29/12/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 30


-Tu pretendes adiantar o casamento?
-Pretendo.
-Adorei a notícia!- Nete interrompe o diálogo entre Valente e Fabiano- E a noiva? Já sabe que subirá ao altar mais cedo?
-Não, mas saberá por intermédio de mim mesmo, que sou o noivo, irmã.
-Valente, não estás fazendo isto por conta da minha decisão em demover-te do posto...
-A minha atitude não tem nada a ver com ninguém além de mim mesmo, Fabiano. Quero saber se a igreja estará pronta em trinta dias para organizar o casamento.
-Claro que estará!- prontifica-se Nete a responder- Eu mesma farei questão de adiantar os trâmites que envolvem tu e Cissa.
-Ótimo.
-Finalmente o dia tão esperado está chegando- Nete abraça o músico- Precisamos usar o salão que fica atrás da Comportas para realizar a festa de casamento...
-Não, aqui não. A única cousa que vai ser realizada aqui é a cerimônia. Quero uma cousa simples, a mais simples possível.
-Estás amalucado se achas que gastarei uma quantia considerável alugando vestido e passando horas a fio num salão para exibir-me numa cerimônia de casamento qualquer!
-Se o noivo disse que não será nada que chame a atenção além do próprio casal, não será a senhora que gastará algo a mais. Tem que ser inesquecível pelo que vai acontecer, e não por quem estará lá além de mim e da Cissa.
-Não se discute, então, sobre isto. A cerimônia será a mais simples.
-Ainda acho que a Cissa não gostará nem um pouco da tua atitude, Valente.
-Já disse, Irmã Nete. O importante é o casamento.
-Está bem, está bem. Como disse o meu marido, isto não será posto em discussão- abraça-o novamente- Parabéns, varão valoroso! Finalmente fizeste a coisa certa!
-Nete! Até parece que ele nunca fez nada que merecesse a nossa consideração.
-Os últimos tempos, confesso, fizeram com que eu mudasse minha opinião a respeito do Valente... Não me olhem desta forma, mentir é pecado.
-Que coincidência. Sobre a senhora eu poderia dizer a mesma cousa.
-Bem, eu tenho cousas para resolver sobre a liturgia de hoje. Terão que dar-me licença.
-Claro, querida. Deixe-nos a sós. Fico feliz pela tua iniciativa. Tenho certeza de que vocês serão muito felizes.
-Tomara. O senhor vai dar-me licença, mas daqui a pouco o culto começa e não haverá tempo para conversas.
-Fiques à vontade, filho.
-Obrigado- Valente senta ao lado de Tato, que percebe a maneira ríspida como ele vem tratando os demais.
-Algo de errado, Valente?
-Por que perguntas isto?
-Não costumas falar com as pessoas deste jeito. Sobretudo com eles.
-De que forma acreditas que estou eu falando?
-Como se quisesses que alguém perceba que há algo grave em teu discurso. Por isto que eu pergunto o que há de errado contigo, meu amigo.
-Responda-me uma cousa, com toda a sinceridade.
-O que queres saber?
-Eu sou daquela espécie de pessoa que julga os outros? Que insiste em não respeitar os meus semelhantes? Porque se eu for assim, eu preciso mudar o quanto antes.
-Seja lá o que tenham dito a ti, não acredites. Tu és um ser humano sem igual.
-Quem sabe foi este o meu grande erro?
-Praticar o bem não é nenhum demérito, Valente. Se não sabem reconhecer o que tu fazes de bom, paciência. Mas eu sou suspeito para falar, já que me ajudaste tanto.
-Tu perguntaste a mim o que havia de errado comigo. Não é comigo, mas sinto que alguém está prestes a dar um mau passo.
-Se tiveres algum respaldo com esta pessoa, melhor que tu intercedas por ela.
-Acreditas nisto mesmo?
-Pelo pouco que conheço do meu amigo, sei que se eu estivesse na mesma situação, dirias o mesmo para mim.
-Mudando um pouco de assunto: pensaste no que o teu tio havia contado a respeito do Kleber?
-Continuo pensando. Mas não quero dar um passo maior do que a perna e deixar mais dor pelo caminho da minha família.
-O quê?- Cissa grita pelo celular, assustando Michel e Beatriz, que estão em sua casa- Mentira o que estás me dizendo, não é? Ele falou isto mesmo? Até que enfim ele caiu em si, graças ao bom Deus! Obrigada por ter me avisado, irmã! OK, a paz... – desliga- Vocês não vão acreditar!
-Pela felicidade exultante, deve ter algo a ver com o tal varão valoroso- suspeita Beatriz.
-Exatamente!
-Contes, minha irmã. O que houve?
-Dentro de um mês, eu serei a esposa de Valente Valença! Ah, que maravilha!- corre para abraçar Michel, que está na cozinha preparando uma sobremesa.
-Não sei quem é este cidadão na fila da padaria do Seu Joaquim, mas... Parabéns, amiga!- Beatriz também comemora a atitude de Valente.
-Parece até mentira que ele finalmente aceitou adiantar o nosso casamento!
-É, Cissa. A tua estratégia de tentar seduzir o Valente saiu melhor do que a encomenda- observa Michel- O gajo ficou tão enlouquecido de desejo que inventou de abreviar a tão aclamada virgindade para ficar contigo.
