seja a pessoa que o criou. Não estava nem um pouco enganada sobre ti.
-Eu estive enganada com este Valente- declara Nete, já na igreja com o marido.
-Por que falas isto?
-Porque pensei que, com o tempo, ele fosse ficando mais empolgado com o relacionamento com a Cissa.
-Valente tem os dois pés no chão, não no mundo da lua.
-E aquela história de que quer esperar as coisas estabilizarem?
-Vai ver o próprio Valente pensa em algo melhor do que trabalhar naquele restaurante.
-Quem? O Valente? Faz-me rir, Fabiano. Ele já está naquele emprego há quatro anos; se pensasse em sair daquele lugar, já teria saído. Mas ama aquilo lá. Aposto que o saxofone dorme lá.
-O que o saxofone tem a ver com esta história?
-Lembras que uma vez sugerimos que ele deixasse o saxofone aqui dentro, com os demais instrumentos da igreja, e ele recusou-se?
-Ednete, até onde sabemos, o saxofone é de uso pessoal dele, e não da igreja. Além disso, é o instrumento de trabalho do gajo.
-Mas, mantendo-o aqui, matamos dois coelhos com uma única cajadada.
-Queres explicar-me como?
-Além de tornar o saxofone um dos instrumentos do templo em caráter oficial, ainda tiramos o emprego do rapaz.
-Ainda não entendi a vantagem que vês no desemprego do Valente.
-Salvação da alma! Fabiano, ele toca para uma plateia não-cristã. Isto é horrível.
-Ele não está importando-se com isto, Nete.
-Deveria!
-Meu amor, pares de procurar defeitos nos nossos amados irmãos.
-Fabiano, querido, os defeitos dos outros eu acho até sem acionar o GPS, de tão expostos que são eles.
-O que eu penso é que tudo tem o seu tempo determinado. Há casais que passam muito mais tempo namorando do que eles. Óbvio que ninguém começa uma relação pensando em separação, mas... E se não der certo? Ficaremos na história como incentivadores da falha alheia?
-Se não der certo, só será por causa dele. Porque, a depender da Clarissa, o relacionamento irá de vento em popa. Veja só como ela era acuada, e hoje é uma moça fortalecida.
-A verdade é que parte do caráter da Cissa foi moldada pela influência do Valente. Desde sempre, ele foi maduro e teve uma fé inabalável. E olhe que foi criado num lar católico.
-Vamos ver quem nos surpreenderá positivamente, se o Valente ou a Cissa.
-Positivamente, os dois se destacam, Nete. É o casal que, embora não haja perfeição humana, pode ser considerado perfeito.
-Veremos, Fabiano. Isto nós dois veremos.
Naquela noite, antes do culto começar, Cissa volta do trabalho como vendedora de uma loja de roupas e passa no apartamento do namorado. Cumprimenta-lhe com um beijo.
-Nossa, pareces tão animado. Aconteceu alguma cousa?
-Sim, eu queria falar mesmo contigo.
-O que foi, amor?
-Sabes, Cissa, eu estive maturando esta decisão há uns dias e depois de um almoço com o Pastor e a esposa, resolvi dar uma chance a mim mesmo.
-A que te referes, Valente?
-Bom, nós dois estamos juntos há quatro anos, sabemos de tudo um da vida do outro e... Creio eu que está na hora de dar um passo adiante na nossa relação. Um passo que só nós podemos dar.
-Passo adiante? Do que se trata? É daquilo que eu estou pensando?
-Claro que é. Há tempos que quero falar isto para você, e acho que esta noite é a ideal.
-A noite é ideal? Nossa... Fales, querido!
-Cissa, queres casar-se comigo?
-É isto, é?

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