-Franqueza? É bem o nosso forte mesmo, especialmente o teu.
Mas não entendo qual assunto temos a tratar.
-Sabes, sim. E muito bem.
-E do que se trata, então?
-Queria entender o porquê de tua atitude.
-Não é difícil de entender a minha rispidez. O senhor mesmo
foi quem a provocou.
-Não me refiro à conversa que estamos tendo agora, e sim ao
teu ato de...
-Termines.
-De doar um rim para salvar a minha vida.
-Eu mereço...
-Ainda que tu não queiras, e que nem mesmo eu queira, eu devo
reconhecer o que fizeste por mim.
-Kleber...
-Deixes que eu conclua, por favor.
-“Por favor”? O caso é grave mesmo!
-Não te chamei aqui apenas para agradecer-te, em
reconhecimento ao teu gesto, mas quero saber a razão de ter arriscado a tua
vida. Enfim, foi... Pelo Tato?
-O que o senhor pensa?
-Que ele não te despertou apenas pena, como as pessoas podem
acreditar. Há algo a mais nesta relação.
-Claro que há, Kleber. Há respeito entre dois homens. Isto tu
não consegues ver porque é mais fácil julgar que ele não existe. Mas fiques
tranquilo, a culpa não é tua. Não exclusivamente.
-Quando eu me vi aqui nesta clínica, eu achei que não fosse
sair daqui com vida. De repente, o médico diz à minha esposa que existe um
doador anônimo disposto a salvar a minha vida. E assim que eu começo a
recuperar-me do transplante, descubro que foste tu o responsável por tudo
acontecer. Como tu queres que eu me sinta?
-Como eu havia dito, Kleber, a opinião que tens de mim não é
culpa tua somente. Apenas não me vejo na obrigação de responder pela opinião
alheia, e sim pelo que faço ou deixo de fazer. Como é o caso da tua operação, a
qual não tive nada a ver.
-Não precisas prosseguir com esta farsa, Valente, já foste
descoberto.
-Lembraste meu nome? Ah, mas como poderia esquecê-lo, já que
tanto deves tê-lo maldito nos últimos tempos?
-Acho melhor intervirmos- Hélio opina sobre a situação, no
corredor.
-Não. Deixes os dois continuarem- conclui Dora.
-Sabes o que me faria salvar a tua vida, caso ela estivesse
em meu poder ao menos uma vez? Ter a certeza de que tu és um ser humano. Coisa
que eu não tenho.
-Querias que eu fizesse o quê? Aceitasse sem reservas a
bissexualidade do Otávio? Ou mesmo que ele trouxesse homens para a sua vida, ou
para a minha casa?
-Por não ter tido família é que te julgo. Não estou falando
de aceitar, e sim de não tirar o Tato de teu convívio, ao contrário do que
fizeste ao jogá-lo na rua com a roupa do corpo. A sua sexualidade só interessa
a ele. Mas que fiquem bem claras duas cousas: eu não só não fiz o transplante
por conta do Tato como também não o fiz.
-Para quê continuar com esta mentira? Só vai levar-nos a mais
desespero. Já não achas que é torturante para mim admitir que é a ti quem devo
a minha vida?
-Reconheces esta letra, Kleber?- Valente entrega o bilhete
encontrado antes da visita ao Lar do Menino Tobias- Reconheces ou não?
-É a letra do Otávio.
-E, pelo teor, já podemos ficar preocupados. Ele ainda não
voltou ao meu apartamento. Deve ser porque o doador misterioso ainda não pode
sair da cama de um hospital.
-Queres dizer que...
-O filho a quem tu desprezaste é o mesmo que te trouxe de
volta à vida.
-Não pode ser... Deve ser um blefe teu.
-Estou de pé em menos de cinco dias, Kleber. Alguém que passa
por uma cirurgia tão complicada não sairia andando pelos corredores de uma clínica.
Chega a ser doentio o que tu pensaste em fazer: agradecer a um completo
desconhecido do que ao teu próprio filho.
-Estás mentindo!
-Peças à tua esposa ou ao teu irmão para que os funcionários
chequem se o Tato está na lista de pacientes. Ou digas ao teu médico que já
sabes da verdade e ele acabará confessando a verdade irrefutável. Ao menos,
tens o teu irmão e a tua esposa para socorrerem-te quando precisares. E quanto
ao Tato? Está ele agora numa cama, recuperando-se de um transplante sem nenhum
amigo por perto, e muito menos a família. Vou lhe ser ainda mais sincero,
Kleber: eu não acredito em sorte, mas tu tens bastante pois é, em caráter
disparado, a pessoa mais amada da tua família.