-Infelizmente, ele resistiu aos meus encantos. Mas até que foi bom. Agora já tenho data e hora marcada para que nós finalmente possamos ser um só!
-Já que tu só tens um mês, nós temos que ir às melhores lojas, procurarmos o melhor vestido...
-Amanhã mesmo, nós vamos ao shopping, e eu quero passar pelo teu crivo. Quem entende melhor das últimas tendências da moda do que tu, Beatriz?
-Olhes, mas para a minha felicidade ser completa, eu daria tudo para que a Olívia estivesse aqui. É verdade que sempre tivemos as nossas rusgas, mas eu nunca imaginei que fosse sentir tantas saudades da minha irmã.
-Sabes o que eu acho curioso, Beatriz? É que muitas vezes, nós saíamos para beber, frequentávamos as raves, dormíamos em motéis, às vezes até na rua. E sempre que o teu celular tocava, era a Olívia ligando preocupada, querendo saber o teu paradeiro, mas tu nunca atendias- relembra Olívia- Agora a carola da Família Gusmão Alencar és tu.
-Mas nenhuma notícia até agora, Beatriz?
-Nada, Michel. Parece que a Olívia foi engolida pela terra.
-Tinhas comentado que o professor da tua irmã foi atrás de informações- Michel busca acalmar a amiga- Vamos crer que ele trará boas informações a respeito de Olívia.
-Eu não costumo enganar-me com as pessoas, Michel. Mas aquele homem inspira em mim uma confiança fora do comum, mesmo não sabendo nada acerca do tal professor. Sou capaz de apostar tudo o que tenho, mas acredito que ele não voltará, seja lá de onde tenha ele ido, sem notícias.
Em repouso, Olívia acaba adormecendo um pouco naquela longa madrugada. Insone, o professor caminha pelos corredores do pronto-socorro, quando vê o médico com um copo descartável de café na mão. O profissional da saúde aborda o misterioso homem.
-Foi o senhor quem trouxe a Olívia Gusmão Alencar pra cá e o outro bandido, não foi?
-Sim, eu mesmo.
-Tivemos que transferir o Alonso para outro hospital, que tinha melhores condições para fazer a cirurgia.
-Alonso...
-É o nome verdadeiro do sequestrador, Alonso. A polícia levantou a ficha completa do bandido e descobriu que ele utilizava uma falsa identidade pra frequentar a universidade das vítimas sem ser notado. Amanhã, a perícia será concluída e saberemos que o disparo contra o bandido foi acidental, que o tiro saiu, literalmente, pela culatra. Esteve por um triz a vida da Olívia.
-Mas quanto ao estado de saúde do rapaz?
-Bom, devido à gravidade do caso, o Alonso está em coma. Mas se ele escapar, é lógico que sofrerá as sanções da justiça. E...
-Continues, Doutor.
-Tudo indica que o rapaz ficará em estado vegetativo por tempo indeterminado.
-E pensar que tudo isto poderia ter sido evitado se houvesse tolerância, se fosse praticado o respeito... Agora, a Olívia está abalada sobre uma cama de hospital, e este rapaz luta para sobreviver.
-Deus que me perdoe pelo que eu vou dizer agora, mas eu não tenho pena, não.
-Não digas uma coUsa destas.
-Digo, e digo por saber de mim mesmo. A Olívia não foi a primeira que aquele canalha atentou contra a vida. Basta ver a quantidade de meninas que não tiveram a mesma sorte que ela. E tudo por não querer que ela fosse feliz com o próprio credo? Chega a ser assustador quando aparece na televisão ou no jornal um monte de gente morrendo porque acredita em alguma coisa, porque um louco acha que é dono da vida e se sente no direito de tirar. Pra mim, que luto todos os dias pra salvar as pessoas, é desumano.
-Perdoes. Muitos dos erros que o ser humano comete são porque ele não sabe que está errando.
-Vai me desculpar, mas um cara que mata meninas com um futuro pela frente, só por acreditar que a crença delas não passa de uma mentira, e esconde os corpos num galpão longe da civilização, no meio do mato, sabe bem a monstruosidade que está fazendo.
-E com relação à Olívia...
-Acho prudente deixar a moça aqui por mais um ou dois dias, ela está muito debilitada por conta dos dias sem comer. E certamente a polícia vai colher o depoimento da Olívia
-Tudo bem. Assim que ela acordar, eu a comunico.
-O senhor é pai da moça?
-Amigo, de muitos anos.
-Raros são os amigos como o senhor, que se mostram tão preocupados.
-A raridade, Doutor, está em sair pelo mundo afora e encontrar amigos de verdade.
Chegou o nono e último dia de internação de Kleber. O agente de viagens já está acordado, mas Dora preferiu dormir em casa para buscá-lo na manhã seguinte. Receosamente, Tato abre a porta do quarto e olha para o rosto do pai, que não sabe como encará-lo.
-Desviando o olhar? O natural seria que eu fizesse isto.
-Que bom que tu apareceste...
-O meu tio falou que querias falar comigo.
-Sim, é verdade. Acho que chegou o momento de termos uma conversa que definirá o futuro da nossa relação de pai e filho.
