10/02/2018

GATA FATAL/ CENA 7

Usando um macacão vermelho, Caroline deixa o manicômio judiciário, e se depara com Luiz Carlos esperando por ela dentro de seu carro.
(Fundo musical: “Você vai ver”- “eu vou ficar guardado no seu coração, na noite fria, solidão/ saudade vai chamar teu nome”)
CAROLINE: Esse homem, não. O que é que você tá fazendo aqui?
LUIZ CARLOS: Não imaginei que viesse uma legião de fãs pra te esperar sair do manicômio judiciário, então despistei a imprensa pra vir te buscar. Entra. Mas você tá linda, hein?
CAROLINE: O look de um dia comum.
LUIZ CARLOS: Imagina o que você deve usar quando a ocasião é de gala.
CAROLINE: Dependendo da ocasião, nada. Mas me conta uma coisa: como é que você fez pra enganar os repórteres?
LUIZ CARLOS: Disse que a situação que você viveu te abalou profundamente e que vamos marcar uma coletiva de imprensa pra contar o que aconteceu quando você se sentisse devidamente preparada.
CAROLINE: Arrasou! Agora vamos pra casa. Eu quero colocar uma roupa preta e fazer uma visita.
LUIZ CARLOS: Pra quem, Caroline?
CAROLINE: Pra minha querida Thaís. Acho que eu merecia me despedir dela com mais dignidade.
LUIZ CARLOS: Caroline, você enfrentou um processo por causa dela. Não é possível que você seja tão sádica a ponto de...
CAROLINE: Fomos amigas, Luiz Carlos. Muito difícil ter que me despedir dela, mas é necessário.
LUIZ CARLOS: Então, vai ter que fazer isso longe do cemitério.
CAROLINE: Quer dizer o quê?
LUIZ CARLOS: A Thaís não morreu.
CAROLINE: Não?
LUIZ CARLOS: Se a gente puder chamar isso de sequela, o único problema que ela teve decorrente daquela queda de escada que você provocou foi uma unha do pé quebrada.
CAROLINE: Mesmo? Ah, então, me dá o endereço de onde aquela garota tá, que eu vou terminar aquilo que eu comecei!
LUIZ CARLOS: Você não vai chegar nem perto dela.
CAROLINE: Mas ela comeu a minha lasanha, não pode ficar assim!
LUIZ CARLOS: Caroline, escuta! Eu falei com o advogado que eu contratei pra você e descobri que a justiça só te liberou de maneira condicional, já que o laudo da psiquiatra foi inconclusivo.
CAROLINE: Também, né? Aquela louca...
LUIZ CARLOS: E isso também implica em alguns planos traçados pra você antes do incidente. Como a sua viagem pra Paris.
CAROLINE: O que tem ela? Tá de pé ainda, não tá?
LUIZ CARLOS: Enquanto você for processada, nem sonhe. Mas os editores da revista não abriram mão de você e resolveram fazer o ensaio assim mesmo. Só que a gente vai ter que improvisar.
CAROLINE: Já sei: vou posar num estúdio em chroma key, e o cenário de Paris vai ser reproduzido em computação gráfica, né?
LUIZ CARLOS: Um ponto turístico novo: Lixão da Muribeca.
CAROLINE: Mas o cachê continua o mesmo?
LUIZ CARLOS: Tanto ele quanto eu. Não vou te largar.
CAROLINE: Fazer o quê, né?
LUIZ CARLOS: O mesmo te pergunto eu: fazer o quê se você gosta de ser uma incógnita? Se nem a psiquiatra conseguiu, quem sou eu?
CAROLINE: Psicopata, sociopata, doida, escalafobética... A ciência não conseguiu me definir ainda. E o pior é que eu gosto. Agora, sai do volante e deixa que eu dirijo.
LUIZ CARLOS: E eu posso saber aonde você vai me levar?
CAROLINE: À loucura! (Fundo musical: “Riscos do amor”- “a gata agora alisa, arranha o sofá, afia as unhas pra atacar”) Quer ir?
LUIZ CARLOS: A ciência não conseguiu descobrir, mas você sabe muito bem. Quem é você de verdade?
CAROLINE: Sinceramente?
LUIZ CARLOS: Claro.
CAROLINE: Eu gosto de tomar conta do coração dos outros com a sutileza de um furacão, atacar o amor com o sangue frio de um torturador, chegar perto do seu corpo acariciando um punhal, entre outras coisas. E se eu demorei a me envolver com você foi porque, mesmo com a boca seca num deserto sem fim, achei que você era só miragem pra mim.
LUIZ CARLOS: Verdade?
CAROLINE: Não. É tudo uma música da Rita Lee e do Roberto de Carvalho.
LUIZ CARLOS: Caroline, você percebeu?
CAROLINE: O quê?
LUIZ CARLOS: Desde que o filme começou, as nossas falas estavam sendo legendadas.
CAROLINE: É, eu reparei. Não sei pra quê, a gente não tava falando em outra língua mesmo, pelo menos não o tempo todo.
LUIZ CARLOS: Que estranho! O que foi que aconteceu com o cara das legendas?
CAROLINE: (mostra uma adaga ensanguentada) Não fui com a cara dele.

