-Filho, onde é que tu estavas?
-O que aconteceu para estarem despertos a esta hora?
-Fiz-te eu a indagação primeiramente, Otávio. De onde é que
tu vens, se é que podemos saber?
-De uma festa. Uma boate perto daqui.
-Tato, chegaste um pouco tarde, não?
-Estiquei um pouco e fui dar uma volta.
-Com quem?
-Sozinho, Pai, com quem mais seria?
-Se a resposta fosse tão óbvia, não me daria ao trabalho de
questionar-te.
-Por que não disseste que sairias, meu filho?
-Resolvi de última hora, Mãe.
-Sem nos consultar?
-Qual o problema? Esqueceu-se de que sou um homem? Um adulto?
-Esqueci, sim. Sabes qual o problema, Otávio? É que a única
informação que consegui armazenar é o nome do proprietário da casa onde tu moras,
que por sinal sou eu.
-Não precisas falar desta forma com o Tato, Kleber.
-Não precisaria se não tivesse saído sem nos avisar, se não
tivesse entrado em casa como um verdadeiro marginal. Passou por tua cabeça o
que ocorreria se tivesse sofrido um acidente enquanto estávamos crentes de que
tu estavas lá em cima, a dormir?
-Desculpa-me. Não vou mais sair desta maneira, eu te prometo.
-Melhor mesmo. Porque este comportamento não é de teu feitio,
Otávio. Dora, além do chá, prepare também um café. O hálito do “adulto” está
intragável. Com licença- Kleber dirige-se ao quarto do casal.
-O que foi que te deu?
-Uma noite de diversão. Não tenho esse direito?
-Não o de preocupar sua família. Poderia ter acontecido algo,
meu filho...
-Estou inteiro, não estás vendo? Chega dessa celeuma, dessa
tempestade em copo d'água. Se importa que estou vivo, ótimo. Podem constatar.
-Largues de ironia. Teu pai tem toda razão de estar irritado.
-Viu como ele falou com desprezo sobre o fato de ser esta a
casa dele?
-Deixou de ser verdade?
-Claro... A senhora está sempre pronta para defendê-lo.
-E desde quando tu te propuseste a atacar teu pai
gratuitamente? O que foi que te deu? Tu não és assim, Otávio.
-Melhor eu ir ao meu quarto.
-Ótimo. Faça isso. E depois que tomar o café, tome também um
bom banho. E juízo, para não repetires essa cena patética.
-Todos os que não são abstêmios já passaram por isso, qual é
o problema de vocês comigo?
-Nenhum... Exceto o fato de sua cabeça parecer estar virada
do avesso, e por razões que até prefiro desconhecer. Suba ao quarto.
-Não fiques entristecida comigo, Mamãe...
-Ao quarto, Otávio! Já te falei!
Tato apanha os sapatos e vai para os seus aposentos, deixando
Dora chocada com o seu modo cambaleante. E enquanto uns vão dormir naquele
horário, outros chegam cedo ao trabalho. É o caso de Hélio, que vai ao
restaurante do qual é proprietário, o Recifeeling,
com referências culinárias e arquitetônicas que remetem ao nordeste brasileiro,
para onde ele sempre vai durante suas férias. Apesar do ambiente agradável, a
aflição é a sua companhia nos últimos dias.
-Bom dia, Hélio- cumprimenta Alessandra, a gerente do restaurante-
Como chegaste cedo hoje! O que houve?
-Falta de sono... Não, o problema é a minha preocupação
mesmo.
-Qual é o problema?
-Falta de clientes, como tu bem sabes, Alessandra.
-É só uma fase, Hélio.
-Que está durando até demais.
-Vai ver é a época do ano, não é a primeira vez que o
restaurante passa por este tipo de situação.
-Mesmo assim, eu fico preocupado. Preciso incrementar o Recifeeling com alguma atração.
-Por que não entras tu em contato com aqueles cantores
independentes que tu conheces lá do nordeste do Brasil?
-Já pensaste em passagem? No quanto que eu gastaria se os
trouxesse até aqui? A época é de contenção de despesas.
-Vamos acreditar que logo vai aparecer algo que entretenha o
público.
-Tomara...
-Vais ficar a manhã toda na tua sala?
-Não. Vou à procura de alguns fornecedores no centro, e acho
que às onze da manhã estarei de volta.
-Bom trabalho, então.
-Obrigado.
Horas depois, Hélio sai de casa em seu carro e vai até o
centro de Lisboa, como anunciado à Alessandra. O veículo trafega perto do
ônibus no qual está Nete, que havia acabado de fazer uma visita a um hospital
especializado em oncologia. Fabiano telefona para a esposa, esta dentro do
coletivo que está em frente ao Lisboa Noite.
-Alô, amado.
-Onde estás?
-Saí do hospital e já voltando pra igreja. A irmã que ficou
responsável pelas flores já chegou?
-Sim, inclusive ela ficou em dúvida se era pra trazer
dente-de-leão ou margarida. Para garantir, trouxe as duas.
-O que eu pedi a ela foi...
Valente está saindo apressadamente do Lisboa Noite, pois
havia dormido mais do que o previsto. Corre com o saxofone em direção à praça
onde costuma ficar.
-Nete? Nete, tu estás na linha?
-Algum problema?- a florista, que está ao lado de Fabiano,
estranha o silêncio da esposa do pastor.
-Nete, estás a ouvir-me?
-Claro que estou, Fabiano. Deve ter sido uma interferência.
-E então? Quais foram as flores que tu pediste?
-Margaridas. Ficam mais bonitas no templo. Quando eu chegar,
cuidarei da ornamentação.
-Demorarás pra voltar?
-Dependerá do trânsito- o olhar de Nete acompanha o apressado
saxofonista- Vou ter de desligar, meu querido. Até mais- encerra a ligação
quase que abruptamente, o que causa estranhamento no marido.
-Ednete vai querer margaridas.
-Ótimo. Vou até o carro trazer as caixas- a florista se
prontifica.
-Quem diria? Aquele rosto de anjo saindo do antro de
fornicação? Ainda bem que eu não costumo enganar-me com as pessoas.
O músico se mostra animado, pois a praça está mais cheia de
visitantes do que o costume. E começa a tocar as canções católicas que conhece,
para depois tocar as músicas que tanto tocavam nas ruas de Lisboa desde que
passou a viver a maior parte do tempo perambulando por elas. Quando um bom
número de transeuntes está ao seu redor, uma moça pede.
-Toques uma do Calema.
-Qual música?
-Qualquer uma. Pode ser aquela que diz: “eu vou te dar amor
até dizeres”...
-Ah, “vou acreditar até pedires”...
-Esta mesma.
-Tu és quem manda.
Assim que Valente interpreta “Vai”, chega Hélio com três
sacolas de ingredientes para o prato especial daquela quinta-feira. Mas ele
para de caminhar apressadamente ao ver o saxofonista em ação. Como há certa
repercussão do fonograma na cidade, não demora para que a moça que solicitou a
canção comece a entoar a música, junto com outros populares que têm consciência
do quão incessante é a presença desta nas rádios portuguesas. O dono do Recifeeling, por sua vez, tem timing necessário para identificar o
potencial do músico jovem.
-É ele.
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