-Está bem. O que tanto tens para falar comigo?
-Só uma palavra eu preciso dizer-te, Otávio: perdão.

22/12/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 29


Receosa, a jovem abre os olhos e não escuta nenhum barulho, a não ser o dos ratos que já povoavam o galpão fétido sobre os cadáveres trazidos por Nicolas.
-Meu Deus... O que foi que fizeste comigo?- pergunta, em voz baixa, com medo da presença de Alonso naquele lugar. Certa de que foi ouvida pelo doutorando, volta a fechar os olhos novamente, para não ver o seu rosto. Vários passos ficam cada vez mais fortes, até que uma voz grita:
-Olívia!
A estudante reconhece a voz de seu professor, que está acompanhado pelos policiais locais. Sentindo-se segura, a moça tenta mover-se e vê o rosto de seu amigo enquanto chora de alívio pela inesperada presença do docente. Dois agentes da polícia colocam a cadeira de pé e desatam os nós que amarram a mestranda, que não tem forças para colocar-se de pé. O professor corre ao seu encontro e, ajoelhado, abraça a moça. Um dos policiais chama uma ambulância ao ver o degradante estado físico de Alonso, jogado ao chão por conta de um golpe quase fatal: o tiro que disparou contra sua refém saiu pela culatra, acarretando numa rápida e profunda perda de sangue.
-Eu pensei que eu fosse morrer! Achei que ele fosse matar a mim, professor...
-Não precisas temer mais nada. Acabou, Olívia. Graças a Deus, tudo acabou!
O burburinho acerca da amizade entre Tato e o saxofonista varonil e valoroso, entretanto, arrastava-se mais um pouco. O reforço para as maledicências dos vizinhos nascia através do retorno do filho de Dora e Kleber ao apartamento do músico. Normalmente, dir-se-ia que Cissa é a mais preocupada com a situação, mas sua estratégia em pressionar o noivo acabou por deixá-la mais segura de si. Os rapazes cumprimentam-se com um abraço.
-Entres, Tato.
-O que tu me contas de novo?
-Muita coisa aconteceu nos últimos dias. Feridas fortes, inclusive físicas.
-E a Cissa? Pensei que eu a encontraria contigo aqui.
-Provavelmente está trabalhando.
-“Provavelmente”? Pelo teu tom, até poderia pensar que não a vês há um bom tempo.
-Nós tivemos uma pequena divergência.
-Mas não por minha causa, não é?
-Foi por minha causa, confesso. Era sobre isto a que eu me referia quando falei de feridas. Só que é melhor tratar de assuntos mais amenos.
-Tu vais à igreja hoje?
-Vou, sim. Preciso falar algo muito sério com o Pastor Fabiano. Por que a pergunta? Queres visitá-la novamente?
-Melhor do que isto. Quero agradecer o que aconteceu com... Com o meu pai.
-Fico feliz por isto. Só prova que não ficaram mágoas entre vocês dois.
-Ficaram, sim. Só não acho que é bom cultivar o ódio entre um pai e um filho que tanto se amaram. Já que nada mais voltará a ser o que era antes...
-Se eu fosse tu, não teria tanta certeza. Sinceramente, eu não acredito que depois de tudo que foi dito entre teu pai e eu, o Kleber insista em permanecer afastado do filho. E depois, Deus permite a construção de muralhas porque conhece o Seu poder de derrubá-las.
-Como sempre, falando a cousa certa- Tato e Valente escutam a campainha- Estás esperando alguém?
-Estou esperando coragem para seguir em frente- a afirmação de Valente deixa o amigo confuso, até que Hélio aparece à porta do apartamento.
-Posso falar contigo, Valente?
-Claro, Hélio. Fiques à vontade.
-Eu trouxe-te um presente.
-Espero que seja uma espécie de abono salarial.
-Sou bondoso, mas não tanto- ironiza- Para ti.
-O que é isto?
-Como tu bem sabes, costumo comprar pela internet vários CD’s de música brasileira para que tu toques nas apresentações do Recifeeling. Daí, fiquei sabendo da existência deste e comprei um para te dar de presente. Sei que é do gênero que tu gostas.
-“Deus do secreto- Ministério Sarando A Terra Ferida”? Prometo que vou ouvi-lo. Obrigado pelo presente, eu não esperava. Queres tomar um café conosco?
-Valente, se tu me permites, eu vou descansar um pouco no quarto...
-Não precisas fugir de teu tio, Tato. Também vim aqui para falar contigo.
-Por quê? Que assunto temos para tratar? Acaso vieste discutir comigo?
-Não, pois sou do núcleo da história que aceita pregações de paz e amor sem contestar. E convenhamos que, desde que sofremos a passagem de tempo neste enredo, não fazemos outra cousa além de armarmos, como diriam os meus amigos brasileiros, uma “palafita”.
-“Barraco”, Hélio.
-Que seja. Vim aqui, Tato, por conta do Kleber.
-O que foi? Algum problema com o transplante?
-Quanto a isto, não te preocupes, ele vem recuperando-se de maneira excelente. Só que ele deseja falar contigo?
-Sobre o quê?
