-Não estás falando seriamente comigo.
-Acaso sou eu homem de brincadeiras?
-É que não pensei que, dado o teu histórico, veria este dia
chegar. O dia em que tu admitirias que estava errado a teu próprio respeito.
-Não te enganes. Eu continuo não concordando com o que
fizestes, e muito menos com o que deves pensar em continuar praticando.
-Então, para que propósito chamaste a mim?
-Tu merecias ouvir de meus próprios lábios o meu pedido de
perdão, a minha palavra de agradecimento. Não posso fingir que nada aconteceu.
Se estou vivo hoje, é a ti quem devo esta proeza. Jurei que não te importarias
comigo no dia em que soubesse o quão mal estive.
-A tua vida tu não deves a mim. Deus quis que tu ficaste
vivo. A mim não precisas agradecer.
-Não trates teu gesto como algo corriqueiro.
-Creias, não me deves gratidão alguma.
-Desarma-te, gajo. Não te farei nenhum tipo de mal.
-Todas as malignidades possíveis tu já exerceste sobre mim.
-Otávio, o que eu quero propor-te é uma trégua.
-Acreditas mesmo que irás conseguir?
-Tenho que fazê-lo, depois de tudo que ocorreu.
-Não quero que te sintas na obrigação, a mim não deves nenhum
tipo de compensação.
-Ouças-me, Otávio...
-Não vamos mais discutir acerca deste assunto. Pedi para que
meu nome fosse mantido em segredo, mas agora que fui descoberto, fico feliz de
te ver e constatar que estás melhor.
-Ainda falta algo para que eu me sinta plenamente recuperado.
-Do que falas?
-De tu recuperares tudo aquilo que é teu por direito. Eu
quero que voltes para a nossa casa.
-Tens certeza do que estás dizendo?
-Sim, tenho, e foste tu quem a concedeu.
-Pai, eu já expliquei que não há motivo para nenhum tipo de
compensação de tua parte...
-Tua vida poderia ter escorrido pelas tuas mãos, mas eu a
tirei, Otávio. Devolver o que te pertence é o mínimo que posso fazer.
-E como acha que podemos conviver debaixo do mesmo teto?
Ainda mais remoendo o passado?
-Estou disposto a pagar tudo o que vivemos nestes últimos
tempos. A tua saída de casa, a minha desavença com o Valente, o período que
passei no hospital...
-Tu pagas, mas não apagas. Não da minha lembrança.
-Por favor, não ajas como se o que tu escondeste de mim não
fosse motivo para desencadear a minha reação.
-Isto não está mais em discussão. Mas o fato de eu ter
descoberto que ninguém é insubstituível.
-Aonde queres chegar?
-Que hoje eu voltei a ser aquele menino de quem tanto tu
sentias orgulho profundo. Mas eu esperava que este sentimento fosse vivido pelo
senhor em qualquer ocasião, não somente depois de teres visto tão de perto a
morte.
-Por esta razão que mereces ter de volta a tua vida.
-Não a quero, Pai.
-Deixes de tornar as cousas mais difíceis para nós dois,
Otávio.
-Eu tive muita raiva do senhor, mas hoje eu vejo que se nada
disto acontecesse, até hoje eu estaria infeliz, escondendo-me da minha própria
família. Tu mesmo causaste a libertação do cativeiro em que eu vivia.
-O que dizes? Que pretendes continuar a morar com o Valente?
-Não, Pai. Só que eu não voltarei para casa.
-Eu entendo que estejas revoltado, que queiras arrumar uma
forma de punir-me, mas ocorre que eu...
-Por favor, não penses que estou a executar uma vingança
pessoal. Se eu quisesse mesmo a tua destruição, como pensas a meu respeito,
sequer estaria aqui. Daquela casa, eu só quero os meus documentos e o meu
carro.
-Otávio, tu tens uma casa.
-Aquele lar não é mais meu. Para morar lá, eu não volto.
-E a nossa relação, como fica?
-Da maneira mais saudável possível. Visito a minha velha
casa, e tu terás livre acesso ao lugar onde vou morar. Mas cada qual em seu
devido canto.
-Quem sabe eu posso arrumar-te um emprego na agência de
viagens?
-Para depois dizeres que eu só consegui um trabalho por
indicação tua?
