28/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 8


-Não vais responder à minha indagação? Talvez porque não tenhas como negar- Nete testa a paciência do jovem, enquanto Fabiano demonstra estar atônito à revelação feita pela esposa.
-Não só não tenho como negar como também não quero, irmã- olha para Fabiano- O que ela diz é a mais pura verdade.
-Quanta desfaçatez! Como é que tu dizes isto em pleno templo, insubordinado?
-Justamente por isso, senhora. É pelo fato de estar dentro de um templo que eu não posso mentir. Aliás, o meu compromisso com a verdade independe de onde eu esteja.
Cissa fica de pé, acreditando que iniciar-se-á uma discussão.
-E como tu podes dizer isso com tamanha tranquilidade, meu filho?
-A questão é simples, Pastor: eu durmo lá todas as noites.
-Dormir? Esse gajo quer engabelar-nos.
-Desde que deixei o orfanato em que vivia, passei a trabalhar nas ruas...
-Somente isto não é motivo pra viver em meio à prostituição...
-A senhora quer fazer o favor de deixar que eu termine de falar?- Valente, mesmo sendo um sujeito sisudo, enfrenta as acusações de Nete com parcimônia e em um tom de voz um pouco elevado- Não acumulo rios de dinheiro tocando saxofone em plena praça lisboeta, como bem deves imaginar. Aliás, imaginar é o que de melhor a senhora tem feito, pois me vem com quatro pedras na mão só pelo fato de olhar para mim.
-Esse papel não é bem desempenhado por mim. Prefiro deixar para quem tem talento, como a antiga inquisição da Igreja Católica.
Isso porque ninguém mencionou onde o músico foi criado, pelo menos não ainda.
-Deixe, então, que eu te diga algo sobre Catolicismo: não adianta ser educado para tratar as pessoas com respeito e não pôr em prática. Foi isso que as freiras me ensinaram e é exatamente assim que eu vivo, quer as pessoas queiram, quer não. Até porque, se não for para exercer amor, estamos frequentando e sendo igreja para quê, não é mesmo? Mas, dando sequência ao que estava eu explicando, eu durmo no Lisboa Noite porque um músico ambulante não tem condições de pagar uma pousada.
-Isto não diminui em nada o fato de você frequentar diariamente um antro de fornicação.
-Concordo, senhora. Mas enquanto eu não for incluso na pirâmide social, eu continuarei sem saber o que é, de fato, fornicação. Tanto teórica quanto praticamente. Posso adorar ou há algum tipo de objeção de sua parte?
-Desculpe, Valente, não temos o direito de nos intrometermos em sua vida particular.
-Com todo o respeito, vocês não o fariam porque me exponho o suficiente para que não haja dúvidas sobre mim.
-Sente-se, meu filho, por favor.
-Deem-me licença.
O jovem saxofonista ajoelha no banco que está ao lado de Cissa, sem notar a sua presença. Fabiano, em voz baixa, recrimina Nete pela provocação feita ao rapaz. Valente, em silêncio, pede que Deus o ajude a suportar o fato de viver naquele lugar e as dificuldades pelas quais vêm passando. Clama também para que venha a resposta sobre o dilema de aceitar ou não o convite para trabalhar no Recifeeling e que possa aguentar qualquer indireta que receber. O principal motivo da súplica: que ele e Deus continuem andando lado a lado.
Ao se levantar, Valente vê Cissa sentada junto a ele.
-Tudo bem?
-Não. Mas sei que vai melhorar.
-Eu vi o que aconteceu agora há pouco contigo. E confesso que gostei.
-Da discussão?
-Do jeito que tu conduziste a questão. Não te eximiste de culpa, não despertaste pena...
-Não poderia me eximir de culpa. Todos nós pecamos. O que não aceito é ser imputado por algo que não fiz. Faço questão de conviver com a verdade.
-Tu pareces ser bem maduro, mesmo para alguém de tão pouca idade.
-O bom é que não foi necessário que eu mesmo tomasse essa iniciativa por mim. Meus pais fizeram isso.
-Pensei ter ouvido que tu foste criado por freiras.
-Por isso. Quem mais poderia me ensinar a agir com maturidade senão eles?
-Imagino o quanto devas sentir a ausência deles...
-Não sinto, juro que não. Nunca convivi com eles para sentir falta de afeto. Deus é tão maravilhoso que soube me compensar. Doía apenas quando via os meninos sendo adotados e eu ficando para trás. A Madre Joana, que sempre foi muito apegada a mim, disse que eu passei pelos dias ruins para viver dias melhores.
-Também deveria eu acreditar nisso. Queria eu ter a sua força.
