"All day, all day"!
É ao som desse refrão que Dara coloca o LP
internacional de "O Salvador da Pátria" pra tocar na vitrola,
selecionando justamente "Domino Dancing", a primeira canção do lado
B. Animada com a execução da faixa, toma banho animadamente. Debaixo da água, a
juba que ostenta é momentaneamente acalmada. Antes de sair do banheiro, ainda
ao som da canção do Pet Shop Boys que dura sete minutos, passa o rodo no local
e continua pulando animadamente.
LP? Vitrola? "O Salvador da Pátria"? "Domino Dancing"? Lado B? Se estranhar tudo isso, saiba: estamos em
1990! Se estiver esperando encontros amorosos marcados pelo celular, esqueça.
Primeiro porque WhatsApp está aí pra sair do ar a qualquer momento e segundo
porque Dara pode ter uma condição financeira maravilhosa devido ao trabalho de
juíza, mas carregaria um tijolo de grandes proporções caso quisesse falar com
alguém.
A ideia da nossa musa vintage é pôr um vestido amarelo longo, de largas mangas e sem
decote, porém feito sob medida para um corpo escultural, realçado pelo ar
rústico da bela juíza. O intuito não é ser sexy sem ser vulgar, mesmo porque
essa gíria nem existia em 1990. Dara pegou a primeira coisa que viu no
guarda-roupa. E sejamos sinceros, as demais roupas amontoadas seguem o mesmo
estilo.
O toque final para mais um dia na Vara Criminal da
Comunidade do Pantanal (ela já existia? Não sei!) virá quando se olha no
espelho e resolve passar o pente. No entanto, comenta consigo própria:
-Pra quê isso?- atira o pente longe e pega a maleta
preta, para em seguida trancar sua casa e desfilar com sua maleta preta,
entrando num Gol lançado quatro anos antes.
/////
Na sala do empresário Felipe Almeida Coelho, há a
visita da bela Michele. Claro, não mais bela que a nossa protagonista cabeluda.
-Por favor, sente-se.
-Obrigada.
-Você quer uma água, um café?
-Não, obrigada. Ai, eu não consigo disfarçar, né?
Vou ser capa da mais conceituada revista masculina desse país.
-Pois é. E é melhor você aproveitar essa chance,
antes que as siliconadas e as marombadas tomem essa revista para si.
-Esse é o contrato?
-Exatamente, Michele.
-Onde é que eu assino?
-Calma. Não vá com tanta sede ao pote. Antes, você
precisa fazer uma coisa pra mim. Ou melhor, por nós- o empresário levanta e
fecha as cortinas da sua sala. Em seguida, vai para o LP e coloca "Só Louco"
pra tocar na vitrola. A sala fica à meia-luz- Já reparou que essa trama tem uma
vibe tão nostálgica que volta e meia
alguém está acionando uma vitrola?
-Dr. Felipe, o que é que o senhor está fazendo?
-Como você é ingênua... Acha mesmo que pra posar na
revista basta ter um corpo bonito? Não, minha querida. Aqui, é necessário fazer
um teste de fábrica!
-O senhor não pode fazer isso comigo. A
classificação indicativa dessa história é livre, eu não vou fazer nada que eu
não queira!
-Vamos ver se não!- agarra a modelo.
-Me solta! Eu sou a próxima Garota do Fantástico! Me
larga!
-O que está acontecendo aqui?- Thaynara, a esposa
de Felipe, chega para acabar com a algazarra.
-Meu amor, que bom que você chegou!
-A senhora é esposa desse canalha? Pois saiba que
ele tentou me agarrar! Aliás, conseguiu!
-De novo, Felipe? Assim não dá! Já não consigo
passar pela porta de tanto chifre!
-Thaynara, você não pode acreditar mais numa
aspirante a modelo do que na palavra do seu marido!
-No quesito "palavra", Felipe, até um
dicionário tem mais do que você! E quanto a você, saia agora mesmo da sala do
meu marido.
-Saio, sim! Saio com gosto! Mas isso não vai ficar
assim. Eu vou processar esse pilantra por assédio! Seu nome não vai mais sair
da pauta do "Jornal Nacional"!
