-Por favor, vá direto ao
assunto, minha senhora!
-Meu amor, eu posso explicar...
-Você? Prefiro ouvir ela
falando. A não ser que exista algum tipo de relação entre vocês. É isso? Porque
se for isso, eu quero saber de qual tipo.
-Natália é uma missionária
vinda de São Paulo. Eu... Tomei a liberdade de contar pra ela sobre a situação
do nosso filho.
-Não posso acreditar... Você
decidiu se abrir com uma estranha sobre esse assunto?
-Estranho é como ele se
comporta, desprezando a família que construímos há anos.
Contrariada com a mentira,
Natália acaba fazendo o jogo do pastor para evitar novos problemas.
-Fique tranquila, Verônica.
Eu sei ser discreta. Prometo que não contarei nada do que seu marido me disse a
ninguém.
-Mesmo assim, irmã, eu não
gostaria que isso chegasse no ouvido das outras pessoas.
-Sei que a situação é
delicada... Irmã... Mas o que eu posso dizer... Enquanto missionária?- ironiza
a farsa do pastor.
-Que o que sai do nosso
controle já está sendo vigiado pelo Pai? É um ótimo começo, Natália- Murilo
responde à provocação.
-Desculpe, você entrou aqui e
eu não te ofereci nada...
-Irmã Natália já está de
saída, meu amor.
-Não estou, não, pastor.
Ainda tenho algumas pendências a resolver aqui em Olinda, e o senhor sabe bem
disso.
-É que ela veio até aqui
naquele dia pra tentar falar comigo. Queria ver se Célio e eu poderíamos marcar
um dia em que ela pudesse dar um testemunho.
-Problemas de maternidade,
Verônica. Durante anos me reneguei à chance de ser mãe. Um dia, eu realizei
essa proeza.
-Um milagre, realmente. Passei
por uma experiência parecida com o meu filho. Quer dizer que a senhora
engravidou?
-Engravidar não é bem o termo
que eu uso. Vamos dizer assim: uma graça me foi concedida.
-Amém. Quero conhecer o seu
filho um dia. Veio com a senhora?
-Não, está viajando. Mas um
dia, a senhora poderá conversar com ele.
-Verônica, meu amor, você
pode deixar a gente a sós por um momento?
-Claro, mas antes eu queria
fazer um convite. Bom, a igreja não é minha, é do meu marido...
-A igreja é do Senhor.
-Sim, Murilo, mas eu senti um
desejo no meu coração. Vai ver é até uma revelação... A irmã não quer acompanhar
nós dois no culto da Lar Celestial?
-Eu... Adoraria. Mas não vou
dar testemunho hoje. Ficou marcado pra domingo.
-Tudo bem, mas a palavra é
sempre o nosso alicerce, a gente precisa dela.
-Se é assim, eu vou,
Verônica.
-Será muito bem-vinda, tenha certeza.
-Verônica...
-Ah, claro. Eu não quero
atrapalhar a conversa de vocês. Com licença- sobe as escadas e vai ao quarto.
-Para um pastor, você mente
maravilhosamente bem- aplaude Murilo- Parabéns... Deveria ser ator.
-Atuo na igreja. E para uma
ateia, você é muito cristã. Merece mais palmas do que eu.
-Sinceramente, você não
consegue ser irônico...
-Muito menos você. Não me
invente de aparecer lá na igreja, eu não quero ter de dar explicações pra minha
mulher!
-Que explicações? Hein?
-Fala baixo!
-Se não fosse esse seu
faz-de-conta, Verônica já teria sabido da verdade. E ela tem que saber. Você,
como marido, não deveria poupá-la da verdade.
-O que você quer é me
destruir, e “tá” se empenhando pra isso...
-Eu quero conhecer o meu
filho, me aproximar dele, e isso eu não vou conseguir me sustentando nas suas
mentiras.
-Por favor... O que me
garante que é você que não “tá” mentindo pra acabar com a minha família?
-Murilo, eu não iria sair de
São Paulo pra confirmar um engano do meu pai. Ele tinha certeza do que estava
falando em seu leito de morte.
-Como vou saber? Afinal, o
inimigo é muito astucioso!
-Mas eu não!- abre a bolsa-
Olha aqui. Fotos de anos passados do “Gigante”, de quando ele era uma criança,
de quando eu ainda poderia segurá-lo no colo... Murilo, eu não tenho essa
pretensão toda pra destruir uma família. Abre o dossiê. Presta atenção em cada
linha sobre o nosso filho e a vida dele. Só parou de ser atualizado quando o
meu pai faleceu, na mesma época de desaparecimento do “Gigante”.
