28/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 8


-Não vais responder à minha indagação? Talvez porque não tenhas como negar- Nete testa a paciência do jovem, enquanto Fabiano demonstra estar atônito à revelação feita pela esposa.
-Não só não tenho como negar como também não quero, irmã- olha para Fabiano- O que ela diz é a mais pura verdade.
-Quanta desfaçatez! Como é que tu dizes isto em pleno templo, insubordinado?
-Justamente por isso, senhora. É pelo fato de estar dentro de um templo que eu não posso mentir. Aliás, o meu compromisso com a verdade independe de onde eu esteja.
Cissa fica de pé, acreditando que iniciar-se-á uma discussão.
-E como tu podes dizer isso com tamanha tranquilidade, meu filho?
-A questão é simples, Pastor: eu durmo lá todas as noites.
-Dormir? Esse gajo quer engabelar-nos.
-Desde que deixei o orfanato em que vivia, passei a trabalhar nas ruas...
-Somente isto não é motivo pra viver em meio à prostituição...
-A senhora quer fazer o favor de deixar que eu termine de falar?- Valente, mesmo sendo um sujeito sisudo, enfrenta as acusações de Nete com parcimônia e em um tom de voz um pouco elevado- Não acumulo rios de dinheiro tocando saxofone em plena praça lisboeta, como bem deves imaginar. Aliás, imaginar é o que de melhor a senhora tem feito, pois me vem com quatro pedras na mão só pelo fato de olhar para mim.
-Esse papel não é bem desempenhado por mim. Prefiro deixar para quem tem talento, como a antiga inquisição da Igreja Católica.
Isso porque ninguém mencionou onde o músico foi criado, pelo menos não ainda.
-Deixe, então, que eu te diga algo sobre Catolicismo: não adianta ser educado para tratar as pessoas com respeito e não pôr em prática. Foi isso que as freiras me ensinaram e é exatamente assim que eu vivo, quer as pessoas queiram, quer não. Até porque, se não for para exercer amor, estamos frequentando e sendo igreja para quê, não é mesmo? Mas, dando sequência ao que estava eu explicando, eu durmo no Lisboa Noite porque um músico ambulante não tem condições de pagar uma pousada.
-Isto não diminui em nada o fato de você frequentar diariamente um antro de fornicação.
-Concordo, senhora. Mas enquanto eu não for incluso na pirâmide social, eu continuarei sem saber o que é, de fato, fornicação. Tanto teórica quanto praticamente. Posso adorar ou há algum tipo de objeção de sua parte?
-Desculpe, Valente, não temos o direito de nos intrometermos em sua vida particular.
-Com todo o respeito, vocês não o fariam porque me exponho o suficiente para que não haja dúvidas sobre mim.
-Sente-se, meu filho, por favor.
-Deem-me licença.
O jovem saxofonista ajoelha no banco que está ao lado de Cissa, sem notar a sua presença. Fabiano, em voz baixa, recrimina Nete pela provocação feita ao rapaz. Valente, em silêncio, pede que Deus o ajude a suportar o fato de viver naquele lugar e as dificuldades pelas quais vêm passando. Clama também para que venha a resposta sobre o dilema de aceitar ou não o convite para trabalhar no Recifeeling e que possa aguentar qualquer indireta que receber. O principal motivo da súplica: que ele e Deus continuem andando lado a lado.
Ao se levantar, Valente vê Cissa sentada junto a ele.
-Tudo bem?
-Não. Mas sei que vai melhorar.
-Eu vi o que aconteceu agora há pouco contigo. E confesso que gostei.
-Da discussão?
-Do jeito que tu conduziste a questão. Não te eximiste de culpa, não despertaste pena...
-Não poderia me eximir de culpa. Todos nós pecamos. O que não aceito é ser imputado por algo que não fiz. Faço questão de conviver com a verdade.
-Tu pareces ser bem maduro, mesmo para alguém de tão pouca idade.
-O bom é que não foi necessário que eu mesmo tomasse essa iniciativa por mim. Meus pais fizeram isso.
-Pensei ter ouvido que tu foste criado por freiras.
-Por isso. Quem mais poderia me ensinar a agir com maturidade senão eles?
-Imagino o quanto devas sentir a ausência deles...
-Não sinto, juro que não. Nunca convivi com eles para sentir falta de afeto. Deus é tão maravilhoso que soube me compensar. Doía apenas quando via os meninos sendo adotados e eu ficando para trás. A Madre Joana, que sempre foi muito apegada a mim, disse que eu passei pelos dias ruins para viver dias melhores.
-Também deveria eu acreditar nisso. Queria eu ter a sua força.
-A minha fé, você quer dizer.
-Sei lá, isto que tu tens, para enfrentar as adversidades.
-Queres tu enfrentá-las?
-Não sei. Só sei que não estou satisfeita com a história que estou vivendo.
-Por que não eliminas aquilo que tanto te aflige?
-Porque é como se estivesse matando a mim mesma.
-Esvazie-se, então.
-Como acreditas que eu possa fazer isto?
-Tendo consciência de que podes ser feliz por um poucochinho de tempo, mas depois sentirá um vazio enorme no peito. Melhor mesmo é aguardar por algo que dure para sempre, e não só por um momento.
-E como começo?
-Dialogando com O dono do tempo. Dizem que o tempo é o remédio de certos males, mas quem cura é O dono.
-Se estiver falando de Deus, saiba que eu não sei orar.
