Sai do Ibura,
aquela comunidade linda, iluminada e extremamente pacífica para enfrentar
aquele trânsito caótico. Nas proximidades da Avenida Recife, toma para si (e
para novecentas e sessenta e duas pessoas, porque ela é caridosa) um ônibus da
linha CDU/ Boa Viagem (Caxangá). O sol começava a torrar, Isabela começa a se
arrepender da hora que nasceu, mas transita exuberante pelo Centro de Artes e
Comunicação, pronta para assistir à aula de estágio supervisionado. Coragem.
Voltando ao
local de origem de nossa mocinha, Caio está com umas olheiras terríveis. Não é
para menos: seria o primeiro dia de aula dele numa universidade. E também não
dormiu porque teria que ajudar nos negócios da família mais cedo. Talvez uma
viagem à multinacional na qual auxiliava o pai, um escritório de advocacia, uma
corretora de imóveis, agência que fez o comercial da Luiza que estava no
Canadá.
Foi fazer pão
francês.
Sim, Caio
trabalhava na panificadora que o pai, o simpático Leônidas, havia aberto há
umas três semanas. Claro que ela era frequentada mais pelos que compravam
fraldas. Também, a padaria fica no Ibura, e é um bairro que tem pobre. E você
sabe que pobre prolifera mais que coelho, não é?
Ao largar da
aula, Isabela vai ao prédio da editora de sua universidade. É recebida pelo
editor da empresa, com muito carinho. Vamos frisar porque se há uma coisa que
letrando sabe ser (menos eu) é altamente irônico.
-Seja bem
vinda, Bella. Sente-se, por favor.
-Obrigada.
-Bella
Caffé... De onde surgiu esse pseudônimo?
-Da minha
segunda paixão.
-Bella, eu
acho que você deveria se dedicar à sua segunda paixão.
-Ai, o que
foi?
-Querida, nós
da editora chegamos à conclusão de que seu romance está enquadrado naquilo que
carinhosamente chamamos de... Literatura marginal. Não dá pra ler.
-Como é que é?
-Entenda,
minha querida, não é o momento para você publicar uma estória desse teor.
-Eu passei dez
meses, vinte e seis dias, treze horas e oito minutos com inspiração para
escrever o meu livro.
-Pode ter
certeza: não vai passar para a Bienal do Livro.
-Fliporto?
-Nem na
esquina.
-Só pode ser
um inferno astral. Acabei de terminar o namoro no réveillon, não peguei ninguém
na virada e ainda não vou ver o meu livro sendo publicado?
-Quem sabe se
você escrever outra coisa?
-Não posso
mudar minhas indiretas. O alvo tem que entender na hora.
-Isabela,
nosso trabalho não é brincadeira.
-Não estou
brincando. Mas quero realmente que meu ex, que me trocou por uma albina
siliconada, se lasque.
-Mas você deve
ser mais bonita.
-Ela fez
plástica no Robert Rey, mudou o guarda-roupa no “Esquadrão da Moda”, reformou o
casebre de isopor no “Lar doce lar” e ganhou no “Soletrando”.
-Mas você deve
ter qualidades maiores. Uma bagagem cultural.
-Ela é
bilíngue. Você não entendeu que o buraco é mais embaixo? Ela aprendeu Libras em
três dias. Eu estou no quinto período e não tenho nem o meu próprio sinal.
-Isabela,
desiste desse homem.
-E se eu
escrevesse um romance no qual as mulheres são subservientes aos homens? Quem
sabe uma trilogia?- o editor olha silenciosamente para a moça- Por favor, eu
preciso de dinheiro pra comprar café! O que eu gasto de Xerox daria pra dar uma
pisa no Eike Batista!
XXXXX
Ao descer do
ônibus, Isabela vai à padaria e compra um pacote de café Pilão. Não nota,
entretanto, que a embalagem está furada e a validade vencida. Passa pelo caixa
e lá está Leônidas.
-Dá quanto?
-Quatro e
vinte e cinco.
-Espera aí,
isso é um assalto.
-Dilma abaixou
a luz, mas aumentou a gasolina e o salário também. Tudo cresceu.
-Inclusive o
peso da minha mão no meio da tua cara.
-Pensando bem,
eu vou fazer por dois e cinquenta e quatro.
-Grata.
XXXXX
-Não demora
para Isabela chegar em casa. Logo vai à cafeteira e prepara o seu cappuccino.
No armário, pega um pote de açúcar, um pacote de leite Itambé e uma lata de
Nescau Active 2.0 (vou para porque sou moderno e não realista). Dirige-se até o
armário e pega uma colher e uma xícara com o desenho da Pucca. Fofa ela, não?
Ao dirigir a
xícara à boca, dá um zoom (sim, um zoom, colega) na data de validade do Pilão:
05/02/2008. Pra quem já estava naturalmente irritada com a rejeição de seu
romance que mais parecia um manual do recalque (li uma cópia), é um estímulo
para perder a pose.
-2008, não é?
Vai ser a quantidade de pontos que aquele velho vai levar depois que eu rasgar
a cara dele. Eu vou lá agorinha? Sim ou claro? Com certeza!
XXXXX
No caixa, tio
Leoni (vou personalizar) percebe que há pouco movimento naquela noite. Do nada,
o celular dele vibra. De longe, ele vê o filho.
-Caio, vem pra
cá um minutinho.
-O que houve?
-Toma conta do
caixa pra mim?
-É aquela
mulher secreta de novo?
-A própria. Me
deixa atender.
Quando Caio
senta, chega Isabela, como um vulcão em erupção.
-Cadê aquele
velho?
-O que foi que
houve?
-Comprei café
vencido.
-Ih, desculpa.
Vou pedir a painho que vá trocar o pacote.
-Eu quero meu
dinheiro de volta.
-Desculpa,
moça, mas aqui a gente não devolve grana de ninguém.
-E eu com
isso? Não pari ninguém!
-Dá pra ficar
calma!
-Eu estou
ótima, meu amor! Nos trinques! O Procon também está!
-Menina, é só
trocar o pacote. Nada demais.
-Eu podia ter
morrido com cappuccino envenenado.
-Um minuto...
Você disse “cappuccino”.
-Falei, por quê?
Algum problema?
-Todos! Você
sabe o que é se mudar para um bairro há mais de três semanas e a única
expressão considerada de bom gosto por aqui é “Eu quero tchu, eu quero tchá”?
Eu quero minha vida de volta à Várzea! Cappuccino é o que há!
-Menino, nem
te conto? E aquela desgraça de “Bará beré”? Até o duplo sentido pediu pra
morrer naquela miséria!
E assim começa uma longa e tresloucada amizade.
A-D-O-R-E-I!
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