-Isso não é prova.
-Pois muito bem, eu quero
fazer um exame de DNA. Aposto que o quarto dele está intacto. Alguma coisa dele
pode comprovar que ele é meu filho.
-Nunca, ouviu bem? Nunca vou
te dar permissão pra isso. Agora saia da minha casa!
-Aguarde-me no culto, pastor
Murilo Nobre. Saiba que eu não vou usar modos escusos pra conseguir o que eu
desejo, porque não sou mulher disso, mas vou ter no fim dessa estória.
-Algo que eu duvido muito.
-Até a noite, então.
-Não se atreva a ir até lá.
-Vai me expulsar?
-Se for preciso.
-Não será, pastor. O que o
senhor dirá na frente dos seus queridos irmãos?
-Pare de me chantagear!
-Então, não me impeça de ser
mãe do meu filho! Mais tarde eu vou à igreja!- põe a bolsa no ombro e abre a
porta da casa, saindo em seguida.
-Me faça vencer essa
provação... Eu não suporto mais.
Paulo e Rebeca estão jantando
no apartamento. Um aparelho televisor está ligado na sala de jantar. A moça se
levanta e recolhe o prato do amante. Ao lavá-lo, para pra ver uma notícia.
-Em vinte e quatro horas, a
Polícia Militar começa a sentir os efeitos da greve. A Justiça considerou o
movimento ilegal e ordena que os policiais voltem ao trabalho imediatamente;
caso contrário, a multa aplicada será de cem mil reais por dia de trabalho
recusado. Enquanto isso, vários pontos da região metropolitana vem sofrendo
saques cometidos pela própria população, que aproveita o momento da falta de
segurança em todo o estado.
-Vamos ver isso lá embaixo, Rebeca?
-‘Tá” louco? E se alguém
reconhece a gente?
-Reconhecer como? As únicas testemunhas
o Alexandre deu um jeito de dar cabo. Limpeza.
-E ele? Vai ficar sozinho
aqui?
-Preocupada com o doentinho?
-Sabe muito bem o que eu
quero dizer.
-Não, Rebeca. Sinceramente,
não sei.
-Alguém pode invadir a casa e
denunciar o Alexandre, não sei...
-Olha, a gente está umas três
semanas, praticamente, sem poder sair por conta dele. Sabe lá o que a gente
pode conseguir, agora que o pessoal “tá” tirando tudo das lojas.
-Assaltar uma loja de
conveniência e ser perseguido pela polícia já não foi o suficiente?
-Gosto de viver o perigo.
Como o seu protegido.
-Tudo bem. Vamos lá, então.
-“Bora”- pega a chave e sai
com a amante, deixando a TV ligada. Em questão de segundos, o aparelho é
desligado por Alexandre, que acaba de sair do quarto, ainda com dificuldade.
-Gosta do perigo, Paulo? Bom
saber. Eu também. Mas eu tenho que saber se a vida realmente andou depois que
eu fugi de casa.
No presídio, Murilo acompanha
Irandir que ainda está desacordado. Os carcereiros ainda olham para o detento,
desesperado com a situação do companheiro.
-Eu vou orar por você. Vou
orar o Salmo 23... - diz, nervoso.
O médico chega.
-Com licença- abaixa-se e
verifica os olhos do paciente.
-Salva ele, doutor.
-Vamos ver...
-O que é que ele tem?
-Febre, mau súbito, pele
amarelada. Ele provavelmente contraiu hepatite. Pelo visto, é do tipo
fulminante. Você nem perto dele deveria estar.
-Não posso sair. Ele precisa
de mim. Precisa da minha oração.
-Ele precisa é fazer exame
urgente, meu amigo. Por favor, nos dê licença- responde rispidamente.
-Filha... –Irandir acorda.
-“Tá” tudo bem- segura a mão
do amigo- O doutor chegou, vai cuidar de você.
-Orou tanto pra aparecer um
médico que apareceu um...- afirma, ainda bastante fraco.
-Vamos levar ele pra outra
sala. E você volta pra cela.
-Por favor, me dê notícias
dele.
-Vou, sim. Fique tranquilo
que eu mando notícias.
Os carcereiros levam Murilo
de volta à cela.
-Seu amigo parece ser um
homem de fé- comenta o médico.
-Não é meu amigo, não,
doutor.