(Fundo musical: “Perigosa”- “reveja a beleza, o olhar e o coração/ legítimo caso de amor, uma paixão (...) Elegância e ação, secreta ambição. Perigosa, perigosa! Custe o preço que custar, nada a fará resistir! Perigosa, perigosa! Custe o preço que custar, nada a fará resistir!”)

09/02/2018

GATA FATAL/ CENA 6

MARY: E quem chamou a polícia pra você?
CAROLINE: Não sei. Deve ter sido algum vizinho desocupado que ouviu os gritos dela.
MARY: Bem, eu... Acho que cheguei a uma conclusão sobre o seu caso.
CAROLINE: É nada! O que foi que descobriu, Doutora?
MARY: Você é de uma extrema frieza e é calculista, observa seu adversário centímetro por centímetro, procurando algum deslize pra ser utilizado a seu favor. Mas é importante deixar claro que você não deixa a casa cair sozinha. Muito pelo contrário: a destrói por completo pra ninguém ter direito a nada.
CAROLINE: Realmente, cada almoço que você pagou no restaurante universitário valeu a pena. Que teoria fascinante! E a que conclusão você chegou?
MARY: Caroline, ao que me consta, você apresenta um quadro de transtorno de personalidade antissocial.
CAROLINE: Traduzindo...
MARY: Uma psicopata.
CAROLINE: A senhora tá enganada, pode ter certeza.
MARY: Não, nem gaste o seu latim comigo, Caroline. Eu não costumo me enganar, ainda mais com um caso feito o seu.
CAROLINE: Quer dizer que a senhora realmente pensa que eu...
MARY: Eu não penso. Eu sei. Qualquer psiquiatra pode comprovar o que eu estou dizendo a seu respeito.
CAROLINE: (olha para a mão esquerda de Mary, vendo a aliança que a médica usa) Inclusive seu marido?
MARY: Sei o que está tentando fazer: me manipular para que eu demonstre ter me equivocado na concepção do laudo que eu vou entregar à justiça, mas sua estratégia não vai dar certo. Meu marido, pra começar, nem trabalha nessa área.
CAROLINE: Eu não disse que trabalhava. Insinuei que a senhora tava certa quando disse que qualquer psiquiatra pode confirmar o que a senhora pensa sobre mim, mas seu marido não.
MARY: Por acaso você conhece o meu marido?
CAROLINE: A fundo.
MARY: Seu desespero é tanto que está tentando me desestabilizar.
CAROLINE: A paciente aqui sou eu, não se esqueça.
MARY: Você acha que o meu marido iria olhar pra um tipinho insignificante feito você, que não sabe o que é lavar o cabelo e se sente no direito de se considerar “rústica”? Pensa mesmo que o meu marido vai trocar uma mulher que sabe tudo de Freud e Valon por você?
CAROLINE: Sabe porque quer! As teorias de Valon são exigidas na psicologia. Se você conheceu as ideias dele na psiquiatria, foi porque é enxerida.
MARY: “Ideias dele”... SUAS IDEIAS! Suas! Esperar o quê de uma paciente que sequer sabe usar corretamente a colocação pronominal?
CAROLINE: Já ouviu falar em variação linguística, meu bem?
MARY: Já. O suficiente pra saber que meu marido não é tão tolo a ponto de trocar uma mulher como eu por outra que não sabe nem falar português direito.
CAROLINE: Mas usa o inglês que é uma maravilha. A orelha dele é testemunha da minha fluência quando estamos a sós... “teach me, tiger, how to kiss you” (começa a ronronar como na canção)...
MARY: Quer dizer que era por isso que ele vivia colecionando discos internacionais dos anos sessenta? Por influência sua?
CAROLINE: Confesso que tenho um único defeito, Doutora: apesar de falar em diversos idiomas, eu não sei dizer “não” em nenhum deles.
MARY: Então, pode começar a gritar “help”, porque eu vou te matar, desgraçada! (avança contra Caroline)
CAROLINE: Socorro! A mulher tá doida! (aparecem dois enfermeiros para levar Mary carregada pelos braços)
MARY: Me deixem acabar com a raça dessa cretina, me soltem!
CAROLINE: Próclise numa hora dessas? A senhora me decepcionou...
MARY: Eu vou me vingar de você! De você e daquele cafajeste! Vou fazer ele agonizar, eu te juro!
CAROLINE: Leva ela daqui, tá completamente descompensada!
MARY: Aguarde por notícias minhas, Caroline! Porque eu não vou ter piedade!
CAROLINE: Quem tem Piedade é Jaboatão! Tirem essa louca daqui!
MARY: Me larguem, estúpidos! Me soltem! Você vai me pagar, Caroline! Eu juro que você vai me pagar! (os enfermeiros conseguem tirar a psiquiatra do consultório)

