-Dr. Lopes, talvez eu possa doar um dos meus rins para o
Kleber. Posso, mesmo sendo a esposa?
-Claro que pode, mas precisamos fazer exames para saber se tu
és compatível com ele. O mais natural é que o doador seja alguém que possua
laços sanguíneos com o paciente. Vamos fazer os teus exames e logo saberemos se
tu és apta para doar um rim ao Kleber.
-Eu já estava a telefonar para o Hélio, o irmão do meu
marido, mas ele não atende.
-Não percamos tempo, Dora. Temos que aferir se tu és apta
para fazer o transplante.
-Quanto tempo o meu marido ficará desacordado, Lopes?
-Por mais algumas horas. O pior é que, ao despertar, ele
voltará a sentir as dores intensas.
-Vamos fazer o seguinte: eu ligarei mais uma vez para o meu
cunhado. Ele também poderá vir para ajudar o Kleber.
-Está bem, então. Mas não demores. Vou preparar a sala de
exames para que te recebam.
-Obrigada, Doutor- Dora insiste com outro telefonema-
Atendas, Hélio. Atendas de uma vez... - a chamada é insistente, mas Hélio ainda
não voltou para a sua sala. Desesperada pelo estado de saúde de seu marido,
Dora faz os exames solicitados por Lopes.
Parece uma tortura para a dona de casa, como se estivesse
pressentindo que todo o seu esforço na tentativa de salvar a vida de seu marido
será inútil. Não totalmente... Mas o período utilizado para a realização dos
testes que possam comprovar sua compatibilidade para o transplante é usado para
que haja uma conversa definitiva entre Cissa e a visita indesejável que chegou
ao apartamento dos Irmãos Marques Barboza. Em ambas as ocasiões, tudo soava
como indigesto ao extremo.
-Sentes, Ricardo- Michel procura ser gentil com o ex-namorado
da irmã.
-Obrigado.
-O que te traz aqui?
-Eu vou estar no meu quarto, fiquem à vontade- Cissa faz o
anúncio.
-Por favor, Cissa. Eu insisto que fiques aqui. O assunto tem
a ver contigo. Aliás, eu vim aqui para falar justamente contigo.
-Ah, sabemos o quão insistente tu és. Fui eu quem deixei de
sê-lo, quando livrei-me da tua péssima influência. Aliás, não entendo o que temos
para tratar depois de tanto tempo sem nos falarmos. Ao menos de minha parte, eu
não tenho absolutamente nada para falar contigo.
-Muito ficou por dizer quando nós rompemos.
-Quando tu rompeste comigo, é o que queres dizer?
-Interpretes desta forma, tens todo o direito de ficar
magoada.
-Ferida de morte! O que fizeste eu não desejo nem para o pior
dos meus inimigos. A maneira como tu trataste a mim, como se eu não fosse
ninguém, descartando-me ao me tratar como se eu não fosse a tua namorada, como
se nem mesmo fosse eu mulher. Um bicho, para ti, tem mais serventia do que eu,
que não fiz outra cousa além de amar-te.
-Hoje eu sei perfeitamente bem. E somente o sei por não ser
mais o mesmo de antes.
-Verdade? E o que de tão impactante aconteceu, para não seres
mais o mesmo canalha?
-Cissa, mantenhas a calma!
-Como queres que eu faça isto, Michel? Com este imbecil na
minha frente, na minha casa, agindo como se não tivesse havido nada? Como se a
minha raiva não tivesse razão de ser?
-Falas como se eu não estivesse aqui, bem na tua frente...
-Porque não estás! Para mim, deixaste de existir há muito
tempo. Tu contribuíste para que eu pensasse assim!
-Olhes bem, Cissa... Não sou mais o mesmo homem, nem íntima e
muito menos fisicamente. Não está nítida a diferença entre o rapaz que
conheceste e o homem de agora?
-Aonde queres chegar com esta conversa, Ricardo?
-Ficaste boa parte do tempo que estivemos separados sem saber
notícias minhas, não foi? Pois tem uma razão de ser.
-Ricardo, depois do teu rompimento com a minha irmã, foste
para outra cidade. O que eu sei é o que todos nós sabemos.
-Ou o que eu deixei que soubessem.
-Digas logo o que queres com todo este lamento, Ricardo-
Cissa faz questão de que as poucas frases ditas a Ricardo sejam acompanhadas
por muita rispidez.
-Bem... Como vocês sabem, assim que o meu namoro com a
Clarissa acabou, eu...