-Coloques aquilo que tanto te traz dor à luz. Contes a Deus. Ele não está preocupado com palavras bonitas, o que Ele quer é sinceridade. Muitas vezes, queremos que Deus toque nosso coração, mas podemos tocá-Lo e, dessa forma, alcançamos o milagre. Bom, acho que falei demais.
-Não. O que tu disseste foi muito bonito. Queria ouvir mais.
-Antes de mim, ouças nosso Pai falando ao nosso coração.
-Sabes, eu queria um espelho nessa hora para ti. Precisavas ver aquele garoto medroso quando colocado contra a parede e o homem forte que se revelou em poucos segundos, e que conversa comigo agora.
-Ninguém é forte o suficiente. Todos somos fracos, e temos que admitir. O que faz uma pessoa cristã ser considerada forte é o fato de ela querer andar com Cristo. Mas não se preocupe. Basta querer estar perto Dele que o entendimento é alcançado.
-É, quem sabe? Acho que nós não fomos devidamente apresentados. Meu nome é Clarissa- estende a mão para cumprimentá-lo, enquanto ele deixa uma lágrima cair, devido ao descontentamento vivido há minutos.
-Valente Valença- aperta a mão de Cissa.
-Mais conhecido como “varão valoroso”.
Ambos sorriem um para o outro, mas preferem não trocar nenhuma palavra a mais durante o culto. Valente se sente mais tranquilo, e opta por manter-se em silêncio antes de colocar a sua decisão em prática. O episódio com Nete e Fabiano o auxilia durante a inclinação do convite feito por Hélio. Mas suas intenções somente revelar-se-ão na manhã seguinte, quando o dono do Recifeeling chega pontualmente em seu horário habitual, encontrando Alessandra como de costume.
-Bom dia, Hélio.
-Tudo bem contigo, Alessandra?
-Tudo. Estás tão animado hoje, aconteceu alguma coisa?
-Nada. Mas sabe aquele dia em que, apesar de tudo, tu sentes que vai receber uma boa notícia?
-Olhe, eu não passei por nada parecido, mas tua sensação tem uma razão concreta de existir.
-A que se referes?
-Vejas quem está à tua espera.
Levantando-se de uma mesa do restaurante, vem Valente em direção ao empresário.
-Bom dia, senhor.
-Valente? Posso encarar a tua presença como um “sim”?
-Não. Podes encarar como um “tudo bem, eu topo”.
-Achei-te muito em dúvida quando falei contigo na praça.
-E realmente estava, mas pensei melhor. Não apareceria outra oportunidade de ouro como esta.
-Fico feliz por teres tu aceitado o meu convite. Tenho certeza de que serás um sucesso aqui no Recifeeling.
-Deus queira... Quando é que eu posso começar a trabalhar aqui?
-Se não tiveres nada mais para fazer, hoje mesmo!
-Ótimo.
-O que te fez mudar de ideia, gajo?
-Nada mais do que a necessidade, senhor.
-Por favor, chames a mim de Hélio, não sou tão velho assim.
-Desculpe, é só uma questão de respeito.
-Não vais desrespeitar-me se me chamares pelo meu nome próprio, não é verdade? Bem, a Alessandra vai mostrar todo o espaço do restaurante, para tu já se habituares ao ambiente. A propósito, diga-me: conheces bem fados?
-A bem da verdade, quase nada.
-Eu tenho uma lista de canções que podes ensaiar, mas... O que tu costumas tocar?
-Música católica. Nada a ver com o ambiente.
-Se bem que... Pode ser uma novidade que chame a atenção dos que frequentam o restaurante.
-Comprometo-me a ensaiar algumas músicas antes, e podemos adiar a minha estreia.
-Vamos fazer uma playlist eclética.
-Oi?
-Eu te darei uma lista de fados e tu ensaias uns dois ou três. E tu completas com aquilo que quiseres tocar. Pode ser?
-Claro.
-Que dias da semana tu podes trabalhar?
-Estou disponível diariamente.
-Mas que tal alterarmos as noites? Certamente vais querer treinar mais canções...
-E ir à igreja que ando frequentando.
-Se não tiveres empecilho nenhum... Meus parabéns: a partir de hoje, tu és o primeiro... E único músico exclusivo do Recifeeling- cumprimenta o rapaz com um abraço, sinalizando que as coisas melhorarão.
-Podes vir comigo, Valente. Eu vou apresentar-te o restaurante- garante Alessandra, antes de o músico prometer ao proprietário do estabelecimento:
-Farei de tudo para que não se arrependas.
-Fiques tranquilo, gajo. Confio em ti.
Depois, Hélio telefona para o irmão, que atende apressadamente.
-Agora não vai dar pra falar, Hélio. Estou a sair de casa neste momento.
-Tens alguma coisa pra fazer à noite?
-O mesmo de sempre: jantar com a família.
-Que tal mudar de locação?
-Estás convidando-me para ir ao Recifeeling?
-Assim, tu aproveitas e me contas das últimas, já que há tempos não pisas aqui.
-Boa ideia. Avisarei ao pessoal de casa. Chegamos por volta das oito, pode ser?
-Perfeito. Aguardo vocês. Abraço, irmão.
-Outro para ti.
