Comovido com o talento do rapaz, Fabiano não espera sequer
que Valente termine de interpretar a canção e trata de colocar três moedas em
um boné que o saxofonista colocou ao seu lado. Muitos dos que estão naquela praça
lisboeta também desconhecem a beleza dos versos de “Nos amou”, que o jovem
interpreta naquela ocasião. O fato é que ninguém foi capaz de perceber a
aflição que atinge o músico, que tenta imaginar para onde vai, se o público
gostará a ponto de lhe ajudar... Um turbilhão de dúvidas que se amontoam a cada
segundo, ainda que ele não deixe transparecer qualquer tipo de preocupação.
Valente fica o tempo todo de olhos fechados, por medo de encarar
o público, e também não pode contemplar aquele pastor que se aproxima. Ao fim
daqueles sete minutos, assustou-se com todas aquelas pessoas ao seu redor,
batendo palmas. Fabiano chega ainda mais perto, apertando sua mão um tanto
trêmula.
-A paz do Senhor, meu filho.
-Amém, irmão. Que Deus te abençoe.
Fabiano se despede e vai até o seu carro, quando uma transeunte
que havia parado para acompanhar a apresentação clama para Valente:
-Interpretes mais uma, por favor.
-Claro- responde o saxofonista, com leve timidez- O que queres
tu que eu toque?
-Pode ser qualquer canção.
-Ainda bem- pensa Valente, por não conhecer muitos gêneros
musicais, executando outra canção de cunho cristão: “És p’ra mim”.
A garota em questão é Olívia, a irmã mais velha de Beatriz,
que por sua vez é a amiga que acompanha uma inconsolável Clarissa, inconformada
pelo término de seu namoro. Ao menos, Olívia sabe como manter seus pés firmes
no chão e numa fé em Deus que Valente também conhece muito bem. E seu boné foi
ficando cheio, ao passo que o repertório de canções católicas do qual se lembra
é transmitido ao público por meio do doce som do saxofone.
Depois de ouvir a segunda canção, Olívia faz questão de
ajudar o desamparado e volta para casa, após um dia de muito estudo na
faculdade de Medicina. Ao chegar, encontra Beatriz e Cissa, esta em um estado
deplorável devido à ingestão alcoólica excessiva.
-Nossa... O que foi que houve contigo?
-Será que tu não imaginas, querida irmã?
-Já sei: o Ricardo certamente terminou tudo contigo mais uma
vez, não é isto?
-Parece que eu sou a única idiota que não percebeu que este
namoro só existia na minha cabeça.
-Olha, Cissa, eu sei que nessas horas não é muito
recomendável dizer este tipo de cousa, mas...
-Eu avisei-te!
-Beatriz!- Olívia fica espantada com a franqueza da irmã.
-Avisamos inúmeras vezes, Olívia. O Ricardo deixou bem claro,
desde o início do namoro, que não era boa cousa. Só que esta daí resolveu levar
adiante.
-Mas eu achei que, com o tempo, conseguiria mudar a forma
como ele age.
-Este é o teu mal, Cissa- opina Olívia- Tu acreditas que és
capaz de mudar alguém. O problema reside justamente neste ponto, amiga: ninguém
muda por amor, ele é quem transforma. Se não houve mudança, não houve amor.
-Tu sabes que eu não ligo muito pra este sentimentalismo que
tu e a minha irmã entendeis como ninguém, mas hei de concordar com ela.
-Eu vou passar um café para nós três. Aliás, tu poderias
dormir aqui, já que não tens condições de voltar para casa.
-Veio dirigindo até aqui, acreditas?
-Realmente é sério. Bom, eu vou ligar pro teu irmão, para que
ele não fique preocupado.
-A última coisa que o Michel está neste momento é preocupado,
ainda mais comigo.
-O gajo viajou de novo, acreditas?
-Mentira, Beatriz... De novo?
-Aquele ali não vai parar quieto nunca.
-Fiques com ela, enquanto eu apronto o nosso café. Já venho.
-Tudo bem, Clarissa. Levantes desse sofá agora mesmo.
-O que é, Beatriz?
-Agora chega. Chega! Eu não vou deixar que tu fiques a sofrer
por um desgraçado que está cansado de pisar naquilo que tu sentes por ele.
-Só quem sabe da minha dor sou eu, Beatriz! Tu não podes impedir-me
de sofrer por isto.
-Escuta-me, Cissa! O que tu viveste com aquele cara foi mera
ilusão. Precisas parar de sofrer, ou não vês que isto está acabando contigo aos
poucos?
-Para tu, é muito fácil falar. Não estás na minha pele!
-Comeces de uma vez por todas uma nova história. Não dizem que
um amor se cura com outro amor?
