-Tu queres receber o Valente no teu quarto? O que vais dizer
a ele?
-Sem mais perguntas, Hélio. Apenas faças o que estou lhe
pedindo, por favor.
-Não acredito que seja uma boa ideia trazê-lo até aqui.
-O que pensa que eu farei? Discutir com o teu saxofonista?
Mas nem se eu quisesse. Eu só preciso conversar com ele.
-Continuo achando que não é uma boa ideia. Tu fazes uma concepção
errada a respeito do Valente, acredita que Tato e ele...
-Hélio, não vamos tocar neste assunto. Eu preciso conversar
sobre o que realmente interessa a mim, que é o assunto da doação que ele fez.
Será que podes fazer a enorme gentileza de pedir que ele venha aqui?
-Está bem, então. Só que eu não acredito realmente que o
Valente queira vir te ver. Afinal, tu o trataste muito mal.
-Eu tenho direito de entender o que aconteceu comigo, e por
que aconteceu. Peças para ele vir aqui, por favor.
-OK. Eu vou até a enfermaria procurar por ele. Volto daqui a
pouco.
Hélio até vai ao leito onde encontrou o músico, mas encontra
a cama vazia. Pergunta a um dos enfermeiros presentes no local onde estava
Valente Valença, mas ele afirmou ter o saxofonista deixado a clínica de Lopes,
o que causou estranhamento ao dono do Recifeeling.
Volta ao quarto em que Kleber está instalado para comunicá-lo.
-Encontraste o rapaz?
-Valente deixou o hospital.
-Como é possível?
-Não sei, Kleber. Também estranhei quando não o vi mais na
enfermaria. Mas à noite, quando eu voltar do restaurante, eu continuarei
procurando por ele. Deixes que eu vá agora, porque o dia promete ser cheio.
E, como anunciado, Hélio deixa a clínica para ir ao trabalho,
enquanto Dora encarrega-se dos cuidados com o seu marido durante todo o dia.
Para ela, ele não admite que pretende conversar com Valente sobre a operação.
Enquanto isso, o dia ainda está amanhecendo no galpão que serve de cativeiro
para Olívia. Aproveitando que Nicolas não está no local, a jovem tenta desatar
os nós que a prendem na cadeira de ferro em que ele a colocou. Mexe os braços e
as pernas com bastante força, mas acaba caindo para trás. Com dificuldade,
acaba ficando de bruços e descobre, tragicamente, a origem do cheiro fétido que
empesteia o lugar: dez cadáveres femininos, em estado de decomposição avançada,
largados sobre o piso cheio de poças d’água devido às goteiras do teto.
-Meu Deus do céu... O que foi que aquele monstro fez? – sem
saber, Nicolas está voltando para o galpão e vê a moça caída.
-O que eu pretendo fazer com você também!- surpreende a
estudante, que tem os cabelos puxados e é colocada na posição que estava antes
de tentar a própria soltura.
-De quem são aqueles corpos?
-De meninas como você, e que morreram pelas minhas mãos, por
serem iguais a você.
-Acabes com esta tortura de uma vez, digas logo o que queres
tu de mim...
-Não é óbvio, Olívia? A sua destruição. Eu não quero deixar
nenhum rastro da sua existência sobre a face da terra.
-Por que isto? Qual é o motivo de tanto ódio por mim, meu
Deus?
-Quer mesmo saber toda a verdade? Pois eu vou dizer. Pra
começar, o meu nome de verdade não é Nicolas. Eu inventei isso pra você... Quer
dizer, pra todas elas.
-O que fizemos para que tu arquitetasses todo este plano
macabro? Meu Deus, eu não consigo entender...
-“Deus”, “Deus”, “Deus”... Em nenhum momento, você tira esse
nome da sua boca, que droga!- Nicolas agride Olívia com uma violenta bofetada,
fazendo-a chorar excessivamente- Elas, assim como você, também não paravam de
falar sobre Ele, sobre alguém que não existe! Da mesma forma que não existe o
Nicolas evangélico, temente a Deus, de quem tanto você se orgulhava em cultivar
uma amizade. Aquele cara que eu te apresentei não passa de uma grande farsa,
assim como Ele também é.
-Deixes de blasfemar, maldito!
-Blasfêmia? Como você acha que eu posso atacar alguém em que
eu não acredito? Alguém que não existe?
-Não existe na tua mente perversa e doente!
-Viu só? Foi por causa desse comportamento que eu vi que você
era uma vítima em potencial. Todas elas enchiam a boca pra falar o quanto
adoram servir a esse mito.
-Cala-te!
-Não vou parar! Agora que as máscaras estão caindo, você vai
saber o que eu penso e quem eu sou, Olívia. E não vai ser nada agradável, te
garanto.
-Tu estás doente! Precisas de ajuda médica, de tratamento!
-Pode até ser que eu precise. Já você não vai ter, não é?
Porque nem uma vala, pra ser enterrada como indigente, vai ter direito. Como
foi fácil enganar todas vocês. Basta colocar um “aleluia” na boca que já pensam
que sou crente. Vagar pela universidade e encontrar uma evangélica é a coisa
mais difícil do mundo. Mas bastam cinco minutos de lábia e eu consigo tirar o
doce da boca de uma criança. A ingenuidade levou todas pra morte...