Antes de ir ao trabalho, o irmão de Hélio chama a sua esposa e o filho para jantar. Este não aceita, em virtude de desejar ficar em casa, mas pediu que agradecessem ao tio. A cônjuge aceita prontamente o convite e demora alguns minutos escolhendo o vestido. Eis que Dora surge no Recifeeling trajando um longo vestido azul, com pedrarias ao redor do pescoço e poucos adornos. O esposo, o ocupado Kleber, não parece ter se deixado enraivecer pelo comportamento adotado por Tato nos últimos dias e comparece ao jantar. O casal é recebido por Hélio.
-Sejam bem-vindos, meus queridos.
-Que prazer ver-te de novo, Hélio. E esse lugar está a cada dia mais incrível.
-Mas não mais do que o dono- brinca o anfitrião.
-Digas: qual o motivo de ter nos convidado?
-Ora, Kleber, acaso não posso sentir falta da minha parentela?
-Lá vens tu e este teu sentimentalismo próprio...
-Amor, sejas gentil com teu irmão. Não é todo dia que jantamos fora.
-Dora sempre insiste que devemos sair mais vezes. Mesmo depois da viagem ela quer imputar-me passeios.
-Uma mulher, quando dotada de uma bela lábia e um vestido tão belo quanto este, meu cunhado, consegue convencer o marido até de fazer uma ponte aérea das Bahamas para o Museu do Louvre.
-Teu senso de humor continua insuperável, Dora. Mas eu tomei a liberdade de reservar a melhor mesa para vocês. Por favor, sentem-se aqui- Hélio acompanha Kleber e Dora.
-Três lugares? Mas eu te liguei depois e falei que Tato não viria.
-O lugar é reservado a mim, meu irmão.
-Não circularás pelo salão à noite toda? Se antes suspeitava que havia motivos especiais para o jantar, agora tenho certeza!
-Kleber, há tempos que tu não fazes visitas a teu irmão. Aproveitei a oportunidade para saber da viagem às Bahamas, como está meu sobrinho, o que tens feito...
-Trabalhado muito, como sempre. Mas o que terá hoje? O lançamento de um novo prato?
-Hum, da última vez que viemos, o menu veio com aquela comida branca nordestina... Qual era o nome mesmo?
-Tapioca.
-Ah, um verdadeiro manjar dos deuses, Hélio. Já sei que é isto que pedirei.
-Ótima escolha. Mas o lançamento é de um artista. Conheci um gajo na rua que é um verdadeiro fenômeno. É quase hipnotizante.
-Só acredito mesmo vendo, irmão.
-Não seja por isso. Sentem-se, enquanto eu vou ao palco e retorno em instantes- toma o microfone- Boa noite a todos que nesta noite estão aqui. O Recifeeling tem o orgulho de apresentar um novo nome da cena musical lisboeta: o talentoso Valente Valença.
As cortinas se abrem. Como um animal acuado, o jovem lembra que trabalhou para conseguir um lugar melhor para dormir. O medo se dissipa em questão de segundos aos primeiros instantes que a plateia ouve a interpretação saxofônica de "Canção do mar", popular fado lançado há mais de vinte anos.

21/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 7


Está boa parte dos presentes acompanhando Valente e seu saxofone quase indefectível, mas Hélio é paciente e espera que o rapaz cesse a canção atual e vai em sua direção, quase sem palavras diante de tanto talento. Antes, tira do bolso duas cédulas, ao ver uma parcela do público extasiada com o que acabou de presenciar.
-Qual é o teu nome, gajo?
-Valente. Valente Valença.
-Até nome de artista tu tens.
-Obrigado... – diz, sem jeito, para depois Hélio depositar as cédulas que havia retirado de sua carteira.
-Há quanto tempo estás trabalhando por aqui?
-Já há alguns dias. Mas, que mal lhe pergunte, por que me perguntas isto?
-A rua não é o teu lugar, não se quiseres que as pessoas reconheçam teu dom.
-Imagina. Não há dom nenhum. O que eu faço é apenas para sobreviver.
-Ou para alimentar sonhos. Não sentes vontade de sair da rua?
-Na verdade, eu não sou garoto de rua. Mas não tenho endereço fixo.
-Queres que eu mude a tua realidade?
-Quero que Deus assim o faça, pois Ele é o único capaz. A não ser que o senhor interceda por mim.
-Talvez eu possa. Deixes que eu me apresente: meu nome é Hélio Goulart, e eu sou o dono do restaurante Recifeeling, não sei se tu sabes onde se localiza.
-Provavelmente já devo ter ouvido falar. Mas não sei como o senhor pode ajudar a mim.
-Eu estou à procura de alguma atração que amplie o movimento do Recifeeling, e creio que tu possas ajudar-me.
-O senhor tem certeza do que está pedindo? Eu não sou saxofonista profissional.
-Mas consegue envolver a todos com seu trabalho. Melhor do que se expor ao perigo das ruas. Valente, não estou pedindo que tu venhas a me dar uma resposta imediata. Quero que penses com carinho em minha proposta- retira um cartão do bolso- Aqui está o endereço do meu restaurante. Passes lá para conversarmos. Será bom para ti.
-Prometo que vou pensar. Mas agradeço o teu convite.
-Que nos vejamos, então. Até mais.
-Será que eu deveria aceitar? Vai ser bom pra mim? Que Deus possa orientar-me- pensa consigo mesmo. De orientação, aliás, não é só o mocinho que necessita. Beatriz vai às compras com a amiga Cissa e, novamente, a segunda volta a tocar no assunto do músico que conheceu na Igreja Comportas do Céu.
-Conta-me uma coisa: ainda estás pensando em reencontrar o gajo que conheceste noutro dia?
-O tempo todo, amiga.