-O assunto ele não me adiantou. Mas a Dora esteve te procurando na clínica do Dr. Lopes e tu já havias recebido alta.
-Olhes bem, Tio, eu não acho que seja uma boa ideia ir ao encontro do meu pai, ainda mais no estado convalescente no qual ele se encontra.
-Quem deseja falar contigo é Kleber. Melhor dizer este teu argumento pessoalmente.
-Vamos lá, Tato. Não custa nada. O teu pai não pode dizer nada que te machuque mais do que todo este tempo de afastamento.
-Eu prometo que vou pensar. Por enquanto, é somente isto que eu posso garantir.
A presença do professor é o suficiente para que Olívia se sinta mais calma. A jovem é acompanhada até o hospital mais próximo para ser medicada, enquanto Alonso segue inconsciente em outra ambulância para o mesmo centro médico. O seu caso é o de maior gravidade, e o que chama a atenção dos paramédicos, que tentam reanimá-lo antes de submetê-lo a uma operação para a extração do projétil e contenção do sangue. Deitada numa cama, de olhos fechados, Olívia tem uma de suas mãos seguradas pelo docente, enquanto a outra é perfurada por um soro. Um enfermeiro do hospital público avisa:
-Desculpe, senhor, mas vai ter que esperar pela moça lá fora.
-Por quê? Deixes que ele fique aqui, por favor- apela Olívia.
-Eu sinto muito, mas só permitimos acompanhantes quando os pacientes são menores de idade ou tem mais de sessenta anos.
-Entendas que ela ainda está muito frágil, rapaz. E, independentemente disto, não vou deixá-la sozinha.
-Qual o seu parentesco com a paciente?
-Somos amigos, e mais nada. Mas vejas o estado em que a Olívia se encontra.
-Tudo bem, eu não vou mais incomodar. Com licença...
-Moço, esperes. Tens notícias do Nicolas?
-Aquele que foi encontrado no mesmo lugar que você? Pelo que fiquei sabendo, a polícia já estava há um tempo no encalço do rapaz.
-Procures ficar em repouso, Olívia. Depois, quando estiveres recuperada, poderás depor e contar tudo o que aconteceu.
-“Todo o horror que eu vivi”, o senhor quer dizer, não é? Aliás, como o senhor sabia onde eu estava? Como sabias que eu tinha sido feita de refém naquele galpão?
-A tua irmã chegou a ligar para mim.
-Beatriz... Eu preciso falar com ela, contar o que aconteceu.
-Não fiques tão agitada, eu vou telefonar e vocês conversarão à vontade. Mas a Beatriz sentiu que alguma cousa havia acontecido contigo e falou comigo. Avisei-lhe de que faria uma viagem, mas que contataria o departamento de pós-graduação para saber se estavas frequentando as aulas.
-E com relação ao meu cativeiro? Quem te contou que eu estava lá?
-Assim que desembarquei na cidade, eu fui ao Sófocles.
-A lanchonete que fica nas dependências da universidade... Cheguei a ir com o Nicolas algumas vezes.
-Falei com o gerente e mostrei uma foto tua, para saber se ele tinha alguma ideia de onde poderíamos encontrá-la. Foi então que ele me confidenciou uma situação bastante suspeita, que despertou nele a desconfiança pelo teu sequestrador. Tu lembras o que ocorreu antes de seres transferida para o galpão abandonado?
-A minha última lembrança é de que nós estávamos conversando no Sófocles. Depois disto, eu despertei já amarrada a uma cadeira, presa naquele cativeiro horrível. Mas não consigo recordar como cheguei até lá.
-O gerente anotou o pedido feito por vocês dois: um refrigerante em lata para cada um. Segundo o que ele contou para mim, o Nicolas veio até o balcão para pegar a bandeja enquanto tu esperaste à mesa. Naquele momento, o gerente virou-se de costas, até perceber uma cena estranha. A parede da lanchonete é parcialmente espelhada e ele notou que, numa das latas, o rapaz despejou o conteúdo de um frasco, mas não falou nada. Quando ele viu que não foste mais à lanchonete, passou a relacionar o teu “amigo” ao desaparecimento das estudantes da universidade.
-Quer dizer que ele foi o responsável por denunciar o Nicolas?
-Não havia como provar que ele era o responsável pelo sumiço das moças. Só que quando eu o procurei e falei de ti, eu o convenci a contar para polícia. Foi então que ele apareceu no Sófocles.
-Como assim? O Nicolas voltou à lanchonete? Mas com qual propósito?
-Dissimular, passar despercebidamente. Se ele desaparecesse ao mesmo que tempo que tu, o seu sumiço também passaria a ser investigado.
-Professor, o senhor não chegou a confrontá-lo, chegou?
-Percebi que era necessário agir com precisa cautela, Olívia.
-Mas como foi que ele não desconfiou que o senhor conhecia a mim?
-O gerente da lanchonete apontou discretamente para que eu o reconhecesse como teu acompanhante dos últimos tempos. O rapaz pediu o mesmo de sempre, agiu como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse te levado ao galpão, como se não tivesse planejado o teu assassinato.