-Sei que tens todos os motivos do mundo para não acreditares
no meu arrependimento, mas ele é sincero, meu filho.
-Eu sei, mas o que tu poderias me dar será concretizado em
instantes: estar de pé novamente. O resto eu conseguirei caminhando com as
minhas próprias pernas.
-A resposta para o meu pedido de perdão eu ainda espero,
Otávio...
-Sim, Pai. O meu perdão tu já tens, e há tempos. Agora, quero
que tu me faças um favor- diz Otávio, olhando o celular do pai numa mesa de
cabeceira.
-Peças, o que bem entenderes.
-Ligues para a minha mãe e avises que estou indo lá para
buscar os meus documentos pessoais e a chave do carro.
-E para que tanta formalidade? Otávio, não és um completo
estranho para ter eu que avisar à tua mãe da tua ida.
-Prefiro desta forma. Será que podes contatá-la?
-Claro. Claro que sim- o irmão de Hélio realiza a chamada-
Dora?
-Meu amor? O que houve para tu me ligares?
-Liguei apenas para avisar que Otávio irá até aí.
-Queres dizer que finalmente o convenceste? Ah, graças a
Deus. Vou preparar o quarto do nosso filho...
-Não, Dora. Otávio precisará buscar uns utensílios pessoais.
Por favor, fiques para receber o nosso filho.
-Está bem, então. Mais tarde eu te buscarei na clínica.
-Até mais tarde, então.
-Beijos, querido- Dora encerra a chamada.
-Ela me receberá?
-Sim. Podes tu passar lá.
-Obrigado por ter ligado.
-E agora? O que pretendes fazer?
-Bem, eu vou vender o carro para...
-Vendê-lo? Não podes fazer isto, foi um presente que eu te
dei, meu filho!
-Caríssimo, por sinal. Mas financiarei uma casa quando
conseguir fazer negócio. Daí a minha necessidade de ter meus documentos de
volta.
-Tato, sabes que a nossa casa está à tua disposição. Não há
necessidade de fazer isto para provar que é um homem independente.
-A casa não é nossa, e sim tua. Foi com o teu dinheiro que
ela foi comprada. Quanto ao carro, ele está no meu nome; então, posso usufruir
dele da maneira que me for conveniente. O senhor terá que dar-me licença, mas
eu preciso ir agora mesmo- Tato chega até a porta.
-Otávio.
-Digas.
-Agradeças ao Valente pelo que ele fez a mim.
-O que ele te fez?
-Abriu os meus olhos para o ser humano maravilhoso que é o
meu filho.
-Está bem, então. Nos vemos- ainda um pouco frio, Tato deixa
a clínica e volta para a mansão da Família Goulart, onde é recebido com
apreensão por Dora, já à porta da residência desde o telefonema de seu marido,
Kleber.
-Bom dia, meu filho.
-Bom dia, Mãe. Eu posso entrar?
-Que pergunta é esta, Tato? Claro que podes.
-Prometo não demorar muito- rapidamente, o rapaz sobe ao seu
antigo quarto e começa a recolher os documentos.
-Tu queres ajuda para procurar alguma cousa, Tato?
-Não é necessário, eu lembro muito bem onde deixei tudo.
-Kleber disse pelo celular que não vieste para ficar
definitivamente... É verdade?
-Sim, é- afirma, ao achar a sua carteira e a certidão de
nascimento.
-Por que torturas a nós todos com teu comportamento? Teu pai
aceitou conceder uma trégua entre vocês, agora farás o papel de ofendido?
-Deste papel eu não preciso, Mãe. E não quero que sintam pena
de mim. Apenas quero seguir a minha vida.
-Como? Causando dor à tua família? Será que não entendes o
esforço sobrehumano que Kleber tem feito para restaurar a nossa família?
-Mais uma vez, o que percebo é que não estás preocupada
comigo, e sim com ele. Pouco te importas se estou bem ou não, o importante é
que ele esteja.
-Não jogues palavras em minha boca, Tato.
-Para quê discutir o óbvio, não é?
-Voltes para casa, meu filho. Entendas que é este o teu lar.
-Da decisão de ser dono da minha vida eu não abro mão. Não
correrei o risco de ver tudo sendo tirado de mim novamente.
-Isto não vai mais acontecer, meu filho.
-Não mesmo, porque eu não deixarei- encontra a chave do carro.