-Pensas mesmo que eu estou à procura de outro homem
justamente agora? Por favor, Beatriz. De decepções eu já estou mais do que
saturada!
-Até que eu não sofri tanto com os términos dos meus namoros.
Cissa, chega uma hora em que nós cansamos de ser tratadas como lixo, mas
acredite que isso passa. E vai passar.
-Nem tu, nem ninguém é capaz de me dizer quando esta tua
suposição realmente vai se concretizar.
-Pois eu sei muito bem: no dia em que tu encontrares um homem
e o fizeres sofrer.
-Esta sua teoria é a coisa mais estapafúrdia que eu já ouvi.
-Quando tu conheceres alguém que realmente esteja apaixonado
por ti e não por si mesmo, saberás o que é ter a vida de um homem nas mãos. Daí
em diante, manipularás ao teu bel-prazer.
-Quem passar pela minha vida não vai pagar pelos erros que o
Ricardo cometeu comigo.
-Então, vinga-te do Ricardo. Não foi ele o responsável pelo teu
sofrimento? Trates de ser feliz aos olhos dele. Certamente, não existe resposta
à altura. Mas, de todo modo, dês um jeito de não demonstrar a tua infelicidade
perante este canalha. Tomes uma atitude o quanto antes, porque enquanto tu
estás cá às lágrimas, ele tripudia do teu sofrimento sobre uma cama, com outra
mulher.
Ao fim daquele dia que parece não ter fim, a família de Kleber
chega ao destino inesperado das suas férias: Bahamas. O patriarca dos Goulart
vai à recepção e solicita que um camareiro leve a bagagem de Tato e de Dora
para os quartos. Ele e sua esposa aparentam estar cansados, e se surpreendem
quando o filho demonstra estar animado para conhecer as belezas do hotel
imediatamente.
-Não vais entrar no teu quarto, filho?
-Agora, Mãe? Este lugar é lindo. Queria muito conhecê-lo
agora mesmo. Queria, não: quero.
-Mais tarde nós vamos jantar e podemos passear um pouco. Por
que tu não esperas até a noite, Otávio? Depois, não vais dizer que queres
descansar, não é?
-Neste paraíso? Vou agora e posso garantir que mais tarde irei
com vocês dois.
-Tu és quem sabe, filho. Mas eu vou ficar no quarto com tua
mãe e dormiremos um pouco.
-Prometo que não demoro. Obrigado pelo presente, Pai- Tato
beija a mão de Kleber e desce pelo elevador.
Saindo novamente, encontra uma tarde ensolarada e diversas
pessoas conversando no saguão do hotel. O irmão de Cissa, o mais que
inconstante Michel, dirige-se à recepção, onde tenta dialogar com um rapaz no
balcão.
-Good afternoon... É, é... “An” bedroom…
-A bedroom?- o
rapaz o corrige.
-Isto mesmo- a expressão de alívio de Michel atrai a atenção
de Tato.
-Name?
-Michel Marques Barboza.
-Parece que temos outro português por aqui... – Tato se
aproxima.
-Verdade... De onde tu és?
-Lisboa.
-Sabes que eu também? Prazer, meu nome é...
-Michel Marques Barboza. Desculpe, foi inevitável de ouvir.
Percebi uma certa falta de...
-Traquejo.
-Pois é, gajo.
-De fato, eu não domino o idioma inglês. Mas confesso que me
esforço bastante. Se bem que é mais interessante, ao menos pra mim, conhecer os
lugares, não criar raízes, ter inúmeras histórias pra contar... E por que não
dizer... Ter paixões para colecionar?
-Isto nem sempre dá certo.
-Como tu sabes?
-Uma pessoa que coleciona paixões mundo afora não pode fazer
outra pessoa feliz senão ela mesma.
-Talvez o intento seja justamente este.
-Sei bem, mas não é justo. Se tu consegues construir a
felicidade sobre a ruína das pessoas que te deram amor, o máximo que farás é
exercer uma veia psicopata.
-Não é para tanto, meu caro. Eu já me apresentei... E tu? Não
vais dizer o teu nome?
-Claro que eu vou falar... Para quem realmente merece ouvir. Com
licença.
-Two-four-seven.
-Como disseste?
-Your bedroom: two-four-seven.
-Ah…
Interessado em ouvir as verdades que Tato tem para falar-
mais em quem fala do que o que for dito por ele- Michel procura informações a
respeito do garoto com o recepcionista. Quem também está à procura de
informações, longe dali, é Valente. É a quarta pousada que ele entra naquela
noite, procurando um lugar para dormir.
-Não é possível.
-Desculpa, mas com o que tu tens, não dá pra ficar nem uma
noite aqui- constata a idosa, que é proprietária da pousada.
