03/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 22


-A que estás referindo-se?
-Kleber foi ao hospital por conta de uma insuficiência renal e o Dr. Lopes disse que ele precisa de um transplante o quanto antes.
-Nossa... É tão grave assim?
-Infelizmente, sim.
-Mas por que a senhora não procurou o Tio Hélio? Ou por que não fez os exames para saber se era compatível com ele? Doação de rim não precisa ser feita por nenhum familiar...
-Já os fiz, e descobri não ser compatível com teu pai. Além disso, eu não consegui entrar em contato com o Hélio o dia inteiro. Ele nem sabe o que está acontecendo.
-Mas eu já entendi. Como ele não foi encontrado, a senhora veio até aqui. Só não entendo como soube que estava eu aqui...
-Soube desde que o teu tio entrou em contato com o Kleber para que ele fosse buscar-te, Otávio.
-E ainda assim a senhora não veio ver-me.
-Aonde tu queres chegar com esta entrelinha?
-Chegamos, Mãe. Ao ponto que não queres admitir: que amas mais ao meu pai do que a mim.
-Não digas tolices.
-Por que, em todos estes dias, a senhora não se manifestou, não me procurou, não deu um sinal de que estava preocupada comigo?
-Eu estava todo este tempo tentando convencer o Kleber a te aceitar de volta, a devolver tudo que é teu por direito!
-Queres que eu diga o porquê? Porque o bem-estar da nossa família só te é interessante quando se trata dele, não de mim. Quando eu fui embora, eu acreditei que a minha ausência te causaria sofrimento, mas não foi isto que eu vi. O Tio Hélio quis levar-me para a casa dele, o teu marido quis tirar-me deste lugar... E o que a senhora fez este tempo todo? Foste omissa! Porque era preferível indispor-se comigo do que com ele.
-Do que me acusas? De favorecer o teu pai? De preferi-lo a ti? É preciso eu lembrar quem foi que errou entre nós dois, e quem causou a discórdia em nossa família?
-Não, Mãe. Não precisas dar-se a tanto trabalho. Foi um grande erro mesmo ter escondido as minhas preferências sexuais para poupar-vos do vexame. Realmente, eu me arrependo todo santo dia. Mas eu não amo mais quem me faz sofrer aos meus pais. É isto que não consegues entender. Que, para amar um, não é necessário excluir o outro, ainda mais quando o outro é o próprio filho.
-Depois conversamos com mais calma, agora eu preciso que tu...
-Que eu o quê? Que eu teste a minha compatibilidade e doe um rim ao Kleber caso eu esteja apto?
-Ao Kleber, não! Ao teu pai!
-O meu pai é uma lembrança muito querida que eu faço questão de recordar. Mas ele não quis mais assumir este papel. Se a senhora não se incomoda em ser tratada feito nada, eu me incomodo e muito.
-Otávio, podes estar negando a oportunidade de sobrevivência do teu pai!
-E do teu marido também. Chega a ser doentia a forma como tu o vês. Mostras o quanto sofres com o autoritarismo dele, mas não tens o menor ímpeto para abrir a boca em defesa própria. Eu fui descartado da vida do meu pai. Por que eu não posso fazer exatamente a mesma cousa?
-Tato, eu insisto que tu...
-Pares. Pares de insistir. A minha decisão já está tomada. Eu não vou à clínica do Dr. Lopes, se é isto que esperas que eu faça.
-Não, Otávio. Eu realmente não sei o que esperar de ti- vai até a porta- Mas, caso o teu pai morra, eu espero que não fiques imaginando o que teria sido da vida do Kleber caso tu fosses compatível.
-Com relação ao teu amor: é compatível com o meu ou com o dele?
-Foi um erro imenso ter vindo aqui. Tomara que não se arrependas, meu filho.
-Tomara mesmo. Tomara que não se arrependas do dia em que disseste “sim” no altar para o meu pai.
A mágoa de Tato faz com que Dora vá embora, desolada. Mais desesperada pelo marido do que pela reação do filho, a bem da verdade. Aquela madrugada parecia interminável para a dona de casa, que olhava o seu marido murmurando de fortes dores, sem nada dizer. Apenas no dia seguinte, bem cedo, é que o paradeiro de Hélio é descoberto. Alessandra fica responsável pela abertura do Recifeeling naquela terça-feira, e pouco depois assumir o cargo de recepcionista, vê o patrão chegar num táxi.
-Pelo amor de Deus, o que foi que houve contigo? Onde está o teu carro?
-Perda total. O carro teve um problema no motor e eu fiquei no meio da estrada, tentando fazê-lo funcionar. Fui obrigado a chamar o reboque... Que noite interminável!
-Não ouviste os recados que deixei na tua secretária eletrônica?
-Cheguei morto de cansado à minha casa, Alessandra. A única cousa que fiz foi cair na cama. Por que não ligaste para o meu celular?
-Porque esqueceste no teu escritório. Só isto explica o fato de tua cunhada não conseguir falar contigo o dia inteiro.
