-Por que a senhora ”tá” me dizendo essas mentiras todas?
-Eu não preciso mentir,
Murilo. Nem pra você, nem pra Verônica, nem pra ninguém. Eu não vim de São
Paulo até aqui pra enganar vocês, tripudiar da dor de ter um filho
desaparecido...
-Um filho que é meu e da
minha mulher. De mais ninguém.
-Se você me afirma isso nesse
tom imponente é porque é pai, e sente que existe uma razão muito forte para eu vir
atrás do “Gigante”.
-Pelo contrário. Se engana ao
pensar que tenho dúvidas sobre a paternidade dele.
-Disso não precisa duvidar.
Mas eu sou a mãe dele. E tenho como provar que tanto eu quanto vocês foram
enganados. Deve existir algum fio de cabelo dele, algum objeto pessoal que
permita fazer um exame de DNA.
-O que a senhora me diz não
tem cabimento algum!
-Murilo, eu também não
acreditei quando o meu pai me contou. Mas eu mexi nas coisas da clínica e descobri
que ele tinha um dossiê. Dossiê esse que passava a vida de vocês inteira. Todos
os passos que vocês davam, o lugar onde vocês moram, a escola que o neto dele frequentava...
-O “Gigante” não é neto dele!
Muito menos seu filho! Eu não sei qual é o seu propósito, mas... Aliás, eu sei,
sim: roubar a minha paz, a minha comunhão. Porque eu vejo o inimigo se
levantando diante de mim e não me abato. E não vou me abater porque a minha fé
me mantém vivo.
-Acontece que não quero ser
sua inimiga, e eu não sou. Eu só quero ter a oportunidade que me foi negada
pelo meu próprio pai. Murilo, eu não tenho intenção de roubar o “Gigante”, de
fugir com ele, de questionar a educação que ele recebeu. Mas ele é parte
importante da minha vida, sim. Sem contar que ele tem direito à herança.
-Herança?
-No meio do dossiê, acabei
encontrando uma carta que meu pai escreveu e reconheceu em cartório. Nela, ele
diz que a metade da fortuna dele vai pro “Gigante”. Você tem ideia do que o seu
filho pode perder se eu não contar tudo? Se eu não encontrá-lo? Ele vai perder
a chance de saber sobre a sua verdadeira origem e tudo o que lhe é de direito!
-A única herança que ele faço
questão que o meu filho receba é a da salvação! Não me importa essa estória
estapafúrdia que você inventou!
-Murilo, por favor!
-Basta! Já chega de inventar
mentiras! Eu não tenho tempo pra perder com você. “Gigante”, como outra pessoa
qualquer, faz parte de uma família. E família ele já tem.
-Por mais que você seja
ríspido comigo, eu consigo ver no fundo dos seus olhos que sabe o quanto meu
desespero pra encontrar esse rapaz é real. Você sabe que eu posso provar tudo
isso que eu estou dizendo.
-Fique com o seu desespero.
Aproveite cada engano que você disse e minta pra outro. Meu filho só tem uma
mãe, que está lá dentro, numa enfermaria. Volte de onde você veio, porque eu
não aceito isso nem do meu próprio filho. O que dirá de você?- entra na
enfermaria.
-Se é da sua confiança que eu
preciso, eu vou tê-la, pastor. Mas da verdade, todos vão ter que saber-
confabula consigo mesma.
Alexandre acorda quando
Rebeca está trocando o curativo de seu ferimento, não sem antes passar um
medicamento sobre a superfície.
-O que houve?
-Você não lembra, Alexandre?
Quase morreu!
-Quem me trouxe pra cá?
-Eu e o Paulo. Até tirei a
bala que te alcançou. Você passou dois dias inconsciente, perdeu muito sangue.
Mas agora “tá” fora de perigo.
-Mas como é que você...
-Se esqueceu, Alexandre? Fui
auxiliar de enfermagem. Saí do hospital que trabalhava por conta do roubo às peças...
Que “foi” até o que me “salvou”.
-Podiam ter me deixado
morrer.
-E se você não morresse? E se
existisse uma chance de sobreviver? Ia jogar fora? Tenho certeza que não.
-Não sabia que você se
importava comigo desse jeito.
-Pensei no grupo naquela hora.
-Só nele?
-O que você está querendo
dizer com isso, Alexandre?
-Eu não digo nada, Rebeca. ”Tô”
é perguntando. É só com o grupo que você se importa?
-Com o que mais eu poderia me
importar?
-Comigo. Só comigo.
-Algum motivo em especial?
-Não. Eu tinha que ter?
-Acabei o seu curativo. O Paulo
foi comprar o seu remédio, que “tá” acabando.
Mais tarde eu volto pra trazer o seu almoço.
-Não precisa me evitar,
Rebeca. Eu não falei nada demais.
-Querido, quem tem o Paulo
como namorado, como eu tenho, não precisa de homem pra falar nada demais. Agora
deita, que quando der meio-dia, eu trago seu almoço- sai do quarto.
-Rebeca?
-O que é?- pergunta
rispidamente.
-Obrigado.
-Não por isso.
Murilo entra na enfermaria,
mas Verônica, que ainda está tomando o soro, não o percebe entrando. Ele,
então, vai ao banheiro, onde joga água três vezes no rosto. Tira um pedaço de
papel higiênico para se enxugar e vê sua imagem no espelho. A expressão que o
acompanha ultimamente está ainda mais latente: de angústia. Suspira e volta ao
local onde sua esposa está. Ela, então, decide tomar a palavra.