-Por opção minha, pois não queria mais ser feita de imbecil
na frente de todos, já que tu escancaravas o teu caso com a Telma. O nome soa-te
familiar? Aquela com a qual eu flagrei a ti na cama!
-Hoje eu sei muito bem quem é a Telma.
-Sabes como? Acaso ela fez o mesmo que tu fizeste comigo? A
traição?
-Muito pior que isto.
-Não entendo o que pode ser pior do que ser passada para trás
por quem se ama.
-Quando eu te disser, entenderás por que eu vim aqui,
Clarissa.
-Sou toda ouvidos.
-Como tu bem pontuaste, Michel, eu viajei para outra cidade
com a Telma. Queria começar uma vida ao lado dela.
-Ou seja: fazer tudo que eu pedia, e que te recusavas a
conceder. Eu não vou ficar nesta sala nem mais um segundo que seja.
-Clarissa, vai interessar e muito a ti. Portanto, é melhor
que não saias.
-Dizes de uma vez.
-Há dois anos, eu... Tinha vindo de uma festa com a Telma
e...
-Termines, Ricardo- Michel percebe a aflição do rapaz.
-Eu estava dirigindo. Tanto eu quanto a Telma estávamos
cansados. Até cheguei a sugerir que tomássemos um táxi, mas ela preferiu que eu
dirigisse o meu próprio carro. Quando ainda estávamos na metade do caminho, ela
aproximou-se do meu ouvido e começou a dizer coisas que... Causavam excitação
em mim.
-Poupe-nos dos detalhes sórdidos de tua história com aquela
mulher...
-Esta é a história, Clarissa, e infelizmente eu não posso
fugir dela. Enfim... – Ricardo começa a narrar vagarosamente o que lhe havia
sucedido- A sua boca havia chegado ao meu pescoço, e beijou-me com uma
urgência, típica do comportamento da Telma. Por alguns segundos, eu segui por
uma estrada longa, nem mesmo importando-me por onde eu estava, se era o caminho
certo. Foi quando eu senti um calor sobre o meu abdômen. Era ela que não
esperou sequer a oportunidade para desabotoar a camisa que eu usava e
acariciava a mim, como se fosse a primeira vez que estivesse ao meu lado.
Cheguei a pensar em parar o carro naquela estrada erma, escura, em meio aquela
neblina, e tomar o seu corpo para mim, amá-la naquele mesmo lugar. Telma voltou
a beijar-me, mas não mais no pescoço. Aproximou os seus lábios dos meus, e
aquilo me conduzia à loucura. Os beijos que ela me deu naquela ocasião eram
ainda ardentes do que ela costumava agir, não sei o que havia acontecido. Sem
que eu mesmo sentisse, a braguilha da calça que eu vestia naquela madrugada foi
aberta. Telma desprendeu-se do cinto de segurança e colocou um dos braços sobre
a minha cabeça, e a sua mão direita, quando dei por mim... Daí por diante, a
única coisa da qual consigo lembrar é da enfermeira correndo para chamar o
médico porque, enfim, tinha acordado.
-Um acidente, Ricardo? Por esta razão ficamos tanto tempo sem
notícias tuas?
-Onze meses em coma, Michel. O mundo passou, evoluiu e eu
estava prostrado numa maca de hospital.
-Que coisa horrível... Mas e a Telma?
-Como ela estava sem o cinto de segurança, foi lançada para
fora do carro quando ele capotou. O máximo que ela sofreu foi uma fratura.
Ainda assim, conseguiu acionar os paramédicos pelo celular, já que eu fiquei
preso entre as ferragens. Mas o dia do acidente foi a última vez que vi a
Telma.
-Como assim foi a última vez? Vocês estavam juntos, tinham um
relacionamento!
-Tínhamos- a declaração faz Cissa, que até então estava com o
rosto direcionado para a direção oposta em que estavam o irmão e o ex-namorado,
virar para ver a expressão derrotista do rapaz- Nos primeiros dias, eu soube
que ela estava comigo, até que o médico disse que a minha situação era
irreversível, que eu não acordaria e que, caso eu voltasse a despertar, ficaria
com graves sequelas. Quando eu voltei para casa, depois de um tempo fazendo
fisioterapia para recuperar parte dos movimentos, eu não encontrei mais nada
que remetesse sequer à lembrança da Telma. Segundo o que me contaram, ela
viajou para o Japão.
-Mas e tu, Ricardo? Estás como agora?
-Voltando à minha vida. Mas eu não poderia seguir em frente
porque eu precisava fazer uma cousa, depois de todo este tempo, em que refleti
sobre o que me aconteceu. Eu vim aqui para pedir-te perdão, Cissa.
