06/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO VI

-Hum, já entendi... Você deve ser uma dessas meninas que veio procurar vaga pra dançarina da boate. A seleção já acabou, viu, minha filha? E... Definitivamente, você não faz o perfil.
-Qual, Seu Norberto? Da boate ou o seu?
-Olha, muitas já usaram essa tática, mas não vai me convencer. E além do mais... Quantos anos você tem?
-Dezenove- menti.
-Com essa cara de debutante? Tem algum documento? RG? CPF? Trouxe alguma coisa pra comprovar?- fiz uma cara que pensei que ele já tinha descoberto meu plano naquela hora- Escuta aqui: eu não quero problema com menor de idade. Não lê jornal? Não vê as coisas horríveis das quais estão me acusando?
-Se o senhor quiser, pode passar por cima desse detalhe.
-Como? Eu nem sei se você tem aptidão pro cargo, se sabe dançar, se serve pra atender as mesas. Ainda tem o problema da idade... Rosto bonito você tem, mas não é o suficiente.
-Não? Como é que o senhor vai saber se eu não mostrar? A gente vai ficar aqui no meio da rua ou o senhor vai me levar a algum lugar pra eu mostrar? Quem sabe sua casa?
-Mas é muito abusada mesmo, viu? Toma vergonha na sua cara, menina! Eu tenho idade pra ser seu pai!
-Se não é, eu não preciso tomar vergonha.
-Deixe de ser abusada! Eu já disse que não quero problema. Quer me deixar passar, por favor? Eu preciso trabalhar!
-O senhor trabalha demais, Seu Norberto. Tá na hora de relaxar, não é, não?
-Vai precisar mais que um rosto bem feito pra me convencer a trabalhar aqui.
-Pois eu vou acampar aqui. Faço plantão esperando o senhor. Tempo pra mim não é problema. Eu sei esperar.
-Você não é daqui... Tua voz é diferente, tem sotaque... Baiana, acertei?
-Bem se vê que o senhor entende de mulher.
-Não é por isso, não, menina. Minha... - percebi que ele falaria da Vilma, mas preferiu não tocar no nome dela. Foi quando eu percebi que ele começava a ceder- Conheço gente de lá.
-Convive?
-Mais ou menos... Tudo bem, tudo bem. Me diz alguma coisa que você saiba fazer.
-Dançar. Dizem que eu danço muito bem.
-E família, você tem?
-Tenho, mas não tá aqui. Moço, eu preciso desse emprego. Cheguei agora em Recife e fiquei sabendo por acaso. É minha chance.
-Acontece que eu já preenchi a vaga, há uns dois dias.
-Se o senhor quiser, me encaixa. Não é todo-poderoso aí dentro?
-Pelo visto, você vai ser bastante insistente, não é?
-Nisso, o senhor tá mais que certo.
-Que tal um showzinho particular?
-Particular?
-Viu só? Mal falei e já pensou besteira... Fica tranquila, menina, eu não quero mais encrenca com a polícia. Não vou te fazer mal. Mas eu quero comprovar se você é boa mesmo.
-Vai fazer isso como?
-Não precisa ficar com essa cara, eu não vou te arrastar pra nenhum motel. Você vai pra minha casa.
-A sua esposa não vai reclamar?
-Como você sabe que eu sou casado?
-Bom... Se eu não me informasse, não vinha até aqui pedir emprego.
-Por isso mesmo eu tô te levando pra minha casa. Se você passar pelo aval da minha mulher... É como uma espécie de conselheira que tenho. Já deve ter se informado sobre ela também.
-Com certeza... É... O Gustavo, o rapaz do balcão, me falou de Dona Vivinha.
-Se você for aprovada, depois você traz os seus documentos e eu assino sua carteira. Prometo que é tudo nos conformes. Fique tranquila, eu não vou te levar pra cama... A não ser que você peça.
Um frio na espinha era tudo que eu conseguia sentir. Passei o caminho todo pensando no que diria pra escapar se ele tentasse alguma coisa. E era lógico que ele ia tentar.

/////

A última coisa que conseguia pensar era em como eu deixei Celine preocupada com o meu sumiço. Lembro-me de ela ter contado depois que infernizou a recepcionista e acionou o pessoal que trabalhava no circuito interno de segurança do hotel, que ficava em Boa Viagem.
-Moça, fica calma. Nós já chamamos a polícia- a recepcionista trouxe um pouco de água com açúcar, mas ela recusou, aos prantos. Não conseguia tomar nada.
-Como é possível que ela tenha saído há meia hora e ninguém tenha parado Ariela? Pelo amor de Deus, a gente nunca veio aqui antes, ela não conhece nada daqui!
-A senhora não tem ideia de algum lugar que ela tenha visitado desde que chegou aqui? Lembro que ontem ela saiu logo depois de colocar as malas, no período da tarde.
-Foi... Mas não é possível, ela não pode ter ido pra... Moça, chama um táxi e pede pra ele me levar pra Boate Lust.
-Eu vou avisar à polícia.
-Não adianta chamar a polícia! Ariela tem que esperar quarenta e oito horas pra ser considerada desaparecida! Se ela tiver lá... Trago ela arrastada, mas ela vai me ouvir, e nunca mais ela faz um negócio desse comigo!
-E se o seu marido ligar?
-Diz que eu tive uma dor de cabeça e fui dormir. Se ele quiser falar com Ariela, diz que ela tá deitada também. Mas vê se não fala nada de polícia, por favor! Não passa ligação nenhuma pro quarto da gente- começou a discar o meu número- Só dá fora de área o celular dela! Inferno!