-E como vais fazer para vê-lo?
-Voltando à igreja.
-Àquele lugar? Clarissa, definitivamente, estás prestes a perder a compostura.
-E que outra saída tenho?
-Realmente estás apaixonada por ele?
-Não. Mas posso. Não há como negar que ele é um homem interessante.
-Que tal este vestido para mim?
-Não. Lilás não fica bem em combinação com seu tom de pele.
-Tens razão. Que cor tu me recomendas?
-Vermelho, ora. Dizem que é a cor da paixão, do desejo. E é bem isto que queremos ao sair de casa, algo do tipo: “pense que irás usar-me, quando serás usado por mim”.
-Leste bem os meus pensamentos. Agora, diga-me: achas que ele estará naquele lugar hoje?
-Se não estiver, eu sondo os que frequentam a igreja.
-Muito bem. Esta é a Cissa que eu conheço.
E realmente ela leva o plano a cabo. Naquela mesma noite, com uma vestimenta tão comportada quanto da ocasião da visita das mulheres lourenses, a bela irmã de Michel vai à instituição religiosa, sendo recebida por Fabiano.
-Bem-vinda de volta, minha amada.
-“Amada”? Acaso estás me chamando, querido?- Nete aparece, demonstrando insegurança diante de tanta beleza.
-Obrigada, Pastor. Devo ter chegado cedo demais, mas é que ainda não sei dos horários daqui.
-O que importa é a sua presença, pois é dela que o nosso Pai agrada-se. Fique à vontade.
-Com licença, então- Cissa toma um dos bancos.
-Queres que eu seja bastante sincera contigo? Meu sexto sentido não me deixa ter confiança nessa mulher.
-Agora precisas de seis sentidos para fazer radiografias de caráter? O que precisamos é de espírito de fraternidade para abraçar a todos que entrarem por estas portas.
-Não sejas tão ingênuo, Fabiano. Ela foi a única das irmãs lourenses que não quis se levantar para cantar. Obviamente, não passa esta moça de uma desviada.
-Ela não é lourense, tampouco veio com as mulheres no ônibus. Entrou aqui na igreja porque tu a confundiste com as outras. Além do mais, mesmo não sendo evangélica, ela ficou até o fim do congresso e hoje quis vir acompanhar um dos cultos. Sinal de que gostou daqui. Qual o problema?
-Soubeste de tudo isso em poucos segundos de conversa com a dita cuja?
-Nete, teu ciúme está excedendo.
-Ah, meu querido. A Palavra fala que devemos orar e vigiar, e isto se faz muito necessário quando estamos diante de certos tipos de gente.
-Orar e vigiar a nossa vida. Não a dos outros.
-A paz do Senhor, irmãos- Valente chega ao recinto.
-Mas olha quem está aqui: o varão valoroso.
-Foi difícil, mas cheguei.
-Onde está o seu inseparável saxofone, gajo?- Nete estranha a ausência do instrumento- O comentário geral é que tu és muito talentoso. Emocionaste a todos.
-Saí cedo da praça e fui tomar um banho. Daí, eu o deixei lá no... Onde eu costumo deixar todas as noites.
-No Lisboa Noite?- Nete toma ao marido e ao músico de surpresa.
-O que é que aquele motel tem a ver com a nossa conversa, Ednete?
-Pergunte ao nosso irmão, Fabiano. Eu o vi pelo ônibus saindo, em plena luz do dia, daquele local infecto. Não é verdade, irmão?
-Respondas, Valente! O que minha esposa diz a teu respeito tem ou não fundamento?
O saxofonista não sabe como agir. Ainda assim, Cissa se mostra apreensiva, esperando pelo que ele dirá.

14/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 6


-Filho, onde é que tu estavas?
-O que aconteceu para estarem despertos a esta hora?
-Fiz-te eu a indagação primeiramente, Otávio. De onde é que tu vens, se é que podemos saber?
-De uma festa. Uma boate perto daqui.
-Tato, chegaste um pouco tarde, não?
-Estiquei um pouco e fui dar uma volta.
-Com quem?
-Sozinho, Pai, com quem mais seria?
-Se a resposta fosse tão óbvia, não me daria ao trabalho de questionar-te.
-Por que não disseste que sairias, meu filho?
-Resolvi de última hora, Mãe.
-Sem nos consultar?
-Qual o problema? Esqueceu-se de que sou um homem? Um adulto?
-Esqueci, sim. Sabes qual o problema, Otávio? É que a única informação que consegui armazenar é o nome do proprietário da casa onde tu moras, que por sinal sou eu.
-Não precisas falar desta forma com o Tato, Kleber.
-Não precisaria se não tivesse saído sem nos avisar, se não tivesse entrado em casa como um verdadeiro marginal. Passou por tua cabeça o que ocorreria se tivesse sofrido um acidente enquanto estávamos crentes de que tu estavas lá em cima, a dormir?
-Desculpa-me. Não vou mais sair desta maneira, eu te prometo.
-Melhor mesmo. Porque este comportamento não é de teu feitio, Otávio. Dora, além do chá, prepare também um café. O hálito do “adulto” está intragável. Com licença- Kleber dirige-se ao quarto do casal.
-O que foi que te deu?
-Uma noite de diversão. Não tenho esse direito?
-Não o de preocupar sua família. Poderia ter acontecido algo, meu filho...
-Estou inteiro, não estás vendo? Chega dessa celeuma, dessa tempestade em copo d'água. Se importa que estou vivo, ótimo. Podem constatar.