-Mas por que ele estava aqui?
-Porque ele é um homem de fé.
Tanto orou que o milagre aconteceu.
Alexandre entra no quarto do
filho de Murilo pela janela.
-O quarto... As coisas... Parece
que “tá” tudo no lugar. Não arrumaram nada. Que vida pra se levar, hein? Pelo
menos, passado é passado.
-Pode entrar, irmã- ouve-se a
voz de Verônica ao longe.
-Tem gente aqui!- assusta-se.
Murilo, Verônica e Natália se
sentam na sala, após terem vindo do culto.
-Eu vou trazer um café pra
gente.
-Não, Verônica, não
precisa... Você já trouxe a irmã aqui, ela deve estar cansada, passou duas
horas sentada ouvindo a palavra, veio conversando com você no caminho... Chega,
não é? Deixa ela ir embora.
-Que indelicadeza... Parece
até que você quer ver a irmã longe daqui... Ou será que quer?
-Como assim, Verônica?
-Você não acha que eu percebi
que tentaram falar baixo depois que eu fui pro quarto? Qualquer cego vê que você
está me escondendo alguma coisa, e me escondendo com a conivência dessa mulher.
-A senhora está redondamente
enganada.
-Não, minha filha, não estou.
Eu reparei: ela não prestou atenção no culto, não abriu a Bíblia nem pra ler a
palavra. Isso não é o comportamento de alguém que quer dar um testemunho, e se
recusa a fazer isso imediatamente. Vamos lá: o que é que vocês estão me escondendo?
Como ela sabe do desaparecimento do “Gigante”? Fala de uma vez, porque se for
alguma coisa ruim do meu filho, eu vou aguentar.
Alexandre sai do quarto e se aproxima
das escadas, sem ser percebido.
-Verônica, por que essa
reação? Eu já disse que essa mulher é uma missionária...
-Por favor, Murilo, eu não
nasci ontem. Te conheço há mais de vinte anos! Eu sei muito bem quando você “tá”
mentindo. De que igreja ela é? Quer dizer, se é que ela é de uma igreja, não é?
-De nenhuma, Verônica. Eu não
sou crente. Não sou evangélica, e muito menos missionária.
-Natália, cala essa boca!
-Não! Deixa ela falar! O que
é? Uma amante sua?
-Que despropósito é esse?
Desconfiar de mim? De mim, Verônica?
-Hoje de manhã, você
convenceu essa mulher a mentir pra mim. Por que eu deveria dar um voto de
confiança?
-Porque ele é seu marido!
-Eu não estou falando com
você... Ainda.
-Você já falou o suficiente.
É a verdade que você quer, e eu vou dizer.
-Ótimo!
-Aliás, eu não saí de São
Paulo e vim pra cá pra contar mentira nenhuma...
-“Tá”, “tá”, me poupa dessa
conversa mole e diz: quem é você e o que quer com o meu filho?
-Eu sou filha do médico
responsável pela sua fertilização in
vitro.
-Quê?
-Natália, volta em outra
hora. Eu vou conversar com a Verônica. Quando ela estiver mais calma, você fala
com ela.
-Evitar essa conversa por
quê, Murilo? O que “tá” acontecendo? Se você é filha do médico, do doutor
Getúlio, isso não importa!
-Importa, sim. Importa porque
ele enganou a vocês dois.
-Enganou como, minha filha?
Seja clara de uma vez!
-O “Gigante”, o filho de
vocês... Ele não foi concebido por conta de uma fertilização in vitro comum.
-Isso não tem cabimento... O
médico mandou eu e o Murilo pro tratamento! Foi assim que eu consegui engravidar,
foi assim que o meu filho nasceu...
-Não era o seu óvulo. O meu
pai enganou a vocês e a mim também. Ele não usou nenhum dos seus óvulos. A
única coisa que ele usou foi o sêmen do seu marido.
-Que idiotice é essa? Você “tá”
querendo dizer o quê com isso? Se seu pai, que você diz ser seu pai, jogou meu
óvulo no lixo, como é que eu fiquei grávida?
Natália passa a chorar
desesperada.
-Com o meu óvulo. Com um dos óvulos
que eu congelei na clínica do meu pai.
-O que você quer dizer com
isso, sua mentirosa?
-Que o “Gigante” é filho do
Murilo... E eu sou a mãe dele!
Os quatro ficam em silêncio.
Murilo, Verônica e Alexandre olham para Natália, incrédulos com a revelação.
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