CAROLINE: Que coisa horrorosa! (finge fragilidade) Eu só olhei a aliança, viu que ela era casada e comentei... Quem será o marido dela? Coitado desse cidadão, seja ele quem for!

08/02/2018

GATA FATAL/ CENA 5

Thaís está enrolada sob as cobertas da sua cama e acaba se assustando com a presença de Caroline, vestida com um macacão preto e com os cabelos amarrados por uma “presilha” vermelha e prata.
THAÍS: Que susto! Quanto tempo faz que você tá aí?
CAROLINE: O suficiente, meu bem.
THAÍS: Menina, mas que roupa é essa, hein? Vestida pra matar!
CAROLINE: Acertou em cheio.
THAÍS: Algum encontro em especial?
CAROLINE: Pra mim, não. É o seu com a morte.
THAÍS: Como assim? O que você quer dizer?
CAROLINE: Você não sente nenhum remorso de ter traído minha amizade dessa forma, não, Thaís?
THAÍS: Mas o que foi que eu fiz?
CAROLINE: Aproveita que eu tô de ótimo humor e para de me testar. Quem sabe assim eu não te deixe viva por mais tempo?
THAÍS: Caroline, o que é que te deu? Por que é que você acha que eu...
CAROLINE: Cala a boca!
O cenário se alterna com Luiz Carlos na varanda da agência, chorando ao pensar em Caroline.
(Fundo musical: “Deus me livre”- “te amo, mas vivo a fugir desse amor/ não dá pra ficar cara a cara”)
THAÍS: Por que você resolveu ficar agressiva comigo desse jeito?
CAROLINE: E ainda pergunta?
THAÍS: Mas o que foi que eu te fiz?
CAROLINE: Naquele dia, na praia, eu te falei que eu cobro quem tentar tirar o que me pertence. E você me ignorou mais do que áudio do WhatsApp!
THAÍS: Caroline, você bebeu?
CAROLINE: Uísque, e um pouco de sorvete pra me dar coragem de acabar com você, traíra!
THAÍS: Isso tudo por quê? Porque eu comi a lasanha que você fez?
CAROLINE: Isso! Admite, Thaís! Pelo menos vai pro além com um restinho de dignidade!
THAÍS: Você sabe que eu sou louca por lasanha!
CAROLINE: Você é louca por qualquer coisa que seja comestível! Mas daí a tocar na travessa que eu recheei é demais!
THAÍS: Realmente, você quer que eu acredite que você ia comer tudo sozinha?
CAROLINE: Ia! Mas a questão não é essa, é que eu não posso confiar mais em você! E o que você fez contra mim não vai ficar impune...
THAÍS: Ah, para de palhaçada, Caroline! (levanta da cama) Na certa, você deixou aquela lasanha pronta e não comeu imediatamente porque deve ter tido mais um encontro com Luiz Carlos. Quem sabe o que foi que...
CAROLINE: Pode parar! Pra você não interessa o que possivelmente aconteceu entre mim e ele. Isso não é justificativa pro que você fez.
THAÍS: Do jeito que você fala, parece até que eu cometi um crime.
CAROLINE: Trair a minha confiança é inafiançável!
THAÍS: Vai me punir por isso, amiga? Por causa de uma lasanha?
CAROLINE: Pode apostar que vou!
THAÍS: Então, me fala: como é que você vai se vingar de mim? Por acaso vai pegar uma faca pra me matar?
CAROLINE: Lógico que não. (Caroline desamarra os cabelos e revela a “presilha” que segurava seus fios, apontando-a para Thaís) Prefiro adagas.
THAÍS: Abaixa isso, Caroline.
CAROLINE: Me dá um bom motivo.
THAÍS: Nós somos praticamente amigas de infância, esqueceu?