-Deixes que eu saia daqui!
-Nunca! Antes de eu cogitar essa ideia, você morre!
-O que pensas? Que a polícia não vai desconfiar do
desaparecimento destas mulheres? Achas mesmo que ninguém sentirá a falta destas
moças que tu ceifaste a vida?
-A universidade vai abafar o burburinho em torno das
investigações. Logo, logo, ninguém vai se lembrar da existência dessas
desgraçadas.
-Tu não ficarás impune, Nicolas. O que tu fizeste com elas e
estáS a fazer comigo não ficará impune.
-E quem vai me punir? Você, que não consegue nem desfazer nó
de sapato?
-Há quem possa defender-me e lutar por mim...
-Quem seria? O deus em quem você acredita?
-Quem mais seria, além Dele?
-Sabe que eu até simpatizei com você, Olívia? Acho que vou te
dar a chance de sobreviver, mas só se fizer uma coisa pra mim.
-Estás blefando...
-A sua vida está nas minhas mãos, eu não teria porque mentir
agora.
-A minha vida está nas mãos Daquele que me deu a vida, e quem
pode tirá-la de mim!
-Chegamos ao ponto: o suposto dono da sua vida.
-O que queres dizer com isto?
-Negue. Admita que Deus não existe, que é tudo uma invenção.
Que Ele não passa de uma mentira inventada pelos homens.
-Antes de fazer isto, eu prefiro que tu acabes com a minha
vida.
-Vamos lá, Olívia. Eu não estou pedindo nada demais.
-Nunca! Se pensas que eu vou negar a Deus, estás equivocado.
Dos meus lábios, não ouvirás isto nunca, desgraçado!
-Parece que você não sofreu o suficiente nos últimos dias...
O que eu tenho a fazer? Mutilar teu corpo? Te torturar? Riscar tua pele à faca?
Ou fazer você ser minha e te usar até você pedir pra morrer, por não aguentar
mais o meu corpo sobre o seu? Eu estou te dando uma chance de sair desse lugar
com vida...
-Se Deus quiser matar-me... Ou melhor, se Ele quiser tirar a
minha vida através das tuas mãos, que o faça. Mas eu não vou negar o amor da
minha vida. E está para nascer o homem que me fará afirmar o contrário.
-Eu vou te dar mais uma oportunidade, vagabunda- afasta-se da
moça- Quem sabe com mais uns dias de fome, sem água, você não mude de ideia?
Pro teu bem, é melhor que mude. Mas eu vou te avisar uma coisa, Olívia: a
próxima conversa entre nós vai ser a última.
O torturador arrasta alguns dos corpos das estudantes
desaparecidas e os coloca junto à cadeira na qual Olívia está amarrada,
deixando que as formigas subam sobre o corpo da jovem, para em seguida deixar o
galpão abandonado. Já Valente ficou em casa, recuperando-se da lesão que sofreu
há pouco tempo, mas não deixando de pensar nas discussões que tem travado
incessantemente com a noiva. Só que algo naquela noite vem à tona: o bilhete
que Tato deixou no dia do assalto. Completando o fato de que Kleber passou por
um procedimento cirúrgico no mesmo dia, o saxofonista entende, enfim, onde está
o seu problemático novo amigo. Portanto, vai ao seu encontro, ligando para um
taxista e, saindo do prédio, é conduzido à clínica de Lopes. Na recepção,
procura informações.
-Boa noite.
-Boa noite. Em que posso ser útil?
-Estou à procura de informações sobre um amigo meu.
-Qual o seu nome completo?
-Otávio Queiroz Goulart.
-Até que enfim eu te encontrei- Hélio volta do Recifeeling- Tenho ligado para a tua
casa desde a hora em que saí do restaurante, mas não me atendes.
-De novo, não... Para que estavas a procurar-me, se eu ainda
estou convalescente, Hélio? Não vais insistir nesta patacoada de cirurgia
novamente, não é?
-Valente, tu não poderias ter saído da clínica.
-Saí com autorização do médico no mesmo dia.
-Nossa, mas... Tão rápido? Enfim...
-O que tanto queres comigo? Eu preciso fazer uma visita ao...
-Ao Kleber.
-O que tem o teu irmão?
-Ele quer falar contigo.
-O Kleber quer conversar comigo? Sobre o quê?
-Isto, ele não quis dizer-me. Mas até imagino sobre o que
seja- Hélio avisa ao recepcionista- Autorizes a entrada deste rapaz: Valente
Valença.
-Tu és da família de Kleber Lacerda Goulart?- pergunta o
recepcionista.
-É como se fosse. Ainda mais agora.
-Hélio, que tantas entrelinhas são estas? O que tanto teu
irmão quer falar comigo?
-Kleber está com a minha cunhada, Dora. Venhas comigo- e
Hélio conduz o músico até o quarto- Trouxe uma pessoa para falar contigo, meu
irmão.
-Dora, Hélio... Deixem-me a sós com ele.
A família de Kleber fica no corredor, mas deixa a porta do
quarto entreaberta.
-O Hélio disse que o senhor queria falar comigo...
-Não, eu não queria. Eu preciso ter uma conversa franca
contigo.
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