-Largues de ironia. Teu pai tem toda razão de estar irritado.
-Viu como ele falou com desprezo sobre o fato de ser esta a casa dele?
-Deixou de ser verdade?
-Claro... A senhora está sempre pronta para defendê-lo.
-E desde quando tu te propuseste a atacar teu pai gratuitamente? O que foi que te deu? Tu não és assim, Otávio.
-Melhor eu ir ao meu quarto.
-Ótimo. Faça isso. E depois que tomar o café, tome também um bom banho. E juízo, para não repetires essa cena patética.
-Todos os que não são abstêmios já passaram por isso, qual é o problema de vocês comigo?
-Nenhum... Exceto o fato de sua cabeça parecer estar virada do avesso, e por razões que até prefiro desconhecer. Suba ao quarto.
-Não fiques entristecida comigo, Mamãe...
-Ao quarto, Otávio! Já te falei!
Tato apanha os sapatos e vai para os seus aposentos, deixando Dora chocada com o seu modo cambaleante. E enquanto uns vão dormir naquele horário, outros chegam cedo ao trabalho. É o caso de Hélio, que vai ao restaurante do qual é proprietário, o Recifeeling, com referências culinárias e arquitetônicas que remetem ao nordeste brasileiro, para onde ele sempre vai durante suas férias. Apesar do ambiente agradável, a aflição é a sua companhia nos últimos dias.
-Bom dia, Hélio- cumprimenta Alessandra, a gerente do restaurante- Como chegaste cedo hoje! O que houve?
-Falta de sono... Não, o problema é a minha preocupação mesmo.
-Qual é o problema?
-Falta de clientes, como tu bem sabes, Alessandra.
-É só uma fase, Hélio.
-Que está durando até demais.
-Vai ver é a época do ano, não é a primeira vez que o restaurante passa por este tipo de situação.
-Mesmo assim, eu fico preocupado. Preciso incrementar o Recifeeling com alguma atração.
-Por que não entras tu em contato com aqueles cantores independentes que tu conheces lá do nordeste do Brasil?
-Já pensaste em passagem? No quanto que eu gastaria se os trouxesse até aqui? A época é de contenção de despesas.
-Vamos acreditar que logo vai aparecer algo que entretenha o público.
-Tomara...
-Vais ficar a manhã toda na tua sala?
-Não. Vou à procura de alguns fornecedores no centro, e acho que às onze da manhã estarei de volta.
-Bom trabalho, então.
-Obrigado.
Horas depois, Hélio sai de casa em seu carro e vai até o centro de Lisboa, como anunciado à Alessandra. O veículo trafega perto do ônibus no qual está Nete, que havia acabado de fazer uma visita a um hospital especializado em oncologia. Fabiano telefona para a esposa, esta dentro do coletivo que está em frente ao Lisboa Noite.
-Alô, amado.
-Onde estás?
-Saí do hospital e já voltando pra igreja. A irmã que ficou responsável pelas flores já chegou?
-Sim, inclusive ela ficou em dúvida se era pra trazer dente-de-leão ou margarida. Para garantir, trouxe as duas.
-O que eu pedi a ela foi...
Valente está saindo apressadamente do Lisboa Noite, pois havia dormido mais do que o previsto. Corre com o saxofone em direção à praça onde costuma ficar.
-Nete? Nete, tu estás na linha?
-Algum problema?- a florista, que está ao lado de Fabiano, estranha o silêncio da esposa do pastor.
-Nete, estás a ouvir-me?
-Claro que estou, Fabiano. Deve ter sido uma interferência.
-E então? Quais foram as flores que tu pediste?
-Margaridas. Ficam mais bonitas no templo. Quando eu chegar, cuidarei da ornamentação.
-Demorarás pra voltar?
-Dependerá do trânsito- o olhar de Nete acompanha o apressado saxofonista- Vou ter de desligar, meu querido. Até mais- encerra a ligação quase que abruptamente, o que causa estranhamento no marido.
-Ednete vai querer margaridas.
-Ótimo. Vou até o carro trazer as caixas- a florista se prontifica.
-Quem diria? Aquele rosto de anjo saindo do antro de fornicação? Ainda bem que eu não costumo enganar-me com as pessoas.
O músico se mostra animado, pois a praça está mais cheia de visitantes do que o costume. E começa a tocar as canções católicas que conhece, para depois tocar as músicas que tanto tocavam nas ruas de Lisboa desde que passou a viver a maior parte do tempo perambulando por elas. Quando um bom número de transeuntes está ao seu redor, uma moça pede.
-Toques uma do Calema.
-Qual música?
-Qualquer uma. Pode ser aquela que diz: “eu vou te dar amor até dizeres”...
-Ah, “vou acreditar até pedires”...
-Esta mesma.
-Tu és quem manda.
Assim que Valente interpreta “Vai”, chega Hélio com três sacolas de ingredientes para o prato especial daquela quinta-feira. Mas ele para de caminhar apressadamente ao ver o saxofonista em ação. Como há certa repercussão do fonograma na cidade, não demora para que a moça que solicitou a canção comece a entoar a música, junto com outros populares que têm consciência do quão incessante é a presença desta nas rádios portuguesas. O dono do Recifeeling, por sua vez, tem timing necessário para identificar o potencial do músico jovem.
-É ele.

07/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 5


Nete sai da porta da Comportas e se dirige ao púlpito, de onde dirigirá o Congresso de Mulheres das Comportas do Céu.