CAROLINE: Eu te pedi um bom motivo.
THAÍS: Pensa na tua carreira, que tá só começando. Você não vai querer jogar tua trajetória no lixo por minha causa!
CAROLINE: Será que não vou?
THAÍS: Já te pedi; abaixa essa adaga, Caroline!
CAROLINE: Se eu não usar a adaga, você vai acabar voando pela janela desse andar, que é o último. Qual é o menos doloroso pra você?
THAÍS: Quer parar de se comportar feito uma psicopata?
CAROLINE: Não, eu não vou rasgar sua cara com frieza. É com requintes de crueldade mesmo. Me chama de sociopata, que é mais apropriado pra ocasião.
THAÍS: Tá ficando doida?
CAROLINE: Bom, aí já entramos em outra patologia, minha querida.
THAÍS: Socorro! Alguém me ajuda, tem uma doida no meu quarto tentando me matar!
CAROLINE: Gritando pra quê? Pra aumentar mais o meu ódio e eu te mandar pro inferno sem escalas? Sabe que teve uma vez que eu quase matei uma amiga minha chamada Fernanda porque ela tava gritando do meu lado? Odiar de graça é bom, mas quando alguém dá motivo é fascinante.
THAÍS: Típico comportamento de uma pessoa de aquário...
CAROLINE: Fala do meu signo de novo que você vai fazer meu mapa astral do além!
THAÍS: Ah, vá! Quem me garante que você ficou doida de vez e que vai me matar? Quem tem a raiva que você supostamente tá sentindo não fica alardeando que vai matar. Mata e ponto! Você não mata nem a barata da vizinha que tá na minha cama!
CAROLINE: Boa ideia. Chega de perder tempo! (avança contra Thaís)
THAÍS: Socorro! (Thaís joga o abajur do quarto contra Caroline antes de fugir do apartamento, mas a modelo novata desvia e corre atrás da veterana. Thaís aperta várias vezes o botão do elevador até que a nova rival chegue para atacá-la com a adaga, sendo segurada pela antiga funcionária da Bacurinha’s Vintage)
CAROLINE: Aonde é que você pensa que vai?
THAÍS: Me solta, Caroline! Eu vou chamar a polícia! (Thaís se aproxima da escada de emergência)
CAROLINE: Esse filme não tem nem figurante, quanto mais policial!
THAÍS: Comi! Comi sua lasanha, sim, e daí? Vai me jogar daqui de cima, sua louca?
CAROLINE: E não é isso que você merece?
THAÍS: Caroline, me larga! (Thaís empurra Caroline para o chão, mas ela acaba se desequilibrando e rolando a escadaria do prédio aos gritos)
(Fundo musical: “Skyline pigeon”- “fly away! Skyline pigeon, fly! Toward the dreams you’ve left so very far behind”)
Neste momento, aparece Luiz Carlos jogado ao chão da agência enquanto aparece a legenda dos versos, em paralelo com a queda de Thaís.
(legenda: “voe longe! Pombo do horizonte, voe! Em direção aos sonhos que há muito tempo deixou pra trás”)
A cena volta para o prédio no qual as modelos moram. Caroline inclina a cabeça longe de onde está Thaís para ver se a moça está desacordada.

CAROLINE: Que frustração... Caiu feito uma jaca podre sozinha, sem a minha ajuda. Fazer o quê? Cada um saboreia o que pode. Você, a minha lasanha. E eu, a minha doce vingança. (começa a rir ao lado de uma das janelas do corredor quando, repentinamente, luzes de carros policiais indicam que cercaram) Por que eles sempre aparecem quando ninguém chama, hein?

