05/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO V

-Como assim “não vai voltar com a gente”? A senhora tem que voltar!
-Não tenho, não. Aliás, eu fico até surpresa que o motivo de você me cercar seja justamente esse.
-Não é um motivo qualquer. É o meu irmão, seu filho.
-Filho esse que faz parte do meu passado. Eu achei que tivesse deixado bem claro, pra todos vocês, que eu não queria ter aquela vida que eu levava de novo. Nem Bento nem você fazem parte da minha história de vida mais, entenda isso.
-Olha aqui, eu não quero ter aproximação nenhuma com a senhora. Já entendi que pra senhora tanto faz se a gente tá vivo ou morreu. Só que Bento não pensa assim. Ele é que acha que a senhora pode voltar.
-Bom, e por que vocês não o convencem da verdade? De que eu não quero ter mais nenhum tipo de contato com vocês? Será possível que eu tenho de me fazer entender, depois desse tempo todo?
-Catorze anos amanhã.
-Sua memória é boa. Pena a do seu irmão não ser assim.
-Dona Vilma, Bento pode morrer a qualquer momento! Meu Deus, ninguém quer que você deixe seu marido, nem sua casa, pra voltar a morar lá em casa. A gente só precisa que você visite Bento. Será que você não pode perder um dia dessa maravilhosa vida que você leva?
-Fora de cogitação, Ariela- disse, enquanto bebia um suco- Imagina... O que eu vou dizer pra Norberto? “Meu amor, eu tive dois filhos antes de te conhecer e vou visitar um que está à beira da morte”?
-Que se dane o seu marido!
-Não, que se danem vocês! Eu não vou pôr meu casamento em risco! Vou deixar bem claro, pra que você não me venha com apelos sentimentalóides: eu não tenho vocação pra ser mãe, muito menos pra ser atriz e fingir preocupação. Abandonar dois filhos deve significar alguma coisa, não é?
-Significa, sim, senhora: que você não passa de uma vigarista.
-Pense como quiser- levantou-se para ir embora.
-Mas como um bandido entende o outro, vamos ver se o Norberto não vai se comover com o drama da esposa dele, da querida Vivinha.
-Se você abrir a boca pro Norberto, aí é que você pode dar adeus à ideia absurda de que eu vou visitar Bento. Pode parar com as chantagens, Ariela. Eu vou blindar sua entrada na minha casa e na Lust. Vou te impedir de se aproximar de mim e do meu marido! Invente qualquer desculpa pro seu irmão. Mas pra Salvador eu não volto!
-O que é que tá acontecendo aqui?- Celine chegou ao restaurante.
-Hum... Você deve ser a mulher com quem Jayme se amigou, não foi? Pois então manda um recado pra ele: diz que eu não deixei minha família obrigada, não! Fui porque quis! Dê uma desculpa pra ele, porque eu não vou voltar!
-Quem disse que a gente te quer de volta, minha filha? Acontece que Bento tá doente, ele só quer que você lhe faça uma visita no hospital.
-Mas eu não vou. E diga pra tirarem essa ideia absurda da cabeça dele. Quanto a você, já está avisada: nem pense em se aproximar de mim de novo- pega a bolsa- Com licença.
-Eu não acredito nisso... Como é que dois seres humanos podem ter saído desse monstro?
-Eu não vou desistir, não, Celine. Você vai ver, eu vou vencer minha mãe pelo cansaço!
-Será que você não tá aproveitando essa situação pra... Sei lá... Se vingar do que ela fez no passado?
-O que ela fez antes não me interessa mais. Tô com raiva do que ela faz hoje, insistindo em esquecer que eu existo, que Bento existe... A gente não é nada pra ela, Celine. Por que esse ódio todo?
-É a vida que ela escolheu levar, Ariela. Quis se afastar de todo mundo que gostava dela de verdade.
-Só que meu irmão não merece isso.
-Ninguém merece isso. Só que a gente tem que seguir a vida. Em vez de se preocupar com Vilma, a gente tem é que contar a história do Bento pra todo mundo, fazer uma campanha, procurar algum doador porque o tempo tá correndo... Ariela, me promete que não vai fazer nada, que vai esquecer o que houve aqui.
-Não me pede isso, porque eu não consigo.
-Você tem que fazer isso, Ariela! Por você, pelo seu irmão, pelo seu pai. Já não basta a doença de Bento e você querendo trazer um problema novo pra todo mundo? Amanhã, a gente vai pra casa!
-Pra casa?
-Esperar o quê, Ariela? Que Vilma resolva encarnar a mãe zelosa e venha com a gente? E criar expectativa pra Bento? Já é final de ano, vai ser um inferno ter que pegar um avião, enfrentar fila no aeroporto... Eu quero passar essa virada de ano com a minha família, nem que seja no hospital! Amanhã a gente vai pra casa!
Quem me dera se fosse tão simples de obedecer ao que Celine ordenava...