-Aquele homem é um monstro. Não parei de pensar num só momento que não sairia com vida daquele lugar. O Nicolas estava disposto a acabar comigo, sem deixar o mínimo de rastro da minha existência. Tinha um ódio irracional, não só por mim quanto por todas as... – Olívia volta a chorar- Todas aquelas mulheres que ele ceifou. Só de imaginar o horror pelo que elas passaram, eu...
-Tu estás bem agora, estás com vida, Olívia. Tens que pensar nisto agora, que o pesadelo causado por este homem acabou.
-Mas continues, por favor. Diga-me como conseguiu fazer a polícia ir atrás do Nicolas.
-Quando eu estava entrando na universidade, cheguei a ver os cartazes das moças que haviam desaparecido e sabia que a mesma pessoa havia sido a responsável pelo desaparecimento de todas. Tanto o gerente quanto eu ficamos conversando durante o tempo em que aquele rapaz lanchava, como se não houvesse nenhum peso na sua consciência.
-Porque não havia.
-Foi então que eu mandei uma mensagem, através do celular, para a Embaixada Portuguesa, explicando que teu caso, que ainda não havia tido uma denúncia formal, poderia estar relacionado ao desaparecimento das outras estudantes. Eles contataram a polícia e nós seguimos o rapaz. Fomos até o galpão em que ele te mantinha como sua refém e esperamos que ele saísse para invadir o local e descobrir se ele te escondia. Mas quando ouviram o disparo que ele deu para acabar contigo, os agentes invadiram. Chegaram até a pedir que eu esperasse fora do galpão, que era uma operação perigosa e que um civil não poderia envolver-se naquela questão, mas eu tinha que estar lá.
-Por que, professor?
-Porque tu vieste a este lugar por minha causa, e era a minha obrigação zelar por tua segurança, como sempre fiz.
-Não quero que te sintas culpado. Eu só tenho a agradecer ao senhor.
-Tens certeza do que dizes, Olívia?
-Eu vi a morte de perto, a violência, o medo ao meu redor. O que eu vivi eu não sou capaz de desejar nem mesmo para o meu pior inimigo.
-Teu coração não permitiria que tu tivesses um pensamento tão mesquinho quanto este.
-Mas eu quero agradecer ao senhor, de coração. Porque tudo isto serviu para que eu tivesse em mim a certeza de estar no caminho certo.
-O que tu julgas como “caminho certo”, Olívia?
-Amar a Deus, ter fé somente Nele, crer em Sua existência e na manifestação do Seu poder. Se antes havia em mim algum resquício de dúvida, se antes eu me sentia rejeitada por parecer a única prudente em meio a um mundo néscio, tida por muitos como uma pessoa ridícula por amar alguém que eu não poderia ver, agora eu tenho a ciência de que Ele não me desamparou nunca. É por Ele que estou eu hoje viva. E é para Ele todo o amor que eu tenho. Obrigada. Mil vezes obrigada por me fazer entender este amor do qual não quero desfazer-me nunca. Obrigada, professor.
A mestranda e o docente trocam o mais caloroso abraço que já tiveram desde que passaram a conviver juntos. Era como se tudo agora parecesse caminhar para um mar menos agitado. Até o fato de Valente e Tato chegarem juntos à Comportas, observados por Fabiano, já não era algo que atemorizasse os rapazes.
-A paz do Senhor.
-Amém- ambos respondem.
-Sejas bem-vindo, meu rapaz- Fabiano fala com Tato.
-Obrigado, Pastor. Eu posso entrar?
-Como se estivesses em tua própria casa. Aliás, num lugar de santidade e adoração, não devemos fazer acepção de ninguém.
-Obrigado- Tato entra e ajoelha em frente ao púlpito, onde agradece a Deus pela saúde de Kleber, restaurada após o transplante.
-Podes mesmo ajoelhar, meu amigo?- Valente pergunta, ainda do lado de fora, referindo-se à cirurgia.
-Acho que não, mas faço este esforço de qualquer maneira.
-Por que ele não poderia ajoelhar-se? Acaso está ele doente?
-Convalescente, Fabiano. Bem, eu espero que o varão valoroso também possa entrar na igreja...
-O que é isto, Valente? Acabei de dizer ao teu amigo que não há acepção de pessoas neste lugar. Por que logo tu serias impedido de entrar aqui?
-São tantas surpresas desagradáveis ultimamente que nem isto me assustaria.
-Valente, compreendas que o meu ato...
-Quem tem algo a compreender és tu, porque tomei uma decisão que facilitará a todos de entender quem sou eu verdadeiramente.
-Ao quê tu te referes?
-Quero que, no mês que vem, a igreja Comportas do Céu celebre a minha cerimônia de casamento- diante da declaração, Nete aparece no templo, completamente boquiaberta com a notícia.

15/12/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 28


-Como podes ser tão néscia desta forma? Cissa, sabes que... Que eu não posso!
-Não podes ou não queres?
-Por que estás fazendo isto comigo?
-Porque tenho a mais absoluta certeza de que tu queres também.
-Por Deus, Cissa, sabes que eu não posso!
-Somos apaixonados e vamos nos casar. Qual o problema, Valente? Temos uma vida inteira para ficarmos juntos, não queremos a mais ninguém além de nós mesmos. Do que tens medo? De que saibam?
-Alguém já sabe, Cissa. E sabe Ele que neste momento, eu estou em pensamento com o teu corpo sobre o meu.