-Dora? Aconteceu alguma cousa com ela?
-Não, com o teu irmão. Ele está hospitalizado.
-Mas por quê?
-Disse que era caso de vida ou morte. Estava muito nervosa.
-Onde ele está?
-Numa clínica de um médico chamado... Como é que era o nome dele... Ah, Jaime Lopes. Disse ela que tu sabias onde se localizava.
-Sim, é a do convênio da nossa família. Se precisarem de mim, digam que eu estou na clínica acompanhando o Kleber. Vou lá dentro pegar o meu celular e saio logo em seguida.
-Eu vou chamar um táxi para ti.
-Obrigado, Alessandra.
Valente, após uma noite cheia de trabalho no restaurante, deu a si próprio o direito de acordar mais tarde, já que não havia nada para fazer. Aproveitaria para passar no Lar do Menino Tobias para visitar os órfãos e, é claro, trocar confidências com Joana. Ao chegar à sala, ainda sonolento, encontra um bilhete feito por Tato sobre o sofá. Abre-o.
-“Não fiques preocupado comigo. Tive que resolver um problema, e acho que somente eu posso resolvê-lo. Mas eu estou bem. Só peço-te que não deixes de orar por mim. Um abraço. Tato”.
-O que terá o Tato a fazer? Não sei, mas assim que eu voltar do orfanato, vou ligar para o Hélio e deixá-lo de sobreaviso. Tomara que ele esteja bem mesmo.
Kleber continua a se sentir desconfortável com as dores, mas em menor quantidade. Ao despertar, fala com a esposa, que tem alguns minutos de sono após uma noite que parecia interminável.
-Dora...
-Está tudo bem, meu querido. Eu estou aqui contigo.
-Tu já sabes de toda a verdade, não é?
-Por que tu não me contaste?
-Queria ouvir outra opinião. Não aceitei este... – passa a falar com dificuldade- Diagnóstico que... O médico deu.
-Kleber, nós estamos correndo contra o tempo.
-Não acredito que eu... Que eu sobreviva...
-Jamais volte a dizer isto! Vamos conseguir salvar-te, prometo.
-Onde está o Hélio? Não chamaste meu irmão?
-Eu não consegui encontrar o Hélio. Mas eu avisei à moça que trabalha no restaurante e pedi para que ele viesse.
-O Otávio...
-Que tem ele, meu amor?
-Ele sabe que eu estou aqui?
-Não- mente, com pesar- Só procurei mesmo o Hélio. Fiz os testes e não houve compatibilidade entre nós. Por isto, procurei o teu irmão.
-Prometas uma coisa a mim, Dora.
-Tudo, tudo o que tu quiseres, Kleber.
-Não contes nada ao Otávio. Se eu tiver que morrer...
-Tu não vais morrer, pares de dizer esta bobagem!
-Dora, escuta-me... Eu não quero... Aquele rapaz... Vangloriando-se... Da minha derrota... Prometas que não... Que não vais contatar o Otávio...
-Trago-vos boas notícias- Lopes entra no quarto em que Kleber está acamado, radiante.
-O que houve, Doutor?
-Não podemos perder mais tempo, Dora. Agora mesmo o teu marido fará o transplante de rim.
-Mas como isto é possível? Ainda ontem, tinhas dito que não havia órgãos para doação.
-Não havia até esta manhã, Dora. Eu já preparei o centro cirúrgico e vamos levar o Kleber para a mesa de operação o quanto antes. Os enfermeiros já estão chegando para levá-lo sobre a maca.
-Mas o meu marido já estava inscrito na lista de receptores de órgãos ou alguém resolveu doar para ele?
Os enfermeiros chegam para levar o irmão de Hélio ao centro cirúrgico.
-Conversaremos sobre isto depois. A cirurgia pode durar entre quatro e seis horas, não sabemos ao certo.
-Por favor, Lopes, não me deixes sem notícias.
-Tudo bem, Dora, mas o nefrologista já está esperando pelo teu marido.
-Tu vais ficar bem, meu querido. Logo, logo sairemos daqui.
-Foi o Hélio. Deve ter sido ele...
Kleber é carregado por meio da maca e Lopes e Dora seguem até a porta do centro cirúrgico. Esta, por sua vez, é impedida de entrar pelo médico.
-Agora é conosco, Dora.
-Faças o que for preciso, Lopes, mas não permita a morte do meu marido.
-Farei o possível. Mas terás que esperar aqui fora- o médico acompanha a cirurgia.
Valente, sem saber dos tempos tempestuosos vividos pela família de seu chefe, visita as crianças do orfanato Lar do Menino Tobias e aproveita para conversar com Joana, que o recebe com grande afeição. Os dois conversam sobre um banco branco, posto no pátio do local, com grades verdes que permitem ver a movimentada avenida lisboeta, na qual está inserido o imóvel.
-E então, meu querido? Como andam as coisas? Turbulentas como naquela ocasião?