-Otávio não pode ter feito isto comigo.
-Mas pode ter feito por ti. Vejas que curioso, não é? A
Palavra diz que podem muito bem o pai e a mãe esquecerem-se de um filho, mas
Deus não o desampara. O que eu tinha de esclarecer, eu já o fiz. Com licença.
-Valente... Como eu posso ter a certeza de que estás falando
a verdade?
-Busques informar-se com os enfermeiros. Eles poderão dizer
que eu fui ferido, que entrei aqui com um homem misterioso que me acolheu na
rua e pagou as minhas despesas médicas. A minha história tem respaldo, Kleber.
O que não tem é o desmedido ódio que sentes pelo teu filho.
Deixando o quarto de Kleber, que se debulha em lágrimas, o
saxofonista volta à recepção da clínica e pergunta, com absolutas certeza e
ênfase:
-O quarto de Otávio Queiroz Goulart, por favor.
-Não podemos dar informações a respeito deste paciente.
-Contate-o e diga que é Valente Valença. Ele vai receber-me.
Avisado de que é o amigo que o acudiu quem está à sua espera,
Tato permite que o saxofonista entre em seu quarto.
-E então, meu amigo?
-Por que tu fizeste isto às escondidas, Tato?
-Acho que foi por medo de arrependimentos. O Dr. Lopes
contou-me que ele está bem. Tu o viste?
-Sim, acabei de falar com teu pai. E sinto muito, mas tive
que contar a verdade. Ele chegou a pensar que eu fosse o doador anônimo.
-Preferia ter ficado na obscuridade, Valente.
-Nela tu já estavas há muito tempo, Tato.
-Por que meu pai pensaria que logo tu o ajudarias? Vocês se
odeiam... Quer dizer, ele não te vê com bons olhos...
-Tanto ele quanto o Hélio tiveram seus motivos. É uma longa
história, mas eu não quero falar de mim agora. Como tu estás?
-Ainda com muitas dores. Mas está chegando a hora de sair da
clínica.
-Talvez não seja o momento mais adequado para falar sobre
isto, mas eu preciso admitir algo. Muitas vezes, quando as pessoas comentavam a
respeito da nossa amizade, nascida de um dia para o outro, eu tive sérias
dúvidas se estava ou não fazendo a cousa certa.
-Mas tu abrigaste a mim devido ao que tu passaste, pelo
abandono no orfanato.
-Há mais do que isto, Tato. Quando eu deixei o Lar do Menino
Tobias, eu tive que trabalhar na rua, mas dormia em um motel, o Lisboa Noite.
-Acho que tu já tinhas me contado sobre isto uma vez.
-Pois é. E eu também era apontado por dormir lá, pois não
ganhava nas ruas o suficiente para pagar uma pensão ou pousada. Era como se o
pouco que me pertencia tivesse sido tirado com a minha maioridade.
-E foi então que tu aprendeste o que é ser homem.
-Foi. Não era o fato de dormir na rua que me preocupava, era
o que eu tinha deixado para trás. Quando apareceste na minha vida, eu fiquei
pensando em cada momento de felicidade que tiveste, porque a tua família havia
sido tirada repentinamente. Aqueles garotos, as freiras do orfanato, a Madre
Joana... Todos eram a família que eu nunca tive a chance de conhecer. Agora eu
sei que cumpriste a promessa que fizeste ao teu pai: de ser o homem que
precisavas ser, porque honraste aquilo que tu mais amavas.
-O que queres dizer com tudo isto, gajo?
-Que eu tenho orgulho de ser teu amigo; de ter dividido,
ainda que por pouco tempo, as angústias e as felicidades de minha vida. E todas
as minhas dúvidas dissiparam-se quando eu percebi que tu deixaste as mágoas de
lado e salvaste a vida do Kleber.
-Acredito que não tenhas o direito, Valente. Eu sou quem mais
precisa dizer que tenho orgulho de ti. Sei o quanto errei, que muito da minha
infelicidade se deve também a mim, mas se não fossem os meus erros, eu não
teria conhecido um exemplo tão correto de honestidade e fé quanto tu. Direi até
que nós dois possamos cansar de ouvir: eu queria ter a fé que tu tens.
-Já eu gostaria, de todo o meu coração, de ter a tua índole.
-Chega a ser estranho: nós dois não temos nada em comum para
nos respeitarmos tanto e, no entanto, é como se nos conhecêssemos de tanto
tempo.
-Agora tudo vai se resolver entre tu e a tua família.