-O nosso casamento vai acontecer, mais cedo ou mais tarde. Eu sei que não há ninguém com quem tu queiras ter a tua primeira vez, só comigo. Por que não pode ser hoje?
-Para que tu me ames hoje e se canses de mim depois?- o rapaz vira o rosto e fecha os olhos.
-Isto eu posso garantir que não vai acontecer, porque sei perfeitamente bem o que sinto por ti- aproxima-se, desabotoando a camisa que Valente está vestindo e encostando os seios sobre o peitoral do rapaz- Não há como negares que não me desejas.
-Pensas o quê? Que não imagino nós dois juntos, na intimidade? Claro que imagino, Cissa, porque sou homem. Mas há um abismo entre querer-te e ter relações contigo.
-Vais recusar a tua noiva? Aquela por quem tu suspiras dia após dia? Tendo a oportunidade de ter a mim em teus braços, não irás querer?- beija-lhe a ponto de morder o pescoço- Hein?- Cissa o puxa para a cama, fazendo com que o rapaz fique sobre ela, quase sem hesitar- Não queres descobrir o corpo que a partir de hoje será somente teu? Acaso rejeitarás a prova de amor que quero dar a ti, Valente?
-Estás certa... Eu não posso recusar uma prova de amor da minha noiva- Valente levanta- Esperes.
-O que é?- apoia os braços sobre a cama, certa de que o convenceu a praticar sexo.
-Fiques aí. Eu vou dar a oportunidade perfeita para que proves o teu amor por mim- fecha a porta, deixando-a mais animada.
Valente fecha os botões de sua camisa, sai do Edifício Portuário e vai até a calçada, onde as roupas da noiva ficaram. Rapidamente, sobe de volta ao apartamento, colocando-as em suas mãos, agora voltadas para trás. Com pesar, joga as peças sobre a cama.
-Que é isto?
-Aqui está a prova do que sentes por mim- volta a virar o rosto- Se me amas tanto quanto alega, vais embora.
-Valente... Não podes fazer isto comigo.
-E comigo, Cissa? Podes tudo fazer? Infelizmente, eu já escolhi por nós dois, e se tu não consegues respeitar, é sinal de que estás com o homem errado.
-Meu amor...
-Depois do casamento, Cissa! Antes, não!
-Penses bem no que estás fazendo. Podes estar destruindo o que resta da nossa relação.
-Eu posso desejar-te como um alucinado, como sei que faço mesmo. Mas não vou faltar-te com o respeito, Clarissa. E eu exijo que tu faças por mim exatamente o mesmo.
-Acaso pensaste na possibilidade de eu sair por aquela porta para não mais voltar?
-Com amor, pode-se ir até ao fim do mundo, Cissa. Se tu não voltares, é a prova definitiva de que nunca me amou. Reclamas da minha decisão? Pois agora é tu quem vais decidir por nós dois.
Chateada, ela vira de costas e põe a roupa, enquanto Valente está voltado para a porta. Terminada a arrumação, Cissa só não tira a toalha molhada da cama, mas dirige-se ao noivo.
-Do fundo do meu coração, eu espero que me perdoes pelo que tentei fazer- a moça parte para a sua casa. Ao contrário do que se imagina, sai contente, por entender que a negação à transa pressionará o músico a acelerar os trâmites do matrimônio.
Valente corre para fechar a porta e volta ao quarto, onde toma a toalha para si e sente o perfume do corpo de Cissa. Segue para o banheiro, onde se despe completamente, liga o chuveiro e toma aquele que pode ser considerado o banho mais gelado que já tomou em toda a sua vida, até que seja dissipado aquilo que foi sentido em decorrência da provocação.
O fato consumado é que ninguém está vivendo a normalidade nos dias que se seguem. Kleber, por exemplo, vivia a angústia de repetir o agradecimento àquele que sofreu com seu desprezo absoluto. O protagonista-título é o que mais dispensa comentários, especialmente quando o dia seguinte reserva outro desagradável acontecimento. Uma consequência do seu ato desmedido de auxílio ao próximo... A Comportas do Céu recebe o saxofonista logo cedo, quando Fabiano abre as portas do templo e Nete está para arrumar as cortinas, até reconhecer, estando ao fundo, a voz do jovem músico órfão.
-Por que tanta pressa em chegar, meu filho?
-Não aguentei mais ficar em casa, em repouso absoluto. Precisava estar aqui para sentir-me vivo, entendes? Daí, eu já apareci logo para que o senhor ou a sua esposa me digam quais são os hinos que eu tocarei hoje, pois já posso ir ensaiando.
-Há a necessidade de termos uma séria conversa, Valente. Senta-te aqui.
O rapaz coloca o saxofone sobre o banco e atende a ordem de Fabiano. Nete fica atenta a cada palavra.
-Algum problema, Pastor?
-Tua noiva não vem hoje?- Fabiano também toma o assento.
-Não sei. Não nos falamos desde ontem, ela não me avisou sobre vir ou não a igreja hoje.
-Ótimo. Depois tu conversas com ela.
-Sobre o quê? Alguma cousa grave?
-O nível da situação és tu quem pode indicar, Valente.