-Sabes onde tem alguma pensão ou pousada com um preço mais em
conta? Pelo amor de Deus, já é a quarta vez que eu entro numa dessas!
-Querido, é o preço do mercado, não adianta discutir. Mais
barato do que isso, só se tu passares a noite num motel.
-Oi?
-Aliás, tem um aqui na rua, o Lisboa Noite.
-Tu acreditas realmente que eu passarei a noite num motel?
-Quer ir acompanhado?
-A questão não é essa, minha senhora. Mas ir a um lugar
desses? Prefiro dormir na rua!
-Em certos momentos, a integridade moral mais atrapalha do
que ajuda.
-Que queres dizer?
-Gajo, dormirias na rua munido de um saxofone, de uma mala
com teus pertences pessoais e um boné que contém o acumulado de tuas
apresentações ao relento? De onde tu achas que vieste? De inseminação
artificial?
Valente fica pensativo.
-Lisboa Noite é o nome do... Do... Do estabelecimento lá, não
é?
-Motel! Logo aqui do lado. É bem mais em conta para as suas
posses no momento. Confies.
-Obrigado, então- agradece, constrangido, e vai até o local-
Boa noite.
-Boa noite- responde Paula, a recepcionista.
-Eu vou... Vou...
-Querer um quarto?
-Isto, eu quero um quarto.
-Certo. Documentos de identificação, por favor.
O saxofonista entrega o seu cartão de cidadão.
-Ainda tem quarto vago?
-Sim, temos dois. Deixa-me anotar aqui: Valente Valença...
Parece até nome de artista- olha para a bagagem e o saxofone carregados pelo
jovem- E pelo visto, é mesmo.
-Imagines...
-O quarto é para quantas pessoas?
-Como assim? Normalmente num motel só vão duas pessoas para
um quarto, não?
-É que nós temos regras rígidas aqui. Temos que saber quantos
se instalarão para, então, verificar quais são os espaços disponíveis. O mínimo
de ocupantes é dois e o máximo é vinte.
-Vinte????
-Sabes como é.
-Não sei, não.
-São as peculiaridades da intimidade humana. Ponho-te no
quarto de dois ou no aposento de vinte?
-Moça, é que eu vim só. E para passar uma noite.
-Sozinho num motel? Depois quando eu falo em peculiaridades,
as pessoas tomam-me por louca. Escuta-me, tu realmente tens dezoito anos?
Porque tens cara de quem sequer desmamou.
-Sim, completei hoje.
-Bela comemoração... Olha, o quarto pequeno disponível é o
duzentos e sete.
-Até que horas eu posso ficar?
-Até as sete e meia da manhã, quando serviremos o café. Custa
vinte a pernoite.
Valente começa a contar o dinheiro e entrega à recepcionista,
sem querer encarar-lhe diante da embaraçosa situação.
-Está aqui.
-Subas às escadas, é no terceiro piso- entrega-lhe o molho de
chaves.
-Obrigado. Tenhas uma boa noite.
-Igualmente... A propósito, tira-me uma dúvida: tens o sono
pesado?
-A Madre Joana diz que eu tenho sono de passarinho, com
qualquer barulho eu sou capaz de acordar.
-Neste caso, você precisará de uma ótima noite de sono.
Valente não entende a indireta, mas se dirige ao quarto.
Encosta o saxofone e a bagagem à porta do duzentos e sete e se deita numa cama king size
forrada por um lençol vermelho e algumas pétalas de rosas, mas não sem antes
sacudi-la. De tão exausto que está, não demora muito para que ele alcance o
sono...
Sono esse que dura cinco minutos, pois o casal do duzentos e
oito, indiscreto como só ele sabe ser, recomeça o ato de... “conhecimento
físico mútuo”, digamos assim. Tendo o saxofone como principal companheiro ao
longo daquele dia, Valente coloca todos os travesseiros da king size sobre as orelhas. Uma tarefa que, aos olhos do par
escandaloso e impactante, parece bastante inútil.
O dia amanheceu em Lisboa, bem menos nublado do que na
ocasião da maioridade do saxofonista, mas ainda era uma quente madrugada nas
Bahamas, onde Dora, Kleber e Tato têm se divertido com os ritmos latinos
executados no restaurante. Cansados, voltam à mesa, onde o patriarca pede a
conta.
-Acho que já está na hora de voltarmos para o quarto.
-Tem razão, meu amor. Vamos, Tato.
-Claro, Mãe.
-Quanto tempo, Otávio!- de surpresa, Michel aparece no
restaurante- Como é que tu estás?
-Vocês dois se conhecem?- a indagação de Kleber deixa o filho
sem saber o que responder.
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