14/11/2019

CONFISSÕES PROLIXAS DE UM EXÍGUO MESOCLÍTICO/ BLOCO DE CENAS 4


Chega o dia do julgamento de Alan. Erasmo está em frente ao fórum, fazendo um telefonema.
ERASMO: Tudo certo para a transferência? OK. Eu vou me atrasar um pouco, mas fiquem alerta. Chego daqui a alguns minutos, só preciso que o julgamento comece. Até logo.
ALAN: Poderiam ter escolhido um fórum melhor pra realizar esse julgamento, não? Não basta o clima de tensão, ainda tenho que ficar no meio da poeira, como se fizesse parte do elenco de “Onde nascem os fortes”?
FLÁVIO: Você sabe que eu pedi pro advogado outro fórum, mas a vara em que corre o seu processo exigiu que fosse aqui. Mesmo com o fórum em reforma.
GUARDA: A meritíssima já está no recinto. Todos podem entrar.
ALAN: Cadê o advogado?
FLÁVIO: Vou mandar uma mensagem pra ele. Deve estar preso no trânsito.
ALAN: É tudo o que me falta.
GUARDA: Eu mandei entrar!
FLÁVIO: Tá, a gente já vai!
GUARDA: Apresentando a juíza Roberta Palmeira.
ROBERTA: Sentem-se todos. Vamos iniciar o julgamento do réu Alan Godoy, indiciado inicialmente por executar o desaparecimento do estudante desocupado Igor Zimmermann...
ALAN: Calma aí! Se é estudante, não é desocupado!
ROBERTA: Mais uma interrupção sua e meu martelo vai voar na sua cara. Como dizia, acusado posteriormente de tentativa de homicídio contra o mesmo elemento que sumiu.
ALAN: (sussurra para Flávio) Vê se acha logo o advogado, que eu sinto que sairei daqui num camburão em vez do meu Camaro amarelo.
FLÁVIO: Vou ver se ele chegou.
ROBERTA: Convoco o réu a sentar-se ao meu lado para ser submetido às perguntas da advogada de acusação, Laís Lobo.
LAÍS: Levante a sua mão direita. Jura dizer a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade?
ALAN: Eu juro. Aliás, assim procedo desde o início dessa película erótica.
LAÍS: Erótica?
ALAN: Sim. Não há nada mais sádico do que esse julgamento sem testemunha e esse filme sem lógica.
LAÍS: Sr. Godoy, uma vez que o senhor se comprometeu a falar a verdade, diga: o que acha do cabelo da senhora juíza?
ALAN: Bom, com o respeito devido, ela usou tanto laquê que o uso passivo está quase me fazendo desmaiar.
ROBERTA: Srta. Lobo, qual o propósito de questionar o réu sobre meu cabelo?
LAÍS: É que ele está mais armado do que os policiais que farão a escolta do Sr. Godoy caso ele seja condenado.
ALAN: Protesto, Meritíssima! A advogada de acusação tenta criar uma celeuma entre nós a fim de que a senhora condene a mim.
ROBERTA: Você não é advogado e sequer submeteu-se à prova da OAB. Protesto negado! Continue, Srta. Lobo.
LAÍS: Obrigada, Meritíssima. Sr. Godoy, o avanço da polícia brasileira permitiu que o senhor fosse avaliado por uma máquina da verdade. Se os senhores aqui presentes permitirem, eu gostaria de ler o resultado do questionário feito mediante o polígrafo.
ROBERTA: Os figurantes não vão se importar, mesmo porque não existem. Por favor, prossiga.
LAÍS: Sr. Godoy, o delegado responsável pelo caso, Erasmo Nogueira, numa série de oitenta e nove interrogatórios que lhe intimou a comparecer, perguntou se o senhor consegue manter sua sanidade mental depois de inúmeros acessos ao Sistema de Irritação Garantida, conhecido como Sig@. O senhor disse que sim... E para o polígrafo... O senhor mentiu. O delegado questionou se o senhor já entrou num coletivo da linha Barro/Macaxeira (Várzea) sem muitos usuários. O senhor disse que sim... E para o polígrafo... O senhor mentiu. O delegado quis saber se o senhor terminará sua graduação no prazo mínimo de quatro anos. O senhor disse que sim... E para o polígrafo... O senhor mentiu. O delegado perguntou se o réu sentia desejo sexual por mulheres que sabiam cantar “Cheia de manias”... O senhor disse que sim, e para o polígrafo...
ALAN: Protesto, Meritíssima!
ROBERTA: Protesto negado! Feche a boquinha!
ALAN: Onde esse advogado está?
LAÍS: Sem mais perguntas, Meritíssima... Por enquanto.