-Eu não entendi...
-Valente, diante dos últimos acontecimentos que te envolveram, eu achei melhor fazer-te um comunicado a respeito da tua relação com a igreja.
-Se não for incômodo... Podes ir diretamente ao assunto?
-Claro. A partir de hoje, a função de saxofonista da Comportas não será mais exercida por ti.
-Uhum. E quem exercerá, se é que é possível eu saber?
-Seguiremos com os demais músicos da banda. Mas somos uma igreja pequena, temos os instrumentos básicos... Avaliei que não é necessário o uso de saxofone durante os cultos...
-Compreendo, Pastor. O que a Comportas vive neste momento é um processo de restauração. Nada mais natural do que excluir alguém com uma mácula na vida pessoal, como vocês pensam que eu tenho?
-Irmão, entendas que...
-Ao menos, eu posso continuar frequentando os cultos que são feitos aqui?
-Que pergunta é esta? Não estamos expulsando a ti da igreja, de maneira nenhuma...
-Porque seria escândalo o suficiente. É como se estivessem admitindo o meu erro.
-Há algum erro que queiras admitir, Valente?
-Nós dois somos irmãos de fé desde a nossa existência, e a nossa amizade dura há quatro anos. Posso fazer-te uma confidência?
-Sim.
-Considerando que somos amigos, ou que o senhor considera-me como tal, acho que se tu me conhecesses verdadeiramente jamais faria esta pergunta.
-Além de Deus, não há quem nos conheça intimamente.
-Os últimos tempos têm servido para em mim reforçar esta certeza.
-Sinto muito que tudo esteja saindo do que por ti foi planejado.
-O grande amor da minha vida escutou um pedido meu, feito há muito tempo: que, mesmo nas horas difíceis, ficasse do meu lado. E toda esta história está servindo para que eu descubra o quanto Ele faz questão de estar junto a mim, abraçar-me quando eu quiser chorar... Ainda bem que não há intempérie que O faça falhar.
-E... – pigarreia- Quem é o amor da tua vida, Valente?
-A paz do Senhor, amados- uma fiel entra na igreja, cumprimentando o pastor e o músico.
-Amém- respondem.
-A frase desta mulher responde à tua indagação, Fabiano?
Abaixando a cabeça, Valente chora em silêncio, enquanto Nete deixa de ouvir o diálogo, encerrado quando Fabiano, a fim de evitar novos mal-entendidos ou mesmo desentendimentos, recebe os visitantes e os membros da igreja. O banco no qual está o músico é ocupado apenas por ele próprio e pelo presente dado por Joana assim que ele deixou o Lar do Menino Tobias.
As coisas parecem somente piorar para o varão valoroso, por mais valoroso que ele faça questão de ser diante das tormentas que insistem em surgir. Surpreendentemente, coube a Kleber a tentativa de alterar o quadro derrotista instalado em parte destas pessoas cujas trajetórias acompanhamos. O primeiro passo é depois de uma avaliação médica feita por Lopes, que ratifica a boa recuperação de seu paciente. Assim que o médico deixa o quarto, o agente de viagens demonstra não estar tão radiante quanto Dora diante das notícias.
-Mudes esta cara, homem.
-É a única que tenho, Isadora.
-Compreendeste o que quis dizer- abaixa-se para se aproximar do marido- O que posso fazer para melhorar o teu ânimo? O Lopes falou que tua recuperação é excelente e tu estás deste jeito?
-Dora, trazes o Tato aqui. Eu preciso falar com ele.
-Não será possível, Kleber. Tato deixou a clínica. Já passaram os cinco dias de recuperação do doador.
-Chegaste a falar com ele?
-A única pessoa autorizada a entrar em seu quarto foi o amigo, Valente. Até tentei agradecer pelo que ele tinha te feito, mas ele pegou o táxi bem rápido. Parecia não querer falar comigo. Tem uma ideia estapafúrdia a meu respeito.
-Qual?
-De que eu amo mais o meu marido do que o meu próprio filho.
-Isto te incomoda?
-Lógico, Kleber, porque ele está errado.
-Dora, sabemos que é verdade.
-Do que estás falando?
-Passaste tua vida venerando a minha imagem, dedicando-se a mim como se eu fosse um indefeso qualquer.
-Agora isto é demérito?
-Não. Mas o que ele disse não deixa de ser verdade.
-Não se pode medir o amor que uma mãe sente pelo filho. Tu mesmo és testemunha do quanto insisti para trazê-lo de volta à nossa casa.
-A verdade é que a harmonia que existia em nossa família desfez-se quando soubemos da opção sexual do Otávio. Mas a tua luta é para restaurá-la porque isto poderia me fazer feliz, não porque temos que resgatar o nosso filho onde ele se perdeu.
-Estás pensando em perdoar o Tato?
-Confesso-te que perdão é algo muito forte para conceder. Tenho medo de que tudo se repita, de que eu absolva o Tato de seu erro e ele volte a falhar comigo. Mas a vinda do Valente até aqui me fez olhar a minha vida de outra forma.
-Como, Kleber?
-Devo ter dito em algum momento depois daquela briga horrível que tivemos, mas eu desejei a morte do meu filho. Era melhor resumi-lo a uma mera recordação do que viver ao lado de um homem que foi criado do meu modo de agir e comportava-se da maneira contrária.