-Acho difícil. O Collor anda mais perseguido do que
eu ultimamente.
-Olha aqui, sua... Nem ouse manchar a reputação da revista do meu
marido com sua acusação leviana!
-Leviana? A senhora me viu sendo agarrada por esse
cafajeste e quem está entendendo tudo errado sou eu?
-Ah, vá! Quem é que me garante que não foi você
quem o incitou a esse comportamento libidinoso?
-Quer saber? Um canalha e uma corna são difíceis de
aturar, mas uma porta que nem essa mulher não dá! Pode aguardar a notificação
judicial no seu escritório, Dr. Felipe! Juro que o senhor vai me pagar, e com juros,
por essa humilhação. Cafajeste!- Michele os deixa a sós.
-Por que você está me olhando assim? Eu não fiz
nada com essa moça.
-Felipe, não é a primeira vez que eu te pego nessa
situação, e eu só não corto o mal pela raiz porque tem criança acordada a essa
hora vendo suas presepadas! Como é que você tem coragem de manchar a reputação
da revista dessa forma? O que vão pensar?
-Thaynara, essa moça está mentindo. Eu juro que sou
inocente...
-Tá botando os dedos pra trás por quê? Não jure em
falso, seu canalha! Foi exatamente assim que você me conheceu.
-Não, senhora.
Você era modelo, eu já era um fotografo conceituado, mas você não se atirou
pra cima de mim, como essa aproveitadora fez!
-Chega de testar a minha paciência, Felipe! Pensa que
eu não sei das vezes que você chega tarde em casa por estar com outras?
-Você só pode ter ficado maluca... E ainda quer que
eu seja conivente com essa loucura...
-Presta atenção, Felipe... Olha pra mim, filho da
mãe! Eu posso te apoiar publicamente se essa moça cumprir com a promessa de te
processar... Posso ignorar também todas as vezes que você me fez de palhaça...
Mas se eu descobrir mais uma escapada sua, por menor que seja, eu acabo com
você. Com você e essa revista!
-Quem você pensa que é pra me ameaçar? Hein? Se eu
fosse você, não subestimaria o poder de um homem como eu!
-Não me julgue por não ser tão baixa quanto você,
Felipe! Não ouse!- Thaynara pega um vaso e atira contra a vitrola- E tira essa
música, é dos anos setenta e não condiz com a ambientação da novela!- volta a
pôr a bolsa no ombro e se retira da redação da revista.
-Coitada... Ela pensa que me mete medo.
-Eu estou ouvindo, pilantra!
/////
O jovem engenheiro Antonio supervisiona a reforma
no Viaduto do Cabanga naquele 1990 (existia já? Não me aterei à lógica, nem sei o que faz um
engenheiro...).
-Vê só, se não quer ser prejudicado pela falta de
verossimilhança, pelo menos não deixe eu ser engolido por nenhum coadjuvante.
Eu sou o protagonista...
Não, você é o mocinho chorão. Quem reina nessa
baderna é Dara. Agora se concentre na sua fala!
-Bom dia, Seu Silviano.
-Opa, Doutor. Bom, dia.
-Já colocou os explosivos pra liberar o espaço da
rua?
-Ah, sim. Eles serão acionados em dez segundos. Só
estava esperando sua confirmação- Silviano aperta o botão.
-Silviano, você tem certeza que os concretos não
vão voar tão longe assim?
-Com certeza, Doutor. Eles alcançam, no máximo, trinta
metros de distância.
-E a quantos estamos do viaduto?
-Vinte e nove centímetros.
-Ainda bem que todas essas falas couberam em dez
segundos.
-É o pacto ficcional.
Obviamente, a explosão ocorre e acaba vitimando
alguém. No caso, Antonio, que leva uma pancada na cabeça, e desfalece em meio
ao nevoeiro...
Dara tenta chegar ao fórum e vê aquele pedregulho
todo. Assustada, desce do carro e a única pessoa que consegue ver é Antonio.
Corre para socorrê-lo. Toca levemente o seu rosto algumas vezes, sem êxito.
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