-A mim?
-Tu foste a mais prejudicada pela minha ausência proposital,
pela minha falta de caráter, pela minha falta de amor. Por isto, eu te devo
desculpas- ajoelha-se diante da moça- Eu sei que nada do que eu disser vai
apagar o que eu te fiz, mas...
-Não é preciso chegares a tanto, Ricardo...
-Por favor, Clarissa. Eu não vou conseguir viver com a
consciência tranquila se não me perdoares de coração. Por favor, entendas o meu
remorso.
-Ricardo... Se tu precisas disto para seguir tua vida em
paz... Eu te perdoo, sim.
-De verdade?
-Olhes para mim. Eu ainda sou a mesma: transparente no que
penso, no que sinto. Conheces-me melhor do que eu mesma. Tua tormenta é por causa
do perdão que eu ainda não te dei? Então, sigas em paz. A minha vida
transcorreu normalmente porque eu não fui capaz de alimentar mágoas.
A noiva de Valente abraça o ainda debilitado rapaz, deixando
Michel abismado com o autocontrole de sua irmã.
-Obrigado. Eu precisava realmente disso, da tua sinceridade.
Devia-te muito, Clarissa.
-Vais, Ricardo. Sigas o teu rumo, e não te preocupes com
nada. Todos nós podemos recomeçar- a frase faz com que o ex-namorado da
vendedora comece a chorar, comovendo Michel, que abraça o visitante.
-Fiques bem, Ricardo. Eu fico feliz que tu estejas pronto
para começar de novo- Michel aperta a mão do rapaz.
-Obrigado, Michel. De coração, muito obrigado- sai do
apartamento, deixando que o DJ feche a porta.
-Gente... O que foi que aconteceu aqui? Foi inacreditável!
Não, e eu nem sei o que é mais absurdo de acreditar: o Ricardo neste estado
deplorável que nós vimos ou tu, que ficaste compadecida da sua situação
estarrecedora.
-Compadecida? Eu? Ainda por cima, pelo Ricardo? Pareces não
conhecer mesmo a irmã que tens, Michel!
-Então, o que eu vi aqui foi... Uma encenação?
-Eu fiquei impressionada, juro-te. Mas não com o que
aconteceu, nem mesmo com o que aquele escroque disse, tampouco com o seu pedido
de desculpas.
-Do que falas exatamente?
-Do meu autocontrole. A minha vontade era de rir
desesperadamente frente ao rosto do Ricardo, e gritar que ele mereceu cada dia
de sofrimento que passou. Aliás, perto das lágrimas que eu derramei pelo fato
de ele ter me trocado por outra, foi pouco!
-Minha irmã... – Michel senta em seu sofá- Agora tu foste
longe demais. Nunca pensei que tivesse tanto ódio guardado pelo Ricardo.
-Mas a vida, quando quer, é justa, Michel. O mundo cobrou do
Ricardo a conta que eu não consegui cobrar, apesar de ser eu a sua maior
vítima. Hoje, basta olhar para mim. Estou noiva de um homem que me valoriza. E
que é totalmente o oposto do Ricardo.
-Mas também é o teu oposto. Lembras que disseste que estavas
com o Valente justamente porque ele não tem nada de teu?
-Só que ele tem caráter. E o meu Valente não precisa mendigar
atenção, perdão, carinho... Isto tudo ele tem. Queres saber? Achei bem
merecido. A única lástima nesta história toda é que não testemunhei o dia no
qual Ricardo deu-se conta de que foi abandonado pela amante. Queria muito ter
visto isto de perto... – seca uma lágrima em meio a um sorriso- Ganhei o meu
dia, Michel.
Acostumado a ver a irmã agir de maneira passional, Michel
fica estupefato de presenciá-la falando de alguém com tamanha frieza. Nem
parece ser a moça desesperada por carinho alheio que conviveu com o rapaz
durante toda a vida...
Após passar por todos os exames, Dora está sozinha no quarto
em que Kleber está instalado. O efeito do sedativo administrado por Lopes
começa a dissipar-se, mas o agente de viagens apenas se move, nada falando. O
médico volta para falar com a esposa.
-E então, Doutor?
-Estou com o resultado dos teus exames aqui, Dora.
-O que dizem eles?
-Infelizmente, tu não és compatível com o Kleber.
-Ah, não. Não pode ser...
-Convoques outras pessoas da família o quanto antes, alguma
delas pode doar um rim ao teu marido.
-Até agora, o Hélio não me atende. Eu já estou desesperada,
sem saber o que fazer. A falta de notícia e o quadro do Kleber que não muda
estão deixando-me ainda mais atordoada!