-A minha fé, você quer dizer.
-Sei lá, isto que tu tens, para enfrentar as adversidades.
-Queres tu enfrentá-las?
-Não sei. Só sei que não estou satisfeita com a história que estou vivendo.
-Por que não eliminas aquilo que tanto te aflige?
-Porque é como se estivesse matando a mim mesma.
-Esvazie-se, então.
-Como acreditas que eu possa fazer isto?
-Tendo consciência de que podes ser feliz por um poucochinho de tempo, mas depois sentirá um vazio enorme no peito. Melhor mesmo é aguardar por algo que dure para sempre, e não só por um momento.
-E como começo?
-Dialogando com O dono do tempo. Dizem que o tempo é o remédio de certos males, mas quem cura é O dono.
-Se estiver falando de Deus, saiba que eu não sei orar.
-Coloques aquilo que tanto te traz dor à luz. Contes a Deus. Ele não está preocupado com palavras bonitas, o que Ele quer é sinceridade. Muitas vezes, queremos que Deus toque nosso coração, mas podemos tocá-Lo e, dessa forma, alcançamos o milagre. Bom, acho que falei demais.
-Não. O que tu disseste foi muito bonito. Queria ouvir mais.
-Antes de mim, ouças nosso Pai falando ao nosso coração.
-Sabes, eu queria um espelho nessa hora para ti. Precisavas ver aquele garoto medroso quando colocado contra a parede e o homem forte que se revelou em poucos segundos, e que conversa comigo agora.
-Ninguém é forte o suficiente. Todos somos fracos, e temos que admitir. O que faz uma pessoa cristã ser considerada forte é o fato de ela querer andar com Cristo. Mas não se preocupe. Basta querer estar perto Dele que o entendimento é alcançado.
-É, quem sabe? Acho que nós não fomos devidamente apresentados. Meu nome é Clarissa- estende a mão para cumprimentá-lo, enquanto ele deixa uma lágrima cair, devido ao descontentamento vivido há minutos.
-Valente Valença- aperta a mão de Cissa.
-Mais conhecido como “varão valoroso”.
Ambos sorriem um para o outro, mas preferem não trocar nenhuma palavra a mais durante o culto. Valente se sente mais tranquilo, e opta por manter-se em silêncio antes de colocar a sua decisão em prática. O episódio com Nete e Fabiano o auxilia durante a inclinação do convite feito por Hélio. Mas suas intenções somente revelar-se-ão na manhã seguinte, quando o dono do Recifeeling chega pontualmente em seu horário habitual, encontrando Alessandra como de costume.
-Bom dia, Hélio.
-Tudo bem contigo, Alessandra?
-Tudo. Estás tão animado hoje, aconteceu alguma coisa?
-Nada. Mas sabe aquele dia em que, apesar de tudo, tu sentes que vai receber uma boa notícia?
-Olhe, eu não passei por nada parecido, mas tua sensação tem uma razão concreta de existir.
-A que se referes?
-Vejas quem está à tua espera.
Levantando-se de uma mesa do restaurante, vem Valente em direção ao empresário.
-Bom dia, senhor.
-Valente? Posso encarar a tua presença como um “sim”?
-Não. Podes encarar como um “tudo bem, eu topo”.
-Achei-te muito em dúvida quando falei contigo na praça.
-E realmente estava, mas pensei melhor. Não apareceria outra oportunidade de ouro como esta.
-Fico feliz por teres tu aceitado o meu convite. Tenho certeza de que serás um sucesso aqui no Recifeeling.
-Deus queira... Quando é que eu posso começar a trabalhar aqui?
-Se não tiveres nada mais para fazer, hoje mesmo!
-Ótimo.
-O que te fez mudar de ideia, gajo?
-Nada mais do que a necessidade, senhor.
-Por favor, chames a mim de Hélio, não sou tão velho assim.
-Desculpe, é só uma questão de respeito.
-Não vais desrespeitar-me se me chamares pelo meu nome próprio, não é verdade? Bem, a Alessandra vai mostrar todo o espaço do restaurante, para tu já se habituares ao ambiente. A propósito, diga-me: conheces bem fados?
-A bem da verdade, quase nada.
-Eu tenho uma lista de canções que podes ensaiar, mas... O que tu costumas tocar?
-Música católica. Nada a ver com o ambiente.
-Se bem que... Pode ser uma novidade que chame a atenção dos que frequentam o restaurante.
-Comprometo-me a ensaiar algumas músicas antes, e podemos adiar a minha estreia.
-Vamos fazer uma playlist eclética.
-Oi?