-Não vai chegar perto de mim?
Pode vir, eu não vou brigar, não vou reclamar com você. Chega mais perto- o marido
a obedece- Daqui a pouco, o soro termina e o médico vai me dar alta. Sabe o que
ele disse? Que você não saiu de perto de mim um minuto, nem mesmo quando ele
insistiu que você ficasse do lado de fora... É, é sempre do mesmo jeito. Quando
eu me sinto desamparada, você estende a mão e me segura. Não diga que é porque
somos casados, porque é mais do que isso: você sabe que os anos vão passar, que
nós vamos enfrentar as tempestades, mas que eu nunca vou abandonar você, porque
você e o nosso filho são as únicas pessoas que eu amo e vou amar a minha vida
inteira- segura a mão do marido, este aos prantos-Não precisa derramar lágrima
nenhuma, Murilo... No fundo, a gente sabe, sempre soube do caminho que o
“Gigante” foi tomando, mesmo dando conselho e orientação pra ele. Mas ele é de
maior, pensa que sabe o que faz. Nos virou as costas. Só não posso esquecer que
existe alguém maior que todos esses problemas, que vai segurar minha mão quando
eu me desesperar, quando eu me sentir destruída, atingida pelo mal. Isso é a
minha fé, Murilo. Foi você que me apresentou, lembra?- o pastor chora como uma
criança diante da esposa- Da mesma forma que você nunca me deixou sozinha, eu
nunca vou te deixar, meu amor. Vem. Me dá um abraço... Vem, Murilo...
Nada resta para ele fazer a
não ser revelar todo o seu desespero a por meio desse abraço. Verônica, no
entanto, não tem ideia de que o desaparecimento do filho não é a única tormenta
que o aflige.
Natália vai até a igreja
cujos cultos são ministrados por Célio e por Murilo. O primeiro está cantando
uma canção para o encerramento da palavra.
-E hoje eu tenho o Seu amor!
Eu Te louvo, Senhor! Hoje eu tenho, hoje eu tenho, hoje eu tenho... Hoje eu
tenho o Seu amor! Eu Te louvo... Senhor- canta pausadamente a última palavra.
-Aleluia!- os fiéis
glorificam de pé ao término do hino.
-Que o Senhor vos acompanhe e
que nos despeça em paz e em segurança. A paz do Senhor, irmãos.
-Amém!- um coro maior é
escutado quando Natália entra na igreja.
Ivone, que fez Murilo
descobrir o roubo cometido pelo filho, sai da Lar Celestial conversando com uma
irmã e esquece sua Bíblia num dos bancos de plástico. Célio se aproxima de
Natália ao vê-la entrando no local.
-Irmã... O que a senhora faz
aqui? Já sei: está sentindo vontade de conhecer as obras da casa, não é?
-Não. Dessa vez eu vim para
conversar sobre o que aconteceu hoje mais cedo na casa do pastor Murilo.
-Se a senhora quer falar com
ele, eu acho que ele está em casa cuidando da esposa.
-Era o senhor mesmo que eu estava
procurando. Tenho certeza que vai poder me esclarecer uma dúvida.
-Se eu posso ajudar, diga...
Por favor, se sente.
-Obrigada- ambos se sentam- É
verdade que um dinheiro sumiu daqui de dentro?
-Não mentiria numa coisa tão
séria, senhora...
-Natália.
-Realmente sumiu. Era o
dinheiro das ofertas da igreja.
-Lá na casa do pastor Murilo,
o senhor disse, se eu não me engano, que fazia ideia de quem pudesse saber do
paradeiro desse dinheiro.
-Sim, eu falei isso, mas eu
não gostaria de entrar em detalhes sobre isso. Considero o assunto muito delicado.
-Tudo bem, pastor. Eu só
quero que me diga qual o valor que foi roubado daqui.
-Não me diga que a senhora
desconfia de quem possa ter tirado o dinheiro?
-Melhor do que isso: estou
disposta a cobrir a quantia- Célio fica boquiaberto- Diga, pastor. Se o
problema é dinheiro, pode deixar que eu pago. Quanto foi tirado da igreja?
Alexandre está dormindo e não
repara que a janela de seu quarto se abre com o vento e bate na parede. Por um
momento, põe o braço esquerdo sobre o direito, demonstrando sentir o vento frio
que entra.
Pouco depois, alguém entra em
seu quarto e se aproxima de maneira rápida, porém silenciosa. Alexandre para de
se mexer, e a pessoa põe diante do pescoço do ferido uma faca, a qual segura
com bastante força. Alexandre começa a sonhar em voz alta.
-Me ajuda, pai. Me ajuda, por
favor, me salva!
Pressentindo que algo estava
para acontecer com o filho, o ex-pastor volta ao tempo atual esse levanta,
assustado.
-Foi só um sonho. Só um
sonho...
Murilo vê que seu companheiro
de cela não está na cama.
-Irandir? Irandir?- sai da
cama e olha para os lados, mas não o vê.
A vista do homem está escura, turva, e ele vê um uniforme laranja no
chão. O rapaz estava desmaiado- Irandir, o que é que você tem? Acorda, Irandir!
Reage, reage...
-Carcereiro! Ajuda que o cara
apagou aqui dentro. Vem “simbora”- um dos presos da cela vizinha presencia a
cena.
-Você tem que reagir! Pela tua
filha, Irandir! A Bianca precisa do pai, acorda! Reage!
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