/////

Vilma voltou pra casa. O marido, que já estava lá, deveria ter notado aquele sumiço em plena tarde...
-Por onde você andou?
-O chá que a Marta marcou foi cancelado.
-Eu sei. Liguei pra lá, querendo saber de você.
-Sabe também por que cancelaram, Norberto?- pegou o jornal que estava sobre o sofá e jogou no colo do marido- Subornou o delegado quando foi dar o depoimento sobre a denúncia de prostituição... Agora, o meu nome também tá na roda, meu querido. Esse chá cancelado foi providencial, não teria o que dizer pras minhas amigas se elas me vissem.
-É só com isso que você se preocupa?
-Claro que é só com isso.
-Você poderia me dar apoio, logo agora que eu estou precisando tanto.
-Norberto, eu sou sua esposa. Mas não vou passar a mão na sua cabeça toda vez que uma besteira sua virar manchete da Folha!
-Se aquele desgraçado do assessor de imprensa não tivesse falado nada, a essa altura o escândalo da prostituição já tava no limbo, ninguém mais ia dizer um “A”... Mas o miserável resolveu abrir a boca... Deixe estar. O que é dele está guardado...
-Você não vai fazer nada! Quer expor a gente mais ainda? Imagina se esse homem aparece morto? A culpa vai cair em cima das suas costas! E aí, meu amor, nunca mais a gente sai da capa do jornal! E dos seus erros, eu já estou cheia!
-O que é que há com você, hein? De uns dias pra cá, é essa agressividade toda!
-Claro! Antes você agenciava aquelas meninas com cuidado, agora não tem mais precaução. Coloca um pé de chinelo pra te assessorar e diz todos os seus passos pra ele.
-Pra isso que eu contratei aquele cabra safado, não foi?
-Foi, pra ele te trancar no presídio e jogar a chave no ralo da pia! Além disso, ainda deixa aquele traste do Henrique morando aqui.
-Rique é meu filho, Vivinha! Onde que ele vai morar?
-Idade pra alugar uma quitinete ele tem!
-É só uma fase, vai passar!
-Deixa de ser burro, Norberto! Aquele teu filho nunca foi boa coisa! Bati o olho nele desde que vim morar aqui. E ele não vai parar! Pode encher a boca e dizer pra Deus e o mundo que sente vergonha de ser seu filho, mas come na sua mão! Aposto que ele tá naquela tal de rave, gastando o que pode... Já conferiu o seu cartão de crédito dentro do bolso?
-Já não aguento mais esse cenário de guerra! Até quando Rique não tá aqui, você vem com seu estresse e transforma essa casa num inferno! Já tô cansado disso!
-Verdade? Por que você não acaba com o meu reinado, então? Bota outra no meu lugar, na minha cama! Não faz isso, sabe por quê? Porque sabe que se outra tomar posse disso tudo aqui, o único afeto que ela pode sentir é pelo seu dinheiro.
-Como o que você tem?
-Está enganado, meu querido. Nunca amei um homem como eu amo você.
-Acho bom que seja assim. Sabe que eu seria capaz de cometer uma loucura se eu descobrisse que você não me ama tanto quanto diz. Se bem que... Você já não me procura há muito tempo... Pode ser que um dia eu canse, e coloque outra na cama da gente.
-Faça isso, Norberto. Faça justamente com a mulher que dedicou catorze anos da vida a você e à peste que chama de filho. Aí você vai ver do que eu sou capaz.