ROBERTA: O advogado de defesa tem a palavra e está com a oportunidade para interrogar o acusado.
FLÁVIO: (com um bigode falso) Obrigado.
ALAN: Flávio?
ERASMO: Que bigode mal colocado é esse?
FLÁVIO: Sr. Godoy, de que forma o senhor conheceu a suposta vítima?
ALAN: Bem... Foi numa calourada.
LAÍS: Protesto, Meritíssima! O réu tenta alegar que meu cliente não frequentava as aulas regularmente.
ALAN: E não frequentava, aquele preguiçoso.
ERASMO: Um vagabundo, desses de deixar a gente fulo da cara.
ROBERTA: Protesto negado. Há de se respeitar o argumento de que calourada é um point badaladíssimo. Continue, Doutor...
ALAN: Acho que obrigar-me-á a realizar um flashback da última vez que nos vimos...
ROBERTA: Contanto que eu não tenha de ouvir suas mesóclises em excesso...
ALAN: Nós, o Flávio e eu, estávamos no show do Leonardo Manjericão, realizado na Concha Acústica.
ROBERTA: E o tal de Flávio que, segundo consta no processo, é seu amigo e empresário, está aqui para confirmar isso?
ALAN: Meritíssima, ele deve ter ido ao banheiro, mas espero que ele volte logo... (passa a sussurrar para o falso advogado) O que você faz no lugar do advogado, Flávio?
FLÁVIO: O homem me ligou pra dizer que o carro dele tá boiando na Avenida Presidente Kennedy, não vai ter como ele chegar a tempo!
ALAN: Lascar-me-ei!
LAÍS: Protesto, Sra. Juíza! O advogado de defesa fala com o cliente através de uma linguagem cifrada para nos fazer de idiotas!
ROBERTA: Protesto negado! Não acredito que o sistema judiciário me faça falar essa frase tantas vezes...
FLÁVIO: O que aconteceu, de fato, durante a calourada?
ALAN: Flávio e eu bebíamos uma sangria enquanto Manjericão cantava a primeira música do show.
MANJERICÃO: “Você vai me matar ou, então, deixar louco/ Com esse corpo moço e esse jeito de me olhar/ De quem sabe tudo/ Que manja tudo/ Que entende tudo/ O que um homem quer”.
ALAN: Qual é a primeira cidade?
FLÁVIO: Paris. Mas antes vamos passar no Museu do Louvre. Não vou sair com o celular a tiracolo sem tirar uma foto lá.
MANJERICÃO: “Você só quer provar que com tão pouca idade/ Pode fazer de um homem tudo o que você quer/ E eu, gamado/ Tão preso no seu laço/ Sou um palhaço/ De você, moça mulher”.
ALAN: Olha quem tá chegando.
(fundo musical: “Renato Mendes”)
FLÁVIO: Finge que não tá vendo ninguém.
ALAN: Isso é fácil. Difícil vai ser pra ele, que parece ter tomado uma adega inteira de vinho Carreteiro.
IGOR: (alcoolizado) Mas vejam só quem eu encontro: o artista marginal da universidade. O que se acha tão importante que vai para Paris... Pariscida do Norte.
FLÁVIO: Vambora, Alan. Deixa esse cara aí...
ALAN: Nem pensar. Se ele está vindo é porque quer falar alguma coisa.
FLÁVIO: Nada se aproveita desse cara, Alan...
ALAN: Mas já diz o velho ditado: “quando a bebida entra, a verdade sai”. Fala, Igor.
IGOR: Eu vim aqui pra tirar satisfação contigo.
ALAN: Te devo o quê?
IGOR: A vergonha que você quis me fazer passar durante a apresentação.
ALAN: Falei alguma mentira?
FLÁVIO: Ignora esse cara, Alan...
IGOR: Eu, no seu lugar, não daria ouvidos ao seu mentor espiritual e puxa-saco oficial. Tô afim de bater boca mesmo!
ALAN: Então, bata, espanque, golpeie sua boca em outro lugar, porque meu tempo eu não perco com você!
IGOR: Tá se achando, né? Na crista da onda, com não sei quantos sucessos no Spotify, milhões de acessos no YouTube...
ALAN: E ótimo aluno, por sinal, ainda que você não queira.
IGOR: Cretino...
ALAN: Você pensa o quê, hein? Que sua raiva é por entender que eu sou melhor que você? Se você achou isso, pensou certo!
MANJERICÃO: “Mas eu já tenho a idade do lobo”...
IGOR: Eu ia falar com o professor pra orientar meu TCC e você passou na minha frente!
MANJERICÃO: “E eu, que jamais pensei ser bobo”...
ALAN: Ele só poderia orientar até cinco trabalhos, queria mesmo ser o sexto?