-Quero saudar a amada igreja, e a você que nos visita, com a paz do Senhor Jesus.
-Amém- eis a resposta de boa parte dos presentes.
-Gostaria de dizer-vos que é um imenso prazer receber a todos nessa noite, porque sei que viemos aqui para adorar Àquele que morreu na cruz para salvar-nos.
-Numa igreja protestante? Eu? Devo de estar no “Inferno de Dante”, ou qualquer um.
-Sejas bem-vinda- Valente tenta iniciar um diálogo.
-Tu também- Cissa responde, de maneira ríspida.
-Tudo bem, obrigado- Fabiano desliga o celular- Não consigo acreditar.
-O que houve, Pastor?- a aflição de Fabiano atinge Valente.
-Nosso tecladista teve um imprevisto e disse que não poderá vir hoje.
-Deve ser por conta do temporal forte.
-Antes fosse: o teclado teve que ir para uma assistência técnica.
-Pensei que as mulheres fossem cantar a capella hoje.
-A quem?
-A capella: sem acompanhamento.
-Como vim eu parar aqui?- Cissa fala baixo, entredentes.
-Ah, sim. Apenas a maioria das apresentações. A primeira canção, que será um dueto entre mim e minha esposa, queria que fosse com algum som ao fundo. O minisystem não pega há dois meses, minha esperança estava no tecladista.
-Talvez eu possa ajudá-los.
-Não vejo como.
-Tocando o sax. Só precisaria saber qual música querem interpretar.
-Ah, isto é fácil. Sabes aquele hino, o “Hallelujah”?
-Maravilhoso. Cantávamos muito no orfanato.
-Podes tocar para a igreja?
-Se não me chamassem, eu mesmo me convidaria. Vou para atrás do púlpito, então- Valente carrega o saxofone.
-Sejas muito bem-vinda, irmã. Minha esposa visitou a igreja de vocês, em Loures, e fez questão de vê-las interpretando os louvores da Harpa.
-Harpa? Meu senhor, está havendo um engano grave. Eu não sou irmã de ninguém deste lugar, nem mesmo evangélica.
-E como se explica este figurino?
-Qual o problema? Estou até mais composta do que em dias normais. A louca lá da frente que me arrastou até aqui.
-Perdão, é que minha esposa realmente acreditou que você fizesse parte do coral de mulheres lourenses.
-Trate de me lembrar de não viajar até Loures tão cedo...
-Mesmo assim, eu peço que fiques à vontade. Não foi em vão que tu pisaste aqui. Vai que recebeste algum livramento...
-Pois é. Quem é que saberá?
-Será que o meu varão valoroso pode vir até o púlpito, por gentileza?- Nete fica enciumada com a conversa entre Fabiano e Cissa. Inocentemente, o marido obedece à esposa e segue até o púlpito.
-Essa coisa de “varão valoroso” contagia tanto quanto coqueluche- Valente observa, em voz baixa.
-Eu é que não ficarei mais um segundo que seja neste lugar- Cissa se levanta do banco e tenta sair, mas é impedida pela chuva, disposta a não dar trégua.
Valente, Nete e Fabiano interpretam “Hallelujah”, e muitos ficam admirados com a presença e o talento do saxofonista, que ali pisava pela primeira vez. Sem ter como sair, Cissa volta ao lugar no qual estava e acompanha o culto. Terminada a primeira canção entoada pelos pastores, o jovem retorna para o lado de Cissa, mal disfarçando seu contentamento em estar perto de alguém tão lindo e, à primeira vista, simpático. O que, entretanto, atraiu-lhe, foi o fato de conhecerem-se na igreja. Em sua concepção, a inquieta moça frequentava o templo, e somente por isso merecia sua atenção. Era como se estivesse dotada de todas as virtudes concedidas a um único ser humano.
Após ver as protestantes lourenses louvarem dois cânticos da Harpa Cristã e o próprio coral feminino da Igreja Comportas do Céu, os presentes acompanham a pregação daquela noite, realizada através de Nete. Até então, Cissa continuava impaciente e irritada, procurando sequer se lembrar do compromisso que perdeu, a fim de não ficar ainda mais nervosa. Enquanto Valente se vê completamente envolvido com o tema, a companhia da garota ao lado era o relógio. O tempo passava vagarosamente... Só para ela...
Chegou a hora na qual Fabiano toma a palavra no congresso organizado e dirigido por sua esposa, com a finalidade de deixar uma bênção na despedida dos que ali estavam. Um pedido, inusitado para os visitantes e comum para os que vão diariamente ao templo, é feito pelo pastor:
-Respirem fundo, olhem para os irmãos que estão do seu lado e digam com fé.
Empolgado com certa restrição, o saxofonista vira para Cissa, que prefere olhar pra cima.
-Irmã?- indaga o rapaz, fazendo a jovem olhar para ele, praticamente revirando os olhos.
-Repitam comigo- a partir daí, Fabiano fala pausadamente para que todos possam repetir- “Eu creio que tu receberás o milagre da parte de Deus, e quero ver-te aqui para contares a tua bênção”. Amém?
-Amém.
-Agora, abrace esse irmão que está do seu lado e diga em seu ouvido que quer vê-lo de volta à casa do Senhor. A paz do Senhor Jesus.
Valente troca um abraço com Cissa e diz aquilo que Fabiano ordenou à igreja.
-Quero ver-te de volta à casa do Senhor, minha amada.