07/02/2018

GATA FATAL/ CENA 4

Transição de cenas da praia para o apartamento das modelos, também à noite.
(Fundo musical: “Natureza humana”- “e se eles dizem ‘why? Why?”, é a natureza humana. ‘Why? Why?’. É assim que ela me faz”)
Caroline tirou do micro-ondas uma lasanha que havia acabado de preparar, quando o celular tocou. Era Luiz Carlos.
CAROLINE: Fala.
LUIZ CARLOS: Caroline, tá ocupada?
CAROLINE: Tô, o que foi?
LUIZ CARLOS: Tem como você dar uma passadinha aqui? Eu preciso conversar com você.
CAROLINE: Não dá pra dizer o assunto por telefone ou uma mensagem de áudio no “Zap”?
LUIZ CARLOS: Não, tem que ser pessoalmente.
CAROLINE: Tudo bem, eu vou colocar a lasanha que eu fiz pra esfriar. Mas se não for importante, pode encomendar uma vala, porque hoje eu mato um! E esse “um” é você!
LUIZ CARLOS: Garanto que não vai se arrepender. (ouve a campainha tocando novamente) A essa hora, quem será? Eu só tô esperando por Caroline mesmo... (abre a porta) Como é que você...
CAROLINE: Antes que me pergunte que mágica eu fiz pra chegar tão rápido, só fiz trocar de cenário.
LUIZ CARLOS: Que bom que você veio.
CAROLINE: Espero que seja. O que de tão importante você tinha pra me falar?
LUIZ CARLOS: Uma publicação francesa te convidou pra estrelar um ensaio.
CAROLINE: Revista de beleza?
LUIZ CARLOS: Nudez.
CAROLINE: Ah, sei. Qual é a proposta?
LUIZ CARLOS: Um ensaio sensual em vários pontos de Paris. E o ápice, com direito a pôster, é você em frente à Torre Eiffel. Totalmente sem censura.
CAROLINE: O que te faz acreditar que eu vou posar pra uma revista erótica? Não tem dinheiro no mundo que me faça expor a intimidade.
LUIZ CARLOS: O cachê é de quinhentos mil.
CAROLINE: Dólares?
LUIZ CARLOS: Euros.
CAROLINE: Mostro! Mostro tudo, até a hipoderme!
Thais volta para o apartamento e chama pela amiga, pensando que ela está em casa.
THAIS: “Miga”? Você tá em casa? (senta-se no sofá) Tô morta de cansada! E o pior é que eu vou ter que cozinhar, já que não tem nada pronto aqui!
(Thaís olha para a lasanha que está sobre a mesa da cozinha/ fundo musical: “Perigo”- “perigo é ter você perto dos olhos”)
LUIZ CARLOS: Ao futuro, Caroline.
CAROLINE: Ao futuro. Embora eu tenha medo do futuro que me aguarda, já que o presente me faz brindar com água mineral.
LUIZ CARLOS: Confesso que essa temporada em Paris vai me fazer sentir saudade.
CAROLINE: Imagina... É só um trabalho artístico, não vou fixar residência lá. A não ser que você esteja me traficando, como na novela da Glória Perez.
LUIZ CARLOS: Duvido muito que os franceses queiram te deixar ir embora. Eu, no lugar deles, não deixaria.
CAROLINE: E por que tá deixando? É sinal de que não me quer por aqui.
LUIZ CARLOS: Acho que você merece uma oportunidade melhor do que a Bacurinha’s Vintage. Você mal começou a carreira e empresários do exterior já estão de olho em você.
CAROLINE: Você vai sentir minha falta mesmo?
LUIZ CARLOS: Vou. E você? Vai sentir saudades de mim quando estiver na França?
(Fundo musical: “Ne me quitte pas”- “ne me quitte pas/ il faut oublier/ tout peut s’oublier/ qui s’enfuit dejà/ oublier le temps/ des malentendus et le temps perdu”/ personagens em silêncio)
CAROLINE: Não, só perguntei mesmo porque sempre é bom ouvir um elogio.
LUIZ CARLOS: Mas não deixa de ser verdade. Dói muito cogitar a hipótese de te ter longe de mim.
CAROLINE: Vê se não viaja, Luiz Carlos. Nós nunca tivemos nada.
LUIZ CARLOS: Porque você não quis.
CAROLINE: Porque sou inteligente mesmo. Você não faz o meu tipo.
LUIZ CARLOS: Alguém faz, Caroline? Parece que você gosta de ser uma incógnita pra todo mundo. Por que você não se permite comigo?
CAROLINE: Deve ter coisa melhor no mercado externo.
LUIZ CARLOS: Duvido muito que você consiga encontrar alguém que tenha a mesma devoção que eu tenho por você. O que eu tô te pedindo não é nada do outro mundo. Já deu pra perceber o que você mais gosta de fazer.
CAROLINE: Comer e dormir, só pode.
LUIZ CARLOS: Não. Querer que todo mundo se apaixone por você.
CAROLINE: Não, não é que eu queira. É natural. Se todos os heterossexuais dessa galáxia me querem, eu vou fazer vista grossa pra isso?
LUIZ CARLOS: Beleza, mas não é de paixão que eu tô falando. É da vontade de proteger, de ter você por perto, de achar que ninguém pode te fazer mais feliz do que eu. Pensa que eu não tô pedindo uma chance pra mim, mas pra nós dois.
CAROLINE: Luiz Carlos...
LUIZ CARLOS: Diz...
CAROLINE: Minha lasanha vai esfriar. Fui! (sai da agencia) Ah, gente, desculpa se eu pareci delicada como um coice de mula, mas falei isso porque sei que ele vai sobreviver ao que eu disse.
Dentro da agência, Luiz Carlos segura a taça de água mineral e começa a verter lágrimas.
(Fundo musical: “É tarde demais”- “você jogou fora o amor que eu te dei, o sonho que sonhei/ isso não se faz”)
CAROLINE: Ah, finalmente em casa, doida pra devorar sozinha a minha obra de arte enquanto Thaís não volta do desfile... (Caroline olha para a travessa vazia sobre a mesa e fica possessa com a amiga) Parece que alguém vai se arrepender de ter nascido...