MANJERICÃO: “Me perdi com esse olhar tão inocente”...
IGOR: Me deixou comendo poeira com uma ideia que não era sua!
MANJERICÃO: “Sem saber que em tua mente”...
ALAN: Se fosse abstêmio, pouparia meus ouvidos de escutar tanta besteira!
MANJERICÃO: “Existe um monstro, uma mulher”...
IGOR: Vai me dizer que a ideia do TCC foi sua?
ALAN: Foi do Flávio, a gente vai fazer o trabalho em dupla... Mas eu posso saber o que você tem a ver com isso?
FLÁVIO: Tá com inveja de você, Alan; não deu pra sacar ainda?
IGOR: Do quê, exatamente? Da incompetência? Porque teve que se juntar a esse aí pra ver se saía uma ideia que prestasse! Porque sozinho você não consegue nada! Aliás, combina bem com aquilo que você é. Um nada!
ALAN: (com semblante e voz calmos) Flávio, eu tentei de tudo para me conter, mas... Você viu a deixa que ele deu, não é (alterado, dá um soco no rosto de Igor)?
FLÁVIO: Sai daqui, Igor! Dá o fora!
IGOR: Sem dar o troco nesse imbecil? Nem pensar!
Igor, então, tenta acertar o rosto de Alan, mas acaba atingindo Flávio, que cai ao chão depois de um ferimento na boca causado pelo golpe.
ALAN: Eu vou acabar com a tua raça, desgraçado!
MANJERICÃO: “Você vai me matar ou, então, deixar louco” (repete o verso)...
LAÍS: Nós podemos entender essa sua última fala como uma ameaça explícita?
FLÁVIO: Protesto, Meritíssima! A promotora está interrogando o réu no momento em que só eu posso fazer isso.
ROBERTA: Protesto negado, só porque fiquei curiosa pela resposta!
ALAN: Eu falei sem pensar, não era pra ter me levado a sério.
LAÍS: Dessa forma, como poderíamos levar o réu a sério neste momento? Além do mais, foi feita uma perícia na mansão do réu. O luminol utilizado pela polícia mostrou que havia um líquido vermelho derramado, e que o Sr. Alan Godoy...
ALAN: É Alan!
ROBERTA: (bate o martelo) Uma interrupção a mais e você vai para a cadeia! Sem veredicto!
LAÍS: O Sr. Godoy limpou, mal e porcamente, o líquido vermelho. E, no depoimento do Sr. Flávio de Barros, ele reparou que havia uma mancha vermelha na camisa do réu quando foi buscá-lo para levar ao aeroporto.
ERASMO: (fala entredentes) Chegou a hora de desmascarar aquele parasita.
LAÍS: (Erasmo deixa o tribunal) Será que tanto a mancha quanto o líquido não são exatamente o mesmo material?
ALAN: Aonde a senhorita quer chegar?
LAÍS: Se o senhor quer que eu seja clara, assim será. Será que antes de encontrar o Igor inconsciente na piscina de sua casa, o senhor não tentou matá-lo?
FLÁVIO: Isso é um absurdo!
LAÍS: É o que você pensa, Lionel Richie da OAB! O réu declarou que acabaria com a raça da vítima durante o show de Leonardo Manjericão na Concha Acústica, um dia antes da viagem! Portanto, se o Igor conseguiu entrar na casa e fazer uso de drogas lícitas dentro da piscina, ele pode muito bem ter conseguido entrar no mesmo lugar antes. E talvez o seu cliente tenha facilitado a entrada do Igor.
ROBERTA: Sem rodeios, Dra. Lobo. O que tenta insinuar a respeito do réu?
LAÍS: Uma das hipóteses cogitadas para o desaparecimento de Igor era a de que ele estivesse morto. Agora, tudo está claro: Igor desapareceu por conta própria, para se preservar. Porque um dia depois das brigas, o Sr. Godoy tentou matá-lo em sua casa!
(fundo musical: “Suspense/ decepção”)
Ouve-se a porta do quarto em que Igor está sendo aberta. O rapaz continua inconsciente.
ENFERMEIRA: Ainda não demonstrou a recuperação dos sinais vitais, Doutor. Pelo visto, o quadro é irreversível. Realmente, é uma pena... Tão jovem... Bem, acabou o meu plantão. A direção do hospital me avisou que o senhor ficaria aqui pra fazer uma avaliação mais detalhada. Com licença.
O “médico” descobre um dos pés de Igor e o toca duas vezes, sem que o rapaz reaja. Repentinamente, ele acende um isqueiro sobre o dedão do vilão, que grita, assustado.
(fundo musical: “Tenso gone #1”)
IGOR: Que é isso?
ERASMO: Melhora milagrosa, não, cunhadinho?

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