-Até que não tanto. Nos últimos dias, tudo tem estado um pouco mais calmo. O Tato não se reconciliou com a sua família, mas ao menos eles permitiram que uma trégua fosse dada. Às vezes, penso ter agido da maneira incorreta.
-O que te leva a esta impressão?
-Tato é mais intempestivo, não possui freios na hora de dizer o que pensa. É o meu oposto, entendes? Sempre fui mais calado, guardava as cousas que pensava para mim mesmo...
-Sinceridade não é sempre uma cousa boa, meu filho?
-É. Mas sinto pelo preço que está ele pagando agora, tendo que ficar longe da família. Penso que, ao dar abrigo para ele, estou contribuindo para esta crise familiar. E a senhora sabe o quanto eu prezo pela comunhão entre parentes.
-O que o Tato está recebendo de ti, Valente, é o mesmo que querias tu receber se estivesses passando pelo mesmo, embora saibamos que um dilema deste tipo não seria vivenciado por ti jamais.
-Pois bem, não é o que parece.
-A que te referes?
-Tenho percebido comentários, olhares, risos camuflados... As pessoas não entendem que eu me vejo na obrigação de ajudar o Tato por acreditar que é o certo, sem esperar nada em troca. Pensam que eu tenho um interesse oculto.
-Qual seria, Valente?
-Ele é sobrinho do meu patrão. Talvez eu esteja querendo a amizade dele para arrancar algum tipo de proveito. Ou...
-Continues.
-Dois homens adultos, numa mesma casa, e com diferentes opções sexuais... Dá para se ter uma ideia do que andam falando sobre mim.
-Querido, a opinião que deve importar é a das pessoas que verdadeiramente têm amor por ti.
-As que garantem amar-me tecem críticas, ou mesmo lançam olhares de reprovação pela minha atitude de ajudar alguém como o Tato.
-Falas de alguém em específico?
-Sim. A Cissa.
-E o que pensas em fazer a respeito?
-Não sei. Mas o Tato não é exatamente o cerne do problema.
-Tem como explicares melhor?
-Às vezes, Madre, eu sinto que... A Cissa não me ama como alega.
-Como não? É nítido o afeto que ela nutre por ti, meu anjo.
-Só que é como se eu não fosse o homem que ela quer que eu seja.
-Que homem ela quer?
-Só Deus sabe, mas parece que eu não me encaixo nos padrões que ela estabelece.
-Deve ser impressão tua. Se a Cissa não gostasse de ti verdadeiramente, por que conduziria o relacionamento sério contigo durante quatro anos?
-Esta é a pergunta que me faço todos os dias, porque ainda que eu faça esforço, nada me tira da cabeça de que eu não sou o que a Clarissa deseja. Queres um exemplo do que digo? Olhes só o que ela deu-me de presente ontem- retira o celular do bolso, sem receio de estar sendo observado.
-É lindo, Valente. Mas qual é o problema?
-Ontem, ela estava amorosa comigo, como no começo do nosso namoro. Mas ultimamente não tem sido assim. Percebi que ela quer apressar o nosso casamento. Talvez ela tenha criado a impressão de que, depois do nosso matrimônio, eu possa vir a ser o que ela quer.
-Valente, nada do que tens dito até agora faz o menor sentido que seja. O amor muda as pessoas para melhor. Qual é a mudança que tanto a Clarissa pode querer que tu realizes em si mesmo?
-Definitivamente, eu não sei. Mas tenho medo de que seja como no dia em que a conheci, quando ela falou-me que...
-O quê?
-Não, esqueças. Não vale a pena lembrar. Madre, eu vou-me agora.
-Tão cedo?
-É que preciso ensaiar em casa algumas músicas para tocar na Comportas hoje à noite, e preciso apurar algumas informações- ou seja, avisar ao Hélio sobre o sumiço de Tato- Dá-me a tua benção.
-Que tu sejas abençoado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo- beija a mão do músico- Fiques em paz, querido.
-A senhora também, Madre.
O saxofonista ouve passos apressados atrás de si, mas ao virar para trás, não vê mais ninguém. O maltrapilho menor de idade que o seguia desvia correndo para a direita, procurando um atalho, por imaginar que o músico, a quem observava desde a sua visita ao Lar do Menino Tobias, seguiria em linha reta. Rapidamente, surpreende o noivo de Cissa ao pôr a mão esquerda sobre o seu pescoço, puxando-o bruscamente para trás, e na mão direita, há um canivete, posto sobre o abdômen de Valente.
-O que tu tens, agora!
-O que é isto?
-Quieto, gajo! Entregues tudo, rápido- o bandido vira o saxofonista e põe a mão no bolso em que está o celular que Cissa o presenteou, causando a revolta no músico, que estimava o mimo dado pela noiva.
-Devolvas meu celular!- Valente chega a segurar uma das mãos do meliante e pensa em travar uma luta corporal para recuperar o aparelho, mas acaba sendo ferido na barriga, caindo com o celular ao chão. O bandido apanha o telefone móvel e foge às pressas.

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