06/02/2018

GATA FATAL/ CENA 3

(Fundo musical: “Gata todo dia”- “a vida arranha e se eu faço rock, eu faço manha/ meu bem, me dê sua atenção”)
Thaís e Caroline fazem um ensaio e posam para a capa de algumas revistas. Depois disso, vão para a praia à noite e iniciam um diálogo.
THAÍS: O que é que você achou do ensaio, Carol?
CAROLINE: Fiz tanta pose que já tava vendo a hora de me atacar uma tendinite! Mas até que foi bom. Quem sabe eu gosto dessa carreira que aquele doido me apresentou?
THAÍS: Já reparou, não foi?
CAROLINE: No quê, Thaís?
THAÍS: Que ele é afim de você.
CAROLINE: Problema dele. Sabe aquele ser humano metódico, certinho, que não vive sem escapar de uma só regra?
THAÍS: Sei. Tipo o Darcy de “Orgulho e preconceito”.
CAROLINE: Você leu esse também, amiga?
THAÍS: Claro, sou doida por esse livro. Mas voltando ao assunto: ele não vai desistir de você tão fácil assim.
CAROLINE: Perda de tempo. Luiz Carlos é um cara muito padrãozinho. Só pelo nome a gente tem ideia. Agora me fala de você.
THAÍS: Ah, eu acho que não tenho tanta coisa interessante pra contar feito você.
CAROLINE: Que tanta coisa interessante que eu tenho pra dizer? Só que eu sou boa de cama!
THAÍS: Sério? Isso você nunca me contou!
CAROLINE: Pensei que tivesse percebido durante esse tempo que moramos juntas.
THAÍS: Como, se você nunca levou ninguém pro nosso apartamento?
CAROLINE: Não precisa, Thaís: basta eu ver uma cama pronta e eu durmo. Pra caramba!
MARY: OK, mas o que eu preciso saber é quando as coisas saíram do controle.
CAROLINE: Controle é uma coisa que eu não perco, Doutora.
MARY: Dá pra ver. Você enrolada numa camisa de força é a prova viva do quanto você é centrada.
CAROLINE: Mas a culpa foi dela. Nada teria acontecido se ela não tivesse colocado os olhos e todo o resto no que era meu.
MARY: Agora você está admitindo que tinha, sim, motivos pra eliminá-la.
CAROLINE: Tinha e tenho.
MARY: Você pretendia fazer o mesmo com o Luiz Carlos, não é?
CAROLINE: Eu? Por que acha isso?
MARY: Porque, mesmo que negue, ele foi fundamental pra sua ascensão. Mas quando ele não fosse mais necessário, poderia dar um jeito de se livrar dele.
CAROLINE: Não com o mesmo desejo de me livrar de você, tipo o que eu sinto agora.
MARY: Sabe do que eu desconfio? De que você é uma perfeita sociopata, capaz de cometer as maiores atrocidades.
CAROLINE: Ou uma psicopata.
MARY: Tá jogando comigo?
CAROLINE: Talvez.
MARY: Se está tentando me manipular, desista.
CAROLINE: A gente manipula quem é importante pra gente em um certo momento da vida. Com todo o respeito, eu tô pouco me lixando pra você.
MARY: Continua. Mostra a sua face, Caroline.
CAROLINE: Quando a gente tava na praia, ela me perguntou uma coisa...
THAÍS: Mas vem cá: não rola nenhuma chance com ele, nada?
CAROLINE: Luiz Carlos é ótimo, mas ele quer uma coisa que eu não posso dar.
THAÍS: O quê?
CAROLINE: Minha liberdade. Dela eu não abro mão, Thaís. E eu nunca vou deixar ninguém tomar aquilo que é meu. Porque se tentar...
THAÍS: “Se tentar”... O quê?