/////

Ao voltar do hospital, meu pai tomou um banho e, cansado, sentou-se no sofá. Enrolado na toalha, encontrou uma coletânea de músicas da Nana Caymmi, presenteada pela sua primeira mulher. Coloca o CD no aparelho em bota a primeira música em modo de repetição.
-Ah, vem cá, meu menino. Pinta e borda comigo, me revista, me excita, me deixa mais bonita. Ah, vem cá, meu menino, do jeito que imagino. Me tira essa canseira, me tira essas olheiras de esperar tanto tempo a mudança dos ventos pra eu me sentir com forças, pra eu me sentir mais moça...- diziam os primeiros versos, quando o celular tocou. Tratava-se da Celine.
-Meu amor, como é que tá Bento?
-Deixei ele lá no hospital e vim tomar um banho, comer alguma coisa. O médico tem já o meu número; disse que se ele tiver alguma coisa, me liga. Tá tudo na mesma, Celine. E Ariela?
-Coitada, passou por um perrengue mais cedo.
-Alguma coisa com Vilma?
-Duas: a primeira é que ela conseguiu encontrar Vilma e convenceu tua ex a vir aqui pra conversar. Falou de Bento, da situação que ele tá...
-Ela disse o quê?
-Na cara de pau, que não volta! E ainda falou mais a miserável: que é pra gente inventar qualquer desculpa pra Bento, que ela foi pra se afastar de vocês mesmo... Enfim... Ela deixou a menina de um jeito que...
-Viu que era por isso que eu não queria deixar que vocês duas fossem atrás dessa mulher?
-Você não quis vir, Jayme. Alguém tinha que tomar uma atitude. É o último desejo de seu filho.
-É o que ele pensa que é último desejo. Bento vai se salvar. Meu coração tá me dizendo isso. Bom, acho melhor deixar Ariela descansar um pouco o juízo dela. E a segunda coisa?
-Por que tá tocando “Mudança dos ventos” aí?
-Não tá tocando nada, o som tá desligado.
-Não me faz de idiota, Jayme. É a música preferida do tempo que vocês dois eram casados.
-Achei o CD e coloquei pra tocar. Música normal, como outra qualquer.
-Por isso não quis vir pra cá. Pra Vilma não pintar e bordar contigo de novo.
-Não delira, Celine.
-Às vezes, eu fico na dúvida. Se eu tivesse te deixado, e não ela, você vinha atrás de mim?
-Para de falar besteira... Amanhã eu ligo pra saber de Ariela.
-E de mim? Quando você vai querer saber de mim, Jayme?
-Boa noite, Celine- desligou o telefone, desconcertado.
Cada vez menos, ela se conformava. E eu chegaria à certeza de que eu não era a única insatisfeita com a vida que eu levava. Mas, pelo menos naquela noite de 27 de dezembro de 2011, Celine teria mais uma preocupação. Ao desligar o telefone, resolveu me dar um beijo de boa noite. Eu detestava isso, mas ela insistiu em fazê-lo. E eu não estava lá... Saiu do quarto e foi ao saguão do hotel, desesperada por não saber notícias minhas.
Novamente, eu estava lá, na Lust. Exatamente na calçada. Perguntei ao Gustavo, o balconista do lugar, se Norberto estava lá. Ele disse que o dono da boate não havia chegado. Resolvi esperar. Quando ele estacionou, fui ao encontro dele, que não entendeu meu olhar de quem não sabia o que estava fazendo, nem o que diria.
-E você, quem é?

-Depende. Quem o senhor quer que eu seja?

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