-Não, Valente. Eu fechei, literalmente, uma ferida do meu
pai. Mas o ressentimento continua aberto.
-Pares de acreditar que será por muito tempo. O Kleber
acabará pedindo o perdão que tanto queres conceder.
-Ainda pode notar-se que tu não o conheces quanto pensa.
-A vida é imprevisível. Esperes, porque não custa nada.
-E tu, como andas?
-Com as pernas, como de costume.
-Não, refiro-me à vida.
-Digamos que os dias têm sido difíceis. Mas pelo menos sei
que não estás mais em perigo.
-Posso fazer alguma cousa para ajudar-te?
-Claro que podes. Basta orar.
-Mas eu não sei orar, só sei rezar.
-Fluirá de ti mais naturalmente do que pensas. O que é uma
surpresa de Deus perante tantas que Ele costuma preparar?
Há um aperto de mãos entre os rapazes antes que o músico
deixe a clínica. Mas, antes disso, há mais uma prova de que o dia será longo:
Hélio encontra o seu funcionário na entrada do recinto e o impede de
retirar-se.
-Valente, esperes.
-O que foi, Hélio?
-Valente, eu... Precisava agradecer-te pelo que tu fizeste ao
meu irmão.
-Já te disse um milhão de vezes que não fui eu o responsável
pela doação ao Kleber. Deverias ter aquele péssimo costume novelístico de
escutar atrás da porta.
-E foi o que fiz, quando foste falar com o meu irmão.
-Agora quem não está entendendo nada sou eu. Qual é o motivo
do agradecimento, então?
-Hoje tu tiveste coragem de falar abertamente com ele. Eu já
sabia o quanto tu eras verdadeiro, mas conseguiste surpreender-me ainda mais.
-Finalmente encontro alguém que acredita em mim.
-E também eu quero pedir desculpas por toda a celeuma que eu
provoquei pensando que tu eras o doador anônimo. Acabei por trazer mais dor e
sofrimento ao homem que tanto amparou a minha família. Primeiro, ajudaste o
Tato, dando um teto ao meu sobrinho. Depois, revelaste a verdade ao Kleber...
Não tenho dúvidas de que tu és um anjo que apareceu em nossas vidas.
-Passo longe de sê-lo, Hélio. O que eu espero é que, com os
esclarecimentos que eu fiz, o teu irmão e o Tato possam ter uma relação mais
harmoniosa. Não precisas pedir-me desculpas.
-Como não? O equívoco que cometi foi tanto que acabei
provocando um desentendimento entre tu e tua noiva! Minha obrigação é de
procurar pela Cissa e desfazer de vez o mal-entendido que causei.
-Faças isto. Mas não acredito que só a Cissa acredite que eu
sou o responsável pela operação do Kleber. Pior do que esta hipótese
estapafúrdia, só os argumentos que as pessoas usam para fortalecer este engano.
Especificamente, Valente fala de Fabiano, que realmente
acreditou em segundas intenções de seu saxofonista quando este supostamente fez
um transplante para salvar a vida de Kleber. Em conversa no templo da igreja, a
esposa do pastor sutilmente volta ao assunto, considerado espinhoso por ambos.
-Os vizinhos comentaram que Valente não passou nem só uma
noite no hospital. Retornou ao apartamento no mesmo dia- comenta, enquanto
limpa um vaso de flores do púlpito.
-Ah, é? Que bom. Pelo menos, a recuperação está bem rápida-
responde, ao varrer o templo religioso.
-Nossa... Em outros tempos, soltarias fogos com uma notícia
destas.
-O que queres tu que eu faça, Nete?
-Quando falei a respeito do atual estado de saúde, pensei que
tu foste ficar animado a ponto de fazer uma visita ao varão valoroso, já que és
tão próximo a ele.
-Queres tu que eu vá ao encontro de Valente?
-Isto és tu quem pode responder, Fabiano.
-Sinceramente? Não quero ir. Acho até que demorei muito, mas
desde que Valente tomou a atitude de dar abrigo àquele rapaz, eu posso ver como
ele mudou.
-Antes era bastante retraído; hoje, conseguimos ver um modo
mais afoito de ser. Nega veementemente as cousas que nos estão nítidas...
-Por isto mesmo que eu tomei uma decisão.
-Do que se trata, meu querido?
-Tem a ver com o Valente. Mas eu prefiro dizer-te depois de
entrar em contato com ele. O que posso adiantar é que o seu comportamento em
nada está do meu agrado.
-Particularmente, eu estou preocupada com a Cissa. Como será
que esta menina está, meu Pai?