-E quando tu estavas à beira da morte, ele salvou a tua vida.
-Entendes agora? Nós não amamos o Otávio. Moldamos ao nosso favor. O que ele fez por mim poderia ter feito por um desconhecido. Nosso filho sempre teve o poder de nos surpreender, positiva e negativamente, e nós o subestimamos.
-Será que a nossa família vai ganhar a chance de recomeçar?
-Pode ser, Dora. Mas certamente eu não sou mais o mesmo homem. E talvez seja melhor não seres a mesma. A dor do abandono pode ter ajudado o Tato a viver sem a família. Por isto, eu tenho muito medo.
-De quê, exatamente?
-De que tudo esteja perdido para sempre. Reparou que ele saiu da clínica e não veio até o meu quarto?
-Vou falar com o Hélio. Ele convencerá o Tato para que ele venha até ti.
A promessa, enfim, extrai de Kleber o sorriso que Dora tanto esperava. Para Alonso (que usa publicamente a identidade de Nicolas Queiroga Drummond), o desespero serve de alento aos seus planos, ainda que partam dele mesmo. Carrega a munição de seu revólver, enquanto o professor de Olívia entra no Sófocles e conversa com o gerente. O criminoso vai até o galpão no qual a estudante é feita de refém, apontando o revólver para o rosto.
-Feliz último dia, meu amor. Pensou no que eu te disse?
-Tira-me daqui, Nicolas. Deixa-me sair. Ninguém saberá o que tu fizeste comigo. Eu vou embora daqui e ninguém lança suspeitas contra ti.
-As coisas não são tão simples quanto você pensa, Olívia. Eu não me arrisquei à toa, pra deixar que você fosse livre. Sabe muito bem por que está aqui e o que tem que fazer pra sair deste lugar com vida. Vai, Olívia. Só tem que dizer o que eu quero, e eu poupo a sua vida.
-O que queres escutar de mim?
-Você sabe. Basta negar ao deus que você adora. Ou melhor: ao mito que você insiste em venerar. Um só passo e eu não vou apertar o gatilho, como eu fiz com as tuas colegas de faculdade. O que me diz, meu amor?
-Que garantias eu tenho de que tu vais deixar-me sair com vida?
-Uma arma apontada pra sua cabeça deve significar alguma coisa... – encosta o revólver na testa de Olívia, levando-a ao desespero- A garantia sou eu, vagabunda! Nega a esse deus ou eu acabo com a tua raça. E pelo pouco que você me conhece, Olívia, já devia saber que apertar esse gatilho não vai me custar nada.
-Sabes que não sou daqui. A minha irmã, os meus amigos vão estranhar o meu sumiço e vão colocar a polícia para me procurar.
-Não vão. Não vão porque você vai voltar, sã e salva. Eu só preciso escutar o que quero ouvir da tua boca...
-Desistas desta loucura, Nicolas...
-Chega, Olívia. Minha paciência está acabando. Fala de uma vez, admite que esse deus é uma mentira, uma invenção. Anda!
-Se Deus quiser acabar com a minha vida, ele vai fazê-lo de qualquer forma, usando-te ou não.
-Aonde você quer chegar com isso, desgraçada?
-Podes me torturar, bater em mim, fazer o que bem entendes até ceifar a minha vida da face da terra. Ou disparar e deixar o meu corpo aqui mesmo. A escolha de como vais acabar comigo não é minha, e sim tua. Mas do meu Deus eu não me desfaço, e muito menos na hora da morte.
-Deixa de ser imbecil. Se ele existisse e te amasse como tanto pensa, por que te deixaria ser sequestrada, maltratada, agredida e ameaçada? Pouco importa a sua vida para Ele ou tudo aconteceu porque Ele não pode interferir no teu destino?
-Pode, sim. Pode interferir porque eu dou espaço para que Deus aja!
-Idiota... Quer saber por que eu te escolhi? Porque tinha uma vaga ideia da fé que tinha Nele. Mas nenhuma das outras mulheres tinha a fé que você tem. Eu poderia deixar teu cadáver se decompor aqui, como das outras. Mas eu faço questão de jogar fogo. Até sei como eu vou fazer. Primeiro, eu vou atirar, mas não vou atirar pra matar. Depois, eu vou ver agonizando lentamente, e antes que você morra, eu derramo gasolina sobre teu corpo e jogo um fósforo aceso sobre teu corpo. Imagina? Amarrada, fraca, ferida por uma arma de fogo, e ainda implorando por ajuda com a pouca força que te resta enquanto as chamas não deixam rastro da sua existência- Alonso coloca o revólver sobre o tórax da moça- Fala tuas últimas palavras, vagabunda ordinária- Olívia volta a chorar- Fala tuas últimas palavras, eu estou mandando!
-Que Deus perdoe-te pelo que tu vais fazer comigo.
-Tem uma coisa que você precisa saber antes de ser varrida da face da terra, Olívia: eu não preciso do perdão de Deus. Aliás, eu não preciso do seu deus. Até nunca mais.
Olívia cai para trás, com os olhos fechados e o rosto coberto de sangue, após o disparo desferido por Alonso.