/////

Eram dez e quinze da noite quando chegamos à mansão dele. Norberto parecia colecionar diversos objetos caros, mas pela opção de ostentar a riqueza que tinha em decorrência dos seus negócios. Considerava-se um invencível. Ao perceber isso, fui fazendo aquele jogo perigoso na tentativa de tirá-lo do pedestal. Ele e a Vilma.
Uma empregada passou pela sala assim que nós estávamos subindo para o quarto dele. Olhou-me assustada, talvez pela minha cara de menina, caminhando de mãos dadas com um homem que deveria ter cinquenta anos ou mais. Voltou de onde havia saído. Constrangido, Norberto me sugeriu:
-Vamos ao meu escritório. Lá, a gente pode ficar mais à vontade.
-Que é isso? Medo de encarar a sua mulher por aqui?
-Ela está aqui, não se preocupe. Pensei que você não a temesse.
-Medo não existe pra mim, Seu Norberto.
-Ótimo, vamos ver o que você é capaz de fazer pra conquistar... A vaga que tanto quer.
Abriu a porta do escritório; uma mesa com vários papais espalhados, muitas garrafas de bebida, pôsteres de mulheres seminuas e um cano de pole dance.
-Já vi que não sou a primeira a vir aqui fazer um teste pro senhor ver.
-Às vezes, eu fico tão atarefado que peço pras candidatas passarem aqui. Não precisa me olhar desse jeito, é um procedimento de praxe.
-Nada mal, hein?
-O que você esperava de um homem da minha posição? Mas viemos pra cá e você sequer se apresentou...
-Um detalhe besta. Isso não vai atrapalhar o que vai rolar entre a gente.
-Apelando para um lado misterioso?
-Prefiro assim, se isso não te incomoda.
-Sabe que eu nunca te vi lá na boate?
-Hum... Já vi que você gosta de reparar em todas que entram lá...
-Reparar não e o mesmo que ser hipnotizado, como eu fiquei nessa noite... - Norberto se aproximou. Eu o repeli, mas não de maneira brusca, para não levantar desconfianças.
-É, mas na hora que eu falei com o senhor, quase não me deu ouvido. Pensei que ia me dispensar.
-Bom, vamos parar com esse suspense.
-Tudo bem. O que o senhor quer que eu faça agora?

/////

Não imaginava que o desespero da Celine fosse ser tão grande a ponto de ela me procurar na boate. Assim que desceu do táxi, viu Gustavo saindo de lá. Não hesitou em abordá-lo.
-Moço, boa noite. Eu tô procurando uma pessoa.
-Pois não?
-É uma menina de dezessete anos, cabelo curto, pintado de preto. Acho que ela veio procurar Vilma, esposa de Norberto Nunes, que é dono dessa boate.
-Eu trabalho aqui, senhora.
-Você viu essa menina? Olha, o nome dela é Ariela.
-Vi ontem, mas não conseguiu falar com seu Norberto, não. Falou com Dona Vivinha aqui fora.
-Não, mas eu tô falando de hoje. Quero saber se ela veio pra cá.
-Desculpa, eu tava lá dentro, não vi se ela veio pra cá.
-Cabelo curto, dezessete anos?- uma prostituta, que estava na calçada da Lust quando eu abordei o Norberto, se aproximou de Celine- Acho que sei quem é... Tinha uma menina desse jeito que tu falou, e que tava conversando com Norberto. Até entrou no carro dele.
-Ai, meu Deus- chorava, assustando Gustavo e a moça- Pra onde ele levou Ariela, você sabe?
-Pra casa dele! A vadiazinha deu um jeito de enrolar Norberto, pedindo emprego de dançarina aqui. Bem se vê que não sabe quem é a cobra que vai dormir com ela. Mas o que é dela tá guardado.
-O que você quer dizer com isso?
-Que a essa hora, minha filha, a mulher dele já deve ter pego os dois no maior amasso. E não duvido nada que, do jeito que Dona Vivinha é “calma”, ela já não tenha rasgado a cara dela. Mas antes, Norberto vai dar um trato naquela menina. Isso, eu te garanto.
-A senhora quer que eu dê o endereço da casa do Seu Norberto?
-Não precisa, não, moço. Eu sei onde é que aquele canalha mora. Mas reza pra ele não fazer nada com Ariela! Antes, quem faz sou eu!- acenou para um táxi.
-Foi você que ligou pra Dona Vivinha e contou, não foi?
-Quem contou não importa. Mas bem que eu queria ver a reação da madame quando viu o macho agarrando uma menina que tem idade pra ser filha dele.
-Reza pra isso não terminar mal.
-Vai sonhando, Gustavo. Isso só pode terminar mal, não tem jeito.

/////

-Bom, deixa eu ver aqui- Norberto vasculhou um estojo que continha diversos CDs- Perfeito. Leo Gandelman, conhece?
-Não. Pra mim é novo.
-Um dos maiores instrumentistas desse país. Sabe uma música maravilhosa que ele fez uma versão?- colocou o CD e adiantou algumas faixas: era uma reedição de “Toda menina baiana”. Dança pra mim- percebeu o meu nervosismo- O que foi?
-Nada.
-Ah, já sei. Precisa de um par pra se sentir melhor? Vem cá, eu te guio.
Dançamos juntos. Ele não estava me desrespeitando, mas eu sabia que não duraria muito tempo toda aquela paciência.
-Mas o que é isso?- Vilma abriu a porta ao escutar aquela música instrumental- O que você tá fazendo aqui?
-Vivinha, calma. Não é nada disso que você tá pensando.
-Cala a boca! É com ela que eu tô falando! Responde, menina! O que você tá fazendo com o meu marido?

-Quer a verdade? Acho que a senhora não vai gostar de ouvir.

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