-Abalada, provavelmente.
Longe daquela igreja, Beatriz está sozinha em sua casa,
preocupada com a falta de notícias sobre sua irmã. Repentinamente, pensa em
contatar alguém que provavelmente sabe do paradeiro da moça e tem tanta frequência
comunicativa quanto ela: o professor. Vasculha em uma pequena agenda,
localizada ao lado do telefone, o número do docente, fazendo a ligação
diretamente de seu celular. -Alô? Eu gostaria de falar com o professor...
-Beatriz.
-Como o senhor sabia que era eu?
-Nos conhecemos no aeroporto, quando a Olívia embarcou.
Ah, claro. Professor, desculpa-me por estar ligando, mas é
que eu tenho um assunto urgente para tratarmos.
-Qual é o problema?
-A minha irmã, ela entrou em contato com o senhor nos últimos
dias?
-A Olívia? Não. Tem quase uns três dias que eu não falo com
ela.
-Nenhuma mensagem de texto, ligação, nada?
-Não, Beatriz.
-É que eu estou ficando preocupada. A Olívia não tem
retornado às minhas chamadas. Ela não costuma ficar sem dar notícias.
-Achas que aconteceu alguma cousa?
-Eu tenho certeza. Olívia não é de sumir no mundo e não dar
satisfação.
-Beatriz, eu entrarei em contato com o departamento de
pós-graduação da universidade e o deixarei alerta para que ele entre em contato
contigo ao obter alguma informação a respeito de tua irmã.
-Será que ela não comentou sobre ir a algum congresso? Não
sei, pode ser que ela tenha esquecido-se de avisar a mim.
-Olívia não te deixaria tão preocupada assim. Vou fazer o
seguinte: estou embarcando para uma viagem daqui a poucas horas. Assim que
chegar, eu te ligarei e direi o que fiquei sabendo a respeito.
-Tudo bem. Eu vou esperar pelo senhor.
-Fazes bem, Beatriz.
-Até mais tarde, então- Beatriz encerra a ligação, enquanto o
professor faz outra chamada.
-Alô? É da Embaixada Portuguesa? Eu gostaria de fazer um
alerta...
Cissa está mais do que pronta para colocar, naquele mesmo e
interminável dia, um figurino capaz de fazer o noivo exercer o pecado capital
da luxúria. Enquanto Valente está voltando para o apartamento, a moça chega
antes, subornando o porteiro para conseguir entrar na casa do saxofonista. Liga
o chuveiro, ao passo que o músico volta para casa a passos lentos, em
decorrência do ferimento que sofreu naquela semana.
Valente abre a porta, depois de uns quarenta e cinco minutos,
e vai à geladeira encher um copo com água. Em êxtase, a noiva escuta os passos
do prometido pelo apartamento. Uma cena chama a atenção do saxofonista: a porta
do seu quarto aberta. Normalmente, é Tato quem o costuma fazer com a porta do
quarto que o corresponde, mas como este há dias mantém-se afastado do
dormitório provisório, a suspeita que permeia pela mente do varão valoroso é a
de que havia um larápio. Ou houve, e este se esqueceu de trancar a porta após a
realização do roubo. Amedrontado, o jovem exclama em voz baixa.
-Deus tome conta!
Os passos lentos que lançou mão para o retorno do calmo lar
voltaram a ser usados para uma circunstância nada tranquila... O verde menta
que dava cor às paredes do quarto parecia perturbador diante daquele rapaz que
discretamente entrava por aquela porta de madeira... Mas o tom decorativo era
menos gritante do que aquela toalha vermelho sangria, propositalmente molhada
para enaltecer as curvas de Cissa, deitada de bruços sobre a cama do noivo.
Tanta colorimetria é só para afirmar: a moça tomou um banho e esperou o rapaz
para uma tarde de lascívia. Pronto!
-Não sabes o quanto te esperei, meu Valente- fica de joelhos
sobre a cama- Venhas.
-O que significa isto?
-Hoje seremos um só. Não tenhas medo.
-Cissa... É melhor tu pores a tua roupa- chega a gaguejar
diante da visão que tem.
Aparentando arrependimento, a vendedora sai da cama e recolhe
as vestimentas que deixou espalhadas pelo chão do quarto. Com a cabeça
abaixada, dirige-se à janela aberta e, com força, joga tudo pela janela,
assustando ainda mais o noivo. Em seguida, Cissa puxa violentamente a toalha e mostra
o seu corpo inteiramente úmido, colocando os cabelos longos para trás.
-Tens certeza de que queres que eu ponha alguma cousa sobre
mim?
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