-Eu te darei uma lista de fados e tu ensaias uns dois ou três. E tu completas com aquilo que quiseres tocar. Pode ser?
-Claro.
-Que dias da semana tu podes trabalhar?
-Estou disponível diariamente.
-Mas que tal alterarmos as noites? Certamente vais querer treinar mais canções...
-E ir à igreja que ando frequentando.
-Se não tiveres empecilho nenhum... Meus parabéns: a partir de hoje, tu és o primeiro... E único músico exclusivo do Recifeeling- cumprimenta o rapaz com um abraço, sinalizando que as coisas melhorarão.
-Podes vir comigo, Valente. Eu vou apresentar-te o restaurante- garante Alessandra, antes de o músico prometer ao proprietário do estabelecimento:
-Farei de tudo para que não se arrependas.
-Fiques tranquilo, gajo. Confio em ti.
Depois, Hélio telefona para o irmão, que atende apressadamente.
-Agora não vai dar pra falar, Hélio. Estou a sair de casa neste momento.
-Tens alguma coisa pra fazer à noite?
-O mesmo de sempre: jantar com a família.
-Que tal mudar de locação?
-Estás convidando-me para ir ao Recifeeling?
-Assim, tu aproveitas e me contas das últimas, já que há tempos não pisas aqui.
-Boa ideia. Avisarei ao pessoal de casa. Chegamos por volta das oito, pode ser?
-Perfeito. Aguardo vocês. Abraço, irmão.
-Outro para ti.
Antes de ir ao trabalho, o irmão de Hélio chama a sua esposa e o filho para jantar. Este não aceita, em virtude de desejar ficar em casa, mas pediu que agradecessem ao tio. A cônjuge aceita prontamente o convite e demora alguns minutos escolhendo o vestido. Eis que Dora surge no Recifeeling trajando um longo vestido azul, com pedrarias ao redor do pescoço e poucos adornos. O esposo, o ocupado Kleber, não parece ter se deixado enraivecer pelo comportamento adotado por Tato nos últimos dias e comparece ao jantar. O casal é recebido por Hélio.
-Sejam bem-vindos, meus queridos.
-Que prazer ver-te de novo, Hélio. E esse lugar está a cada dia mais incrível.
-Mas não mais do que o dono- brinca o anfitrião.
-Digas: qual o motivo de ter nos convidado?
-Ora, Kleber, acaso não posso sentir falta da minha parentela?
-Lá vens tu e este teu sentimentalismo próprio...
-Amor, sejas gentil com teu irmão. Não é todo dia que jantamos fora.
-Dora sempre insiste que devemos sair mais vezes. Mesmo depois da viagem ela quer imputar-me passeios.
-Uma mulher, quando dotada de uma bela lábia e um vestido tão belo quanto este, meu cunhado, consegue convencer o marido até de fazer uma ponte aérea das Bahamas para o Museu do Louvre.
-Teu senso de humor continua insuperável, Dora. Mas eu tomei a liberdade de reservar a melhor mesa para vocês. Por favor, sentem-se aqui- Hélio acompanha Kleber e Dora.
-Três lugares? Mas eu te liguei depois e falei que Tato não viria.
-O lugar é reservado a mim, meu irmão.
-Não circularás pelo salão à noite toda? Se antes suspeitava que havia motivos especiais para o jantar, agora tenho certeza!
-Kleber, há tempos que tu não fazes visitas a teu irmão. Aproveitei a oportunidade para saber da viagem às Bahamas, como está meu sobrinho, o que tens feito...
-Trabalhado muito, como sempre. Mas o que terá hoje? O lançamento de um novo prato?
-Hum, da última vez que viemos, o menu veio com aquela comida branca nordestina... Qual era o nome mesmo?
-Tapioca.
-Ah, um verdadeiro manjar dos deuses, Hélio. Já sei que é isto que pedirei.
-Ótima escolha. Mas o lançamento é de um artista. Conheci um gajo na rua que é um verdadeiro fenômeno. É quase hipnotizante.
-Só acredito mesmo vendo, irmão.
-Não seja por isso. Sentem-se, enquanto eu vou ao palco e retorno em instantes- toma o microfone- Boa noite a todos que nesta noite estão aqui. O Recifeeling tem o orgulho de apresentar um novo nome da cena musical lisboeta: o talentoso Valente Valença.
As cortinas se abrem. Como um animal acuado, o jovem lembra que trabalhou para conseguir um lugar melhor para dormir. O medo se dissipa em questão de segundos aos primeiros instantes que a plateia ouve a interpretação saxofônica de "Canção do mar", popular fado lançado há mais de vinte anos.

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