-Não deixes de insistir. Cada momento é precioso para salvar
a vida do Kleber.
-Já sei... Eu vou ao restaurante do meu cunhado, o Recifeeling. Talvez ele esteja lá. Por
favor, Doutor... Se acontecer alguma cousa, contates-me o mais rápido possível.
-Fiques tranquila, eu avisarei se for necessário.
-Dora... – Kleber acorda zonzo.
-Fales, meu amor.
-O que houve comigo? Onde estou?
-Não te preocupes com nada agora. Tu vais ficar bem, eu posso
garantir.
A esposa de Kleber vai ao restaurante de Hélio, encontrando
Cissa no caminho, já que ela também está indo ao Recifeeling, depois de ter passado em um shopping. Apressada, a vendedora entra no recinto antes da cunhada
do proprietário. Vai ao encontro de Valente, com uma sacola rosada em mãos.
-Meu amor?
-Cissa, que surpresa!- cumprimenta a noiva com um beijo- Eu
não te esperava aqui.
-A intenção foi exatamente esta: fazer-te uma surpresa.
-Muito bem-vinda, por sinal.
-Pensei em acompanhar uma das tuas apresentações hoje.
Incomodo?
-Que pergunta é esta? Claro que fico feliz por prestigiar-me.
-Trouxe isto para ti.
-O que é?
-Abres.
-Deixa-me adivinhar: é de comer?
-Não.
-É um relógio?
-Não, mas tem hora.
-Hum, será que é o que estou a pensar?- desembrulha o
presente- Que lindo, Cissa!
-Gostaste do celular?
-Adorei... Quer dizer, gostei, porque adorar, eu só adoro Um.
Mas ele é muito lindo.
-Estavas mesmo precisando, aquele teu é bastante
ultrapassado. Inclusive, ele vem com uma surpresa: o primeiro contato é o
número da tua noiva.
-Tu pensaste em tudo mesmo, hein? Mas até que eu gostava
daquele meu, mesmo sendo ele mais simples.
-Simples? Querido, aquele teu telefone móvel parecia mais um
tijolo dos anos noventa! Daquele lá, só se salva o chip! Desapegues!
-Senta-te aí, eu vou reservar a mesa para tu usares durante o
show da noite- Valente beija o rosto
da noiva e fala com Alessandra- Tens como reservar aquela mesa para a minha
noiva? Podes deixar, que eu pago.
-Tudo bem, Valente. A mesa está reservada para a Cissa.
-Obrigado, Alessandra- o saxofonista começa a apresentação,
tocando algumas canções do nordeste brasileiro, de um repertório escolhido a
dedo por Hélio, profundo admirador desta cultura. Dora entra no restaurante à
procura de seu cunhado.
-Boa noite, Senhora Isadora.
-Alessandra, onde está o Hélio? Passei o dia inteiro a ligar
e ele não me atende de maneira nenhuma!
-Que estranho, o Hélio não é disto... Talvez ele tenha
esquecido o celular no seu escritório.
-Como assim? Ele não está no restaurante?
-Passou aqui de manhã, mas saiu para tratar com os fornecedores
e não deu um prazo para voltar. Inclusive, estranho ele ainda não ter voltado.
Até a apresentação de saxofone já começou.
-Preciso que tu me faças um favor, Alessandra. Assim que o
Hélio chegar, tu vais dizer para ele ir à clínica do Dr. Jaime Lopes. Ele sabe
onde fica.
-O que aconteceu?
-Meu marido está internado lá por conta de um grave problema
e eu preciso que ele vá até lá. É caso de vida ou morte.
-Está bem, senhora. Avisarei ao Hélio quando ele voltar ao
restaurante.
-Obrigada. Até mais ver.
Ao sair do restaurante, Dora vai até o ponto de taxistas e
paga por uma corrida.
-Para que lugar, senhora?
-Para a clínica... Não, eu tive outra ideia... Vamos até o
Edifício Portuário.
Tato está sozinho, acompanhando a programação televisiva, até
que ouve a campainha do apartamento alugado pelo saxofonista.
-Que estranho... Será que o Valente esqueceu-se de algo ou é
a noiva que veio procurá-lo?- abre a porta, ficando surpreso com a presença de
Dora, que entra rapidamente.
-Preciso falar contigo, Otávio.
-Mãe, o que estás a fazer aqui?
-Tato, eu não sei nem como começar...
-Aconteceu alguma coisa com a senhora?
-Filho, tu vais ter que salvar a vida do teu pai.
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