-O que pretendes fazer?
-Seguir a minha vida- Tato vai até a garagem.
-Ignorando a nossa existência?
-Não condicionando a minha à existência de vocês.
-Por que te sentes tão ofendido, se foste tu quem escondeu a
verdade, quem mentiu para os teus pais?
-Omiti, o que é muito diferente.
-Mentira não deixa de ser um erro, esconder a verdade também
não.
-Já paraste para pensar que se a minha vida de antes não
tivesse sido revelada, estaríamos em harmonia até hoje? Se eu escondi foi para
evitar esta situação.
-Não deixa de ser um erro o que tu fizeste, e por isto mesmo
não pode ser justificado. Além do mais, isto causou um afastamento entre tu e
teus pais, mas manter-se afastado é uma opção exclusivamente tua.
-Será bom para nós todos.
-Fales por ti mesmo. O que farás agora? Continuarás morando
de favor na casa de um completo desconhecido?
-Minha situação na casa do Valente não durará para todo o
sempre. Mas para esta casa, como hóspede ou como filho, eu não quero voltar.
Não viverei à mercê do dia em que eu possa cometer um erro e seja retirado
daqui novamente.
-Como queres que pensemos? Mantiveste um caso com outro homem
há quatro anos às escondidas.
-Este foi o maior erro da minha vida: ter dado ouvidos aos
galanteios do Michel, que provou não valer o chão que pisa.
-Prometo-te que não sofrerás retaliações. Passaremos uma
borracha no teu passado, esqueceremos tudo o que aconteceu.
-Como estás ávida por uma solução para os meus problemas
agora... Agiste como se eu não existisse, lembraste-te de mim quando meu pai
esteve às vias da morte.
-Continuarás acusando-me de ser uma péssima mãe, uma
progenitora completamente omissa?
-O que eu quero é que tu e ele possais amar-me pelo que sou,
e não pelo que posso oferecer.
-Nosso amor é incondicional, meu filho.
-O amor até existe, mas não nos termos que tu o defines.
Posso tirar o meu carro da garagem agora ou ainda tens algo a me falar?
-Tenho- Dora beija a mão do filho- Que Deus possa te
proteger, filho. Desculpa-me.
-Ele não pode, Mãe. Ele vai, ainda que eu não mereça.
Tato deixa, agora em caráter definitivo, a mansão da Família
Goulart, fazendo com que Dora lamente a despedida do filho, disposto a dar um
novo rumo à sua vida. E naquela manhã, o Lar do Menino Tobias recebe a visita
do saxofonista do Recifeeling.
Sentado num dos bancos do jardim, Joana aproxima-se do protegido e senta-se ao
seu lado, olhando para o seu abatido rosto. Ele sequer nota a madre junto a si.
-Não estás feliz.
-Do que falas, Madre?
-Do teu semblante. Ele não costuma enganar-me, Valente.
-Seja o que for, passará.
-Hoje não interagisse com as crianças, não leste histórias
para os órfãos, como sempre fazes. Queres desabafar com esta velha amiga tua?
-Não. Terás que desculpar-me, mas não acredito que esteja
preparado para falar desta minha aflição com ninguém.
-Não me diga que são os comentários acerca da estadia do Tato
em teu apartamento novamente?
-Meu problema é outro, Madre. E independe dos comentários
alheios. Trata-se de algo que somente eu posso resolver.
-Na dúvida de contar ou não para alguém, conte ao teu melhor
amigo. O melhor que podemos ter, meu querido.
-Obrigado pelo conselho.
-Quando precisar, eu estarei aqui, Valente. Mas Ele estará em
todo o tempo- Joana beija a testa do músico e volta ao interior do orfanato,
tentando aquietar o seu coração. O mesmo propósito é utilizado pelo professor
de Olívia, que usa o seu celular para que a sua aluna comunique-se com Beatriz,
aflita pela falta de comunicação com a irmã.
-Professor?- Beatriz atende o telefonema, dias depois de ter
arquivado em sua agenda o número do docente.
-Sou eu, Beatriz. Olívia.
-Finalmente! O que esteve a acontecer contigo, para que não
me ligasses, não desses satisfação? Eu já estava preocupada, Olívia!
-Tinhas razões de sobra para estar.
-Não me assustes. Que voz é esta?
-Por favor, eu não quero que tu te preocupes comigo, eu já
estou bem...