Algo é dito para Valente, e Cissa aproveita que muitos estão saindo para deixar o templo. A misteriosa frase deixa o saxofonista intrigado, mas ele não a segue, preferindo cumprimentar Nete e Fabiano. Na volta pra casa, que ela particularmente achou que nunca fosse se concretizar, Michel está à sua espera.
-Não acredito... Não acredito que você voltou!- corre para abraçá-lo.
-Nossa! Quanta vontade de ver o teu irmão! Ai- Michel recebe um safanão da irmã.
-Nem penses em se atrever a me abandonar novamente, ouviste? Tu não sabes o quanto eu sofri com sua ausência.
-Pensei que estivesses acostumada com meu modus operandi.
-Estou a falar sério, Michel. Foi difícil sem ter-te por perto.
-Por quê? O que aconteceu?
-Ricardo. Só este nome já é capaz de explicar tudo, não é?
-Ainda insistindo nesse gajo? Mas tu pareces ser desprovida de inteligência, é inacreditável.
-Quanto a isto, não se preocupe. Acabou. Estou lutando para esquecê-lo.
-Pelo que vejo, a tarefa não tem sido executada com sucesso. Nem mesmo com afinco.
-Mas... Conta-me da viagem, como é que foi lá nas Bahamas?
-Um verdadeiro paraíso, Cissa. Se eu pudesse, jamais sairia de lá.
-Nossa, é tão bom assim para não quereres voltar à tua casa?
-Digamos que eu lamento mais por não poder desfrutar das companhias de lá do que propriamente pelo aspecto paradisíaco do lugar.
-Hum... Apaixonou-se?
-Clarissa, o único homem pelo qual eu me apaixono todos os dias sou eu mesmo.
-E como sei...
-Nossa mãe, estás toda molhada! O que houve?
-Prestes a pegar uma pneumonia. Vou me trocar- Cissa tira a blusa e vai ao seu quarto, sendo seguida por Michel.
-Não me venhas dizer que foi por conta da chuva, pois ela até diminuiu.
-Agora, não é? Porque quando cheguei àquela igreja, estava terrível.
-Igreja? Não, espera um pouco. Agora o Ricardo te fez apelar para a religiosidade?
-Nada disso. Por mais louca que seja, essa é uma história que merece ser contada. Aconteceu o seguinte: a Beatriz me convidou para ir à festa de aniversário do Fernando, só que o meu carro...
Ambos prosseguiram e se divertiram com a conversa enquanto Cissa pega uma nova muda de roupas. Michel já havia desembarcado em Lisboa há algumas horas, quando a irmã havia saído inutilmente para a festa, enquanto a Família Goulart- composta por Dora, Kleber e Tato- voltavam à cidade depois da temporada nas Bahamas. Como Tato e Michel haviam se encontrado algumas vezes durante a viagem, o fato de serem da mesma capital funcionaria como pretexto para as próximas conversas...
Uma balada é o ponto de encontro entre os dois amigos. E isso não foi mera obra do acaso, já que Michel deu o endereço da festa para Tato ainda no decorrer de sua estadia no hotel. O filho de Kleber e Dora sai de casa tardiamente, sem avisar aos pais, mas o taxista demora a chegar e ele só desembarca quando o irmão de Cissa encerra sua performance, pois faz as vezes de DJ. O atraso não é o suficiente para interferir no diálogo novo que travam ambos, iniciado através de um abraço.
-Que bom ver-te novamente.
-E tu, como estás?
-Do modo que sempre almejo: vivendo intensamente. Pelo visto, tua família aproveitou as Bahamas um pouco mais.
-Merecíamos mesmo estender as nossas férias. Há tempos que propúnhamos fazer uma viagem, mas o Papai se recusava.
-E o que o levou a mudar de ideia?
-Acho que pesou um pouco na consciência nunca termos tido muito tempo para fazermos algo juntos. O Doutor Kleber Lacerda Goulart ama o que faz, sente prazer em mergulhar no trabalho.
-Disseste-me uma vez qual a ocupação dele, mas eu acabei esquecendo.
-Prometes que não vai rir de mim?
-Por quê?
-Porque ele é dono de uma agência de viagens.
-Ah, é verdade- os dois riem- Chega a ser pitoresco um homem sem tempo para viajar com a família ter justamente esse emprego.
-Verdade. Michel, gostaria de pedir-te perdão.
-Pelo quê?
-Por não ter conseguido chegar a tempo para ver a ti como DJ. Tanto que tu insististe e eu acabei não comparecendo.
-Ora, Tato, não precisa culpar-se por conta desse imprevisto. Acontece.
-Espero não ter estragado a noite da gente.
-Claro que não. Ainda mais porque, pela primeira vez não te referiste a nós como “eu” ou “você”, e sim como “a gente”. Tenho pra mim que a noite só está a começar.
-E o que vamos fazer?
-Não sei. Dize-me tu. Acaso não existe algo que possamos fazer, ambos em conjunto?
-Permite-me que eu seja... Um pouco mais sincero?
-Mais sincero do que já és, impossível.
-Olha, Michel, é que... Jamais aconteceu comigo esse tipo de cousa, de me sentir dividido entre o agora e a minha natureza.
-Tato, eu sou alguém que te deseja o melhor. Não estou a imputar-te nenhum tipo de escolha. Façamos um trato.
-Qual?
-No dia em que um de nós se machucar, cessamos com ações, lembranças, qualquer coisa que remeta ao nosso sofrimento. Do contrário, temos o dever de procurarmos a felicidade. OK?