CAROLINE: Eu cobro. Do jeito que for, mas eu cobro.

05/02/2018

GATA FATAL/ CENA 2

MARY: E foi bom pra você?
CAROLINE: (de volta ao metrô) Tá me encoxando?
LUIZ CARLOS: Desculpa, não foi minha intenção. Mas você viu, o metrô parou de repente. Não foi culpa minha.
CAROLINE: Sei...
LUIZ CARLOS: A gente já não se viu em algum lugar, não?
CAROLINE: Cara, essa cantada os homens não usam desde 1930!
LUIZ CARLOS: Não tô te cantando. Meu olhar é crítico, técnico mesmo. Tô falando como profissional.
CAROLINE: Profissional do sexo! A gente logo vê que você é cafetão! Tá pensando que eu não vi a novela da Glória Perez e que você vai tentar me levar pra Turquia?
LUIZ CARLOS: Se eu quisesse te levar pra algum lugar, seria pra onde você quisesse. Mas eu trabalho numa agência de modelos, a Bacurinha’s Vintage.
CAROLINE: Por acaso eu tenho cara de modelo?
LUIZ CARLOS: Pra ser sincero, não. Mas não é isso que todo olheiro procura, uma beleza fora do padrão? Olha, pra você não achar que eu sou mentiroso, o meu cartão. Toma.
CAROLINE: O que você acha que eu vou fazer com isso?
LUIZ CARLOS: Se você tiver vontade de fazer parte do casting... Garanto que vai fazer sucesso.
CAROLINE: Não, muito obrigada. Modelar tá longe dos meus múltiplos talentos.
LUIZ CARLOS: Cuidado, hein? Do jeito que a vida anda imprevisível ultimamente, ninguém pode se dar ao luxo de dizer que não vai beber dessa água.
CAROLINE: Dessa água não beberei!
Cinquenta minutos depois...
LUIZ CARLOS: (fala ao celular) Então, já vai começar no dia 11? Ótimo. Não, nem se preocupe com isso. Já sou presença garantida na Semana de Moda do Rio Mar. Beleza, cara. Até mais. (escuta a campainha sendo tocada) Quem deve ser? (abre a porta e encontra Caroline com a cabeça inclinada e vestindo um vestido tomara-que-caia preto com fenda)
(Fundo musical: “Have you ever loved a woman”- “To really love a woman, to understand her/ You've got to know her deep inside)
CAROLINE: Surpreso?
LUIZ CARLOS: Ué, mas você não disse que...
CAROLINE: Prometi e cumpri. Dessa água não beberei mesmo. Só uísque. E um sorvete pra misturar.
LUIZ CARLOS: O que te fez mudar de ideia?
CAROLINE: Conta de água atrasada. Vou lavar meu cabelo como se a Compesa cortar? De luz eu não preciso.
LUIZ CARLOS: Por quê? Usa energia solar?
CAROLINE: Não preciso porque eu me basto, querido. Chego num lugar e já brilho o suficiente. Mas me diz uma coisa: a agência é nesse pardieiro mesmo?
LUIZ CARLOS: Olha aqui, menina, o que você chama de pardieiro já prestou vários serviços à moda nacional!
CAROLINE: Ah, claro. Pelo estado, os mendigos devem desfilar na São Paulo Fashion Week, né?
LUIZ CARLOS: Aceita ou não o emprego?
CAROLINE: Não tenho escolha mesmo. Antigamente eu gostava de ser xingada na intimidade, agora as pessoas me constrangem gritando “desempregada” no meio da rua.
LUIZ CARLOS: Onde é que você mora mesmo, hein?
CAROLINE: Ibura.
LUIZ CARLOS: Ih...
CAROLINE: O que foi?
LUIZ CARLOS: Você sabe que o polo da moda em Pernambuco é Toritama, né?
CAROLINE: Quer dizer o quê? Que eu tenho que me mudar pra lá?
LUIZ CARLOS: Ou pra bem perto. A agência tem contato com alguns corretores imobiliários e eu acho que posso alugar um apartamento pra você. Só que assim: você vai ter que dividir com outra modelo. Assim vocês duas racham o aluguel.
CAROLINE: Tudo fácil demais. Quem me garante que você não tá fazendo isso pra me iludir? Não é porque você tem uma sobrancelha grudada na outra que eu não percebo seus olhos de cigano oblíquo e dissimulado.
LUIZ CARLOS: Eu não misturo trabalho com interesse pessoal. Agora, já que você tem interesse em livros... Se quiser, me leia.
(Fundo musical: “Nosso sonho não é ilusão”- “quero ser feliz, você também, não devemos nada pra ninguém”)
CAROLINE: (olha para cima) Não podia ser Raça Negra, não?
MARY: Você aceitou o apartamento que ele ofereceu?
CAROLINE: Claro. Fui aceitando quase tudo, mas se ele viesse de graça pro meu lado, ia meter a mão na cara dele.
MARY: E foi lá onde você conheceu a vítima do crime?
CAROLINE: (após uma pausa) Foi.
Luiz Carlos abriu a porta do apartamento e Caroline ficou de frente para a nova colega.
LUIZ CARLOS: Caroline, essa é Thaís, com quem você vai dividir o apartamento.
CAROLINE: Aham...
THAÍS: Prazer...
CAROLINE: Tem alguma coisa pra comer?
THAÍS: Esqueci de fazer as compras hoje. Só tem sorvete no congelador.
CAROLINE: Sem problema. Trouxe uísque na mala. Vou misturar.
THAÍS: Eu vou lá dentro pegar o pote.
LUIZ CARLOS: Que cara é essa, Caroline?
CAROLINE: Não fui com a cara dela.
LUIZ CARLOS: É só a primeira impressão. Thaís parecia tão acuada quando chegou aqui, vocês vão se dar bem.
CAROLINE: Nos últimos tempos, meu amigo, minha afinidade é mais com cachorros do que com gente. Acho muito difícil essa daí me surpreender.
THAÍS: Ô, Luiz Carlos, você vem pra minha festa de aniversário amanhã, né?
CAROLINE: “Peraí”: seu aniversário é no dia quinze de janeiro?
THAÍS: É, por quê?
CAROLINE: Finalmente, uma capricorniana pra conviver.
THAÍS: Você é de qual signo?
CAROLINE: Aquário!
THAÍS: Por que é que a tua agência não contrata gente de aquário, hein? É só gente maravilhosa.
LUIZ CARLOS: Onde é que eu ponho as malas?
CAROLINE: Em qualquer lugar. Agora me conta, já que você tem mais experiência no ramo: ele não é nenhum traficante, não, né?