-O que quer dizer que não estava antes. Dizes, Olívia.
-Eu estou num hospital, mas estou voltando para a república
onde estou hospedada.
-Sem rodeios, Olívia. O que te levou a ser internada?
-Beatriz, é muita longa a história para ser explicada pelo
celular.
-Se não me falares nada, eu pego o primeiro avião e vou até
onde tu estás.
-Tudo bem. Mas eu vou pedir-te apenas que permaneças calma.
-Andes, Olívia. Não me faças rodeios.
-Eu fiquei alguns dias em cárcere privado.
-O quê? Que disparate é este?
-Não é absurdo nenhum, é a mais pura verdade. Lembras o
Nicolas, de quem eu havia falado há alguns dias contigo?
-O que ele fez contigo, Olívia?
-Agora eu estou melhor, daqui a pouco eu saio do hospital.
Mas ele raptou-me e tentou acabar com a minha vida.
-Parece até que estás a contar-me uma mentira. Queres dizer
que ele fingiu ser uma boa pessoa?
-E se não fosse a mão de Deus, estaria morta neste momento e
ninguém descobriria nada.
-Eu quero ir até aí, ter certeza de que tu estás bem.
-Não é necessário, Beatriz. O professor está retornando à
Lisboa e eu estou voltando com ele.
-Bem que eu senti que alguma coisa de grave estava
acontecendo... Deveriam ter me ligado quando tu foste resgatada.
-Preferi esperar eu ficar um pouco melhor para pedir ao
professor o celular emprestado, já que ainda não havia voltado para casa.
-A tua casa é aqui. Tens que voltar o quanto antes. E o
sacripanta? Foi preso?
-Está em estado grave. O médico contou que ele pode ficar em
estado vegetativo, caso acorde.
-Tomara que morra. Aliás, tenho uma sugestão melhor: que vá
para a cadeia e pague por tudo o que fez, mas definhando. É pouco para um
canalha desta estirpe.
-Que pensamento, Beatriz...
-Depois do que ele te fez, não há como sentir pena. Se
houvesse, faria questão de não senti-la. Mas tens certeza de que estás bem
mesmo?
-O professor já comprou as nossas passagens para amanhã de
manhã. Acho que no começo da tarde desembarcaremos em Lisboa.
-Vou até lá para conferir se estás bem mesmo.
-Beatriz?
-O que é?
-Eu te amo.
-Eu também te amo muito, minha irmã. Não demores para voltar-
Beatriz chora em silêncio.
-Prometo-te que não. Até amanhã- desliga o celular.
Anoitece na linda Lisboa, mas antes disso, Valente já está no
Recifeeling para retomar o seu posto
de saxofonista do local, após dias afastado em decorrência do ferimento que
sofreu. Hélio recebe o músico e, durante o ensaio, conversa com o rapaz sobre
as novidades que envolvem o seu sobrinho.
-Até que enfim chegou o dia em que o Kleber deixou-se vencer
por alguém. Jamais imaginei o meu irmão pedindo desculpas para quem quer que
seja.
-Pelo pouco que conheço de teu irmão, eu também não seria
capaz de imaginar.
-Mas é certa mesmo esta ideia do Tato vender o carro para
alugar um apartamento? Por que ele não muda, então, para a minha casa?
-Porque ele não quer mais depender de ninguém da família,
Hélio. O que houve entre o pai foi muito desgastante, ele sente medo de que as
pessoas o julguem mal.
-Sei disto, Valente, mas trata-se do meu sobrinho. Como
poderia pensar algo errado a seu respeito?
-Da mesma forma que pensaste que eu era o doador anônimo.
Hélio, ele quer deixar para trás toda mágoa que existe entre ele e a própria
família.
-O que tu achas da decisão do Tato?
-Para mim, o ideal seria ele vivendo novamente em família.
Mas é como diz aquele ditado: “cada cabeça é um mundo”. Até andou tirando fotos
do carro e pondo à venda na internet.
-Com licença- após o dia em que tentou oferecer sexo ao
noivo, Cissa fala com Valente, procurando-lhe em seu local de trabalho- Podemos
falar, meu querido?
-Vou deixá-los a sós- avisa Hélio.
-O que te trouxe até aqui, Cissa?
-Isto- a vendedora beija o saxofonista com desespero.
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