Michel toca em um ponto interessantíssimo: a felicidade. Para alguns, ela é materializada nas coisas mais simples; outros creem que se trata simplesmente de falar mal do próximo. Alguém duvida de que grupo de pessoas Cissa, visivelmente contrariada por ter entrado na Comportas, faz parte nesse momento?
-Sério: o que eu vi lá dentro daquele lugar é de fazer qualquer um corar.
-O problema, Cissa, é que você não está acostumada a frequentar esses lugares- adverte Olívia- Mas se tu se dispuseres a conhecer melhor, sei que amarás.
-Não ligues para isso, Cissa- Beatriz debocha da sua irmã- Antes de saíres, amiga, verifiques se sua bolsa não está repleta de folhetos de literatura bíblica. Se estiver a ponto de nem fechar, foi ela quem colocou.
-Olívia, eu entendo que esta também seja a sua religião, mas eu não me senti à vontade.
-Acontece, Clarissa, que respeito é algo que transcende noções cristãs ou meramente religiosas. Se tu não sabes exercê-lo, não serves para ser cristã, nem religiosa, nem um ser humano que se dê ao respeito.
-Claro... Respeito é assassinar milhões de pessoas em nome de um conceito que não se pode comprovar. Olívia, tu quando queres tratar deste assunto, torna-te verdadeiramente insuportável.
-Não precisas falar deste modo com a sua irmã, Beatriz...
-Não ouses defendê-la, Cissa. O que vocês pregam e acreditam é algo absurdo! Pior é a lavagem cerebral que querem submeter o resto da humanidade.
-Que humanidade, Beatriz? Aquela que tu não tens, justamente por não teres respeito a ninguém?
-Gente... Agora a boa moça revelou-se uma revoltosa.
-Talvez porque tu penses que, calando-me, sou capaz de abrir mão dos meus preceitos. Ocorre que caráter independe de quem concorda conosco.
-Vocês não acham que esse tema se estendeu demais? Chega de discussão, por favor.
-Tens razão, Clarissa. Melhor eu ir ao meu quarto, estudando eu ganho bem mais. Boa noite.
-Vai, insuportável! Vai!
-Nem pra tua irmã tu alivias, hein?
-Cissa, eu já fui a uns cultos que a Olívia me arrastou e, definitivamente, não há nada interessante para continuar indo a uma igreja.
-Pior que eu encontrei um motivo para voltar até aquele lugar.
-Espero que seja um homem que te faças sublimar o Ricardo da mente.
-Mais ou menos...
-O que era, então? Um verbo: ação, estado ou fenômeno da natureza?
-Tinha ele um rosto de menino, daquele que parece nunca ter saído na rua.
-Detento?
-Falo sério, Beatriz! Alguém puro, entende?
-Virgem?
-É. Por que não dizer?
-Santos do pau oco podem ser visto em milhões de lugares, meu anjo. A não ser que... Sua mente planeje depravar o pseudo-seminarista.
-Beatriz... Aquele gajo não parava de me olhar, estava inebriado.
-Use-o como válvula de escape. Se ele é capaz de tirar-te desse estado quase catatônico...
-E repetir toda a dor que o Ricardo me fez passar?
-Não se trata do Ricardo, e sim de si mesma, Clarissa. A vida funciona para descartarmos e sermos descartados. Cada um tem seu dia de glória, nos negócios e no campo sentimental.
-Pra mim, isso tem nome: egoísmo.
-E quando amamos tanto alguém que desejamos que ele não olhe para ninguém, e sim para nós, por termos a certeza de que somente nós o amamos verdadeiramente e com loucura? Nem o mais idiota dos românticos chama isso de egoísmo, e sim de amor. Procures entender o que este rapaz que te fez suportar um congresso de protestantes tem para fixar-se em sua cabeça. E descubra com prazer. Para ambos.
Como Michel passou a noite fora, Cissa dormiu mais uma vez na casa das irmãs Gusmão Alencar. O aventureiro passeou pela Lisboa acompanhado até acabar o combustível de seu carro, quando o dia estava prestes a amanhecer. Depois de uma madrugada de diversão, pediu um táxi para que Tato voltasse a sua residência. Sentiam-se ambos revigorados. O sorriso de filho único de Kleber dissipar-se-ia quando visse o pai na sala, às cinco da manhã. O motivo é que este estava há quatro horas acometido de uma insônia.
-Kleber?- Dora viu que a cama estava vazia e vem até o sofá, no qual está Kleber sentado- Por que a luz está acesa?
-Desde a uma da madrugada estou em claro, Dora.
-Sentes alguma coisa?
-Nada.
-Esperes, que vou te preparar um chá.
-Não adianta, daqui a pouco sairei para a agência.
-Querido, tu não tens condições de conduzir um carro após uma noite sem descansar.
-Tens razão, Dora... Faça-me um favor: prepare o chá e leve lá para cima. Vou recolher-me novamente.
-Está bem, eu não me demoro- Dora cumprimenta o esposo com um delicado beijo e apaga a luz da sala, enquanto Kleber levanta do sofá e vai para a cama. Acreditando que todos estão dormindo ainda, e não atentando para a luz que há pouco estava acesa, Tato entra com os sapatos na mão para não fazer qualquer ruído.
-Otávio?
O susto o faz derrubar os calçados. Olha para Dora, apavorado.
-O que vocês estão fazendo aqui a essa hora?
-De onde estás vindo, Otávio?