THAÍS: Não, é só um idiota mesmo.

04/02/2018

GATA FATAL/ CENA 1

Caroline está amarrada a uma camisa de força. A jovem está sentada numa poltrona vermelha, situada dentro de um consultório branco. A psiquiatra encara a moça com um semblante sério, enquanto ela tem o olhar perdido. Inicia-se a conversa entre ambas.
MARY: Sabe a razão pela qual está aqui, não sabe?
CAROLINE: Eu sou inocente. Disse isso quando me trouxeram até aqui. Ninguém quis me ouvir.
MARY: Eu estou aqui para isso. Mas eu preciso que você me ajude. Só depende de você deixar este lugar.
CAROLINE: Está bem. O que eu preciso fazer, Doutora?
MARY: Vai ter que se abrir comigo. Não quero que me esconda nada. O meu papel aqui não é te julgar, nem te condenar. Mas eu preciso entender as razões que te fizeram parar aqui.
CAROLINE: Não sei se eu tô preparada pra contar.
MARY: Se esforce.
CAROLINE: O que a senhora quer saber de mim?
MARY: Pra começar, o seu nome.
CAROLINE: A senhora deve saber como eu me chamo...
MARY: Mas eu quero ouvir de você. Seu nome é...
CAROLINE: Caroline.
MARY: Muito bem. Eu tenho que te submeter a algumas perguntas pra avaliar a sua sanidade mental. Data de nascimento?
CAROLINE: Dezoito de fevereiro.
MARY: De que ano?
CAROLINE: Não importa. Já diz o ditado: “quem sabe ser feliz a idade nunca diz”. A única coisa que precisa saber é a data. É o meu dado mais importante.
MARY: Por quê?
CAROLINE: Como “por quê”? Porque atesta que eu sou do melhor signo de todos, aquário.
MARY: Já entendi. Você