26/05/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 4


-O que a senhora tenta insinuar a meu respeito?
-O que quero é que esclareças o que está acontecendo entre tu e aquele tal de Michel.
-Somos amigos, não há o que se estranhar nisto.
-Voltaram a se encontrar após aquela noite?
-Mas que tom inquisidor é este agora? Nunca te vi tão preocupada com as minhas amizades como desta forma.
-Às vezes, Otávio, é necessário que pais assumam esta postura. Não é minha intenção recriminar-te por qualquer coisa que seja. No entanto, eu não me sinto confortável de imaginar que tu estás a esconder-me alguma cousa.
-Está bem. Voltamos a nos ver algumas vezes no hotel, conversamos bastante e descobrimos que temos muito em comum, como todos os bons amigos. O que há demais nisso?
-Somente o fato de que parecem ter se conhecido há pouco, uma vez que tu nunca nos mencionaste a existência desse rapaz.
-E por algum acaso eu conheço todas as tuas amigas, ou as pessoas que se relacionam com o Papai? O fato de Michel estar hospedado no mesmo hotel que nós foi mera casualidade, não há motivos para celeumas.
-Otávio, quero que me escutes atentamente.
-Digas.
-Seja o que for, podes sentir-te à vontade comigo para falar sobre qualquer cousa. Eu não quero passar de novo pela sensação de que não posso te ajudar sem que tu reveles o que te aflige. Em suma: detesto imaginar que temos liberdade para tratar de qualquer tema e optas por retrair-se.
-Afinal de contas, por que razão pensas isto de mim?
-Perguntes a si mesmo, meu querido. Ninguém melhor para sanar as tuas dúvidas do que tu mesmo. O que vou pedir-te é muito simples, meu filho: não mintas para nós, e muito menos para ti.
A felicidade de Tato foi se dissipando aos poucos durante aquele café da manhã consideravelmente indigesto. Mesa farta era algo de que Cissa não poderia reclamar, mas o fato é que nada estava arrumado, uma vez que ela ainda dormia, após uma longa madrugada na qual curtia uma rave com Beatriz, a mesma que a desperta neste momento, por intermédio de uma ligação ao celular.
-Alô?
-Amiga, tu nem imaginas o que consegui para esta noite: dois convites para irmos ao aniversário de Fernando.
-Ligaste-me só pra dizer isto? E a esta hora?
-Não entendeste o espírito da cousa? Se tu quiseres mesmo fazer a fila andar, a melhor forma é colocar novas pessoas em seu círculo de amizades, que não precisa ser nada restrito. E mesmo sabendo que estás mais ébria do que sóbria, liguei para combinarmos de passar no shopping e comprarmos os looks da noite.
-Não sei, Beatriz... Deixa-me pensar.
-Tudo bem. Penses, para depois dizeres que sim. A comemoração começa às dez e quarenta e cinco. Espero-te lá. Beijos, amiga.
Assim que Beatriz desliga o telefone, Olívia chega à sala de estar, parando em frente ao espelho para arrumar o cabelo. Está prestes a ir à faculdade, mas observa:
-Outra festa? Vocês não cansam dessa rotina de casa/ festa, não?
-Creio eu que deve ser menos desgastante do que essa peregrinação de casa/ faculdade/ igreja a qual te submetes, querida.
-Quando você quer ser desagradável, consegue ser com louvor, hein? Deixa-me ir, que já estou atrasadíssima. Quer que eu passe um café?
-Daqui a pouco eu me reergo, Olívia. Minha preocupação no momento é a Cissa.
-Não será como num passe de mágica que ela vai seguir a vida dela sem o Ricardo.
-Mas terá que aprender. Mesmo com a minha ajuda, volta e meia ela toca no nome do cafajeste. A verdade é que precisa acontecer algo radical na vida da Clarissa para ela prosseguir.
-Nisso, eu estou plenamente de acordo contigo. Vou orar para que ela ponha a cabeça no lugar o quanto antes.
-Como se isto funcionasse, minha querida carola...
-Beatriz, podes me fazer um favor?
-O que é?
-Limpes o canto da tua boca, porque deixar o veneno escorrer também não pode ajudar muito. Bem, deixa-me ir, pois tenho aula daqui a quinze minutos. Até mais tarde... Se eu te vir por aqui, não é?
A virada esperada para a vida de Cissa aconteceria mais cedo do que supunham Olívia e Beatriz. Valente poderia não ser o responsável, mas é parte importante nessa guinada que seria à moça oferecida. Enquanto as vidas dos jovens não se cruzavam, o saxofonista apresentava uma nova canção aos transeuntes da praça onde tocava: “Quero mudar”. As pessoas já estavam começando a se acostumar com a presença do rapaz diariamente naquele lugar. Inclusive Fabiano, que dessa vez não passa no centro da cidade para comprar artigos para a igreja que comandava, e sim para um convite especial.
-O senhor?- Valente o reconheceu da ocasião em que Fabiano estava acompanhado de sua esposa.
-A paz do Senhor, amado.
-Amém.
-Eu não quero atrapalhar seu show...
-Imagines.
-Vim aqui unicamente para falar contigo.
-Se eu puder ajudar...
-A ajuda não é para mim, e sim para ti.
-Do que se trata?
-Acho que não fomos apresentados um ao outro. Meu nome é Fabiano, e eu sou pastor da Igreja Comportas do Céu. Queria te convidar para ir a um dos nossos cultos.
-Tem todos os dias?
-Menos nos sábados, pois é ensaio dos corais. Se tu quiseres dar uma passada, serás muito bem vindo.
-Desculpa-me, nem te disse o meu nome: Valente.
-Bem apropriado, varão valoroso.
-Por que o senhor chama-me assim?
-Depois daquele dia, não há como se referir a ti sem ser por esse termo. Mais do que eu ou a minha esposa, o Senhor se agradou de ti, e recompensará aquilo que tu fizestes pelos desabrigados.
-Não sei que noite eu posso ir. Ultimamente tenho dormido num lugar bem longe.
-Se quiseres, eu posso te pegar de carro, e depois te deixo na tua casa.
-Melhor ires por mim: não se atreveria a pisar onde eu fico. Mas não precisas ficar preocupado. Algumas pessoas que vivem aqui na praça falaram muito bem do senhor e do trabalho de sua igreja. Até perguntei onde é que ela fica, pois estava mesmo com vontade de fazer uma visita quando a minha vida se estabilizasse mais.
-Não pareces um menino de rua. Teu jeito de falar é tão cordato.
-Passei a trabalhar aqui há poucos dias. Mas isso é uma longa história, Pastor. Qualquer dia desses, eu conto. E mesmo que minha vida demore a entrar nos eixos, eu farei uma visita.
-Sendo assim... – cumprimenta o jovem com um aperto de mão- Fique na paz, amado.
-Que o menino Jesus te acompanhe.
-Amém- Fabiano volta para o carro e segue em direção a sua casa.
-“Varão valoroso”: se esta alcunha pega...
E espalhar-se-á. Principalmente quando as pessoas perceberem como Valente se comporta diante do seu melhor amigo e que, em sua concepção, deveria assumir o mesmo papel na vida de todos. A oportunidade para que todos se encantem com o saxofonista acontece ao anoitecer, uma vez que o convite feito por Fabiano é aceito e o músico, a despeito do quão tarde chegará ao Lisboa Noite para dormir, decide fazer uma visita à Igreja Comportas do Céu. Como não havia maneira de passar no estabelecimento para deixar o saxofone, uma vez que era muito longe dali, e o jovem sequer tomava um coletivo para não faltar o dinheiro de sua estadia e café da manhã, a solução foi sair da praça em que se apresentava e dirigir-se imediatamente ao templo religioso.
Não foi informado ao rapaz que, naquela noite, ocorreria a apresentação de um coral oriundo da cidade de Loures, intitulado como “Confiança Portuguesa”. Por motivos desconhecidos para Fabiano e Nete, as mulheres do coral demoravam para chegar à igreja. Não sabiam que uma chuva torrencial havia atingido a cidade logo quando partiram, sendo que saíram cedo do templo depois de um último ensaio para não chegarem atrasadas. Lisboa, de clima ameno, estava sequíssima. Mas não menos que a expressão de Nete, que demonstra acreditar que a principal apresentação do templo daquela noite está arruinada.
-Por onde andam aquelas benditas gajas? Acaso foram tragadas pelo Mar Vermelho?
-Acalma-te, Nete. Deve haver algum contratempo para que não tenham chegado ainda.
-Falando nisto, onde foste tu mais cedo sem mim?
-Sabes daquele gajo que nos ajudou no dia em que distribuímos a sopa para os desabrigados?
-Hum?
-Fui à praça onde ele toca para chamá-lo ao nosso culto especial... Quer dizer, ao nosso culto, pois todos são especiais.
-E ele aceitou?
-Disse-me que faria uma visita, mas não me confirmou se o dia será hoje.
-Provavelmente só te falou isto com o intuito de ser educado. Creio eu que deva ser algum incrédulo que, se descobrir o endereço daqui, moverá céus e terra para sequer pisar neste logradouro.
-Ednete!
-Mas não é verdade, meu amor?
-Graças a Deus, não é- afirma Fabiano ao ver Valente chegando e acompanhado do quase inseparável saxofone- A paz do Senhor, meu amado.
-A paz do Senhor, Pastor.
-Ih... Não respondeu com “amém”, já vi que não é boa pessoa... – pensa Nete, com o rosto mais expressivo do mundo.
-Sejas bem-vindo, querido. Podes entrar.
-Obrigado. Nossa, este lugar é lindo. Muito lindo mesmo.
-A igreja está bastante ornamentada hoje para o Congresso de Mulheres das Comportas do Céu- Nete explica ao visitante.
-Que maravilha. E quantas igrejas vocês têm?
-Pra falar a verdade, apenas essa. Mas temos fé que um dia nosso ministério expandirá.
-Não me digas que tu tocarás esta noite em nossa casa de adoração?
-Ah, não, senhora, é que... Não fui pra casa deixar meu sax lá, é muito longe para ainda vir até aqui.
-Lembra-te do que te falei; caso queiras uma carona, eu posso te levar após o término do congresso.
-Por favor, eu não quero atrapalhar. Já sei o caminho, dá para ir andando até lá. Obrigado mais uma vez.
-Fiques à vontade. Senta-te em qualquer um de nossos bancos.
-Obrigado, Pastora- Valente toma à beira de um dos últimos assentos do templo, encostando o instrumento musical ao objeto.
-Menos este!
-Nete!
-Desculpes, querido, é que havia reservado cinco para a igreja de Loures. Tentes ficar um pouco mais atrás. Se sobrar vaga, irei te remanejar para um assento melhor.
-Sem problemas, senhora- Valente se põe de pé novamente e senta mais uma vez, carregando o saxofone.
Fabiano e sua esposa notam que a tempestade agora está sobre Lisboa, e ficam à porta do templo para receber visitantes e fiéis. Valente fecha os olhos e começa a orar para que Joana fique bem, por entender o quanto ela deveria sofrer naquela ocasião sem saber notícias suas. Em meio à oração do músico jovem, o ônibus que traz as mulheres lourenses estaciona do outro lado da fachada da Comportas. Com dificuldade, a esposa do pastor reconhece-as ao vê-las com uma saia longa jeans e uma blusa rosa, sem qualquer tipo de inscrição.
-A rua está praticamente alagada, Fabiano. Como elas descerão do coletivo?
-Já sei, Nete: corras até o depósito e pegues aquele guarda-chuva grande para ir buscá-las no ônibus.
-Certo.
Desanimada, Cissa recorreu ao visual básico para ir à festa do tal Fernando, mencionado pela animada Beatriz. Só que o carro quebra misteriosamente atrás do ônibus.
-Não, isso não está a acontecer. Mas justamente agora?- a moça liga para a companheira de festas- Beatriz?
-Cissa? O que foi? Não estás vindo para cá?
-O meu carro quebrou-se. E eu estou sem dinheiro para tomar um táxi.
-Cissa? Não consigo escutar-te! Onde tu estás?
-Beatriz, ouça-me… Alô?
-Alô, Cissa!- a ligação é interrompida- Deve ser o sinal- Beatriz retorna o telefonema de sua amiga, mas não obtém sucesso- Agora diz que está na caixa postal.
-Esqueci-me de trazer um guarda-chuva, não vim com dinheiro, a conexão está horrível... Pelo visto, tratarei eu mesma de consertar o carro.
Assim que Cissa desce, fecha a porta do automóvel, enquanto é aberta a porta do ônibus das protestantes lourenses. Dotada de extrema agilidade e cuidado, Nete corre com o guarda-chuva e busca de três em três mulheres para que entrem na igreja sem serem molhadas. Ao fazer isso oito vezes, o motorista do coletivo fecha a porta, até que Cissa é surpreendida por uma pergunta.
-Como pude esquecer-me de ti, irmã?
Rapidamente, Cissa é bruscamente puxada para o interior do guarda-chuva aberto e posta dentro da Comportas. O motivo é o comportado visual adotado, praticamente idêntico ao das mulheres que cantariam naquela ocasião.
-Mas o que é isto, minha senhora?
-Já não há mais lugares para as lourenses. Vais ter de ficar aqui mesmo. Senta-te aqui- Nete põe a jovem junto ao saxofonista, que abre os olhos e fica extasiado com a beleza de Cissa. Por sua vez, ela não desvia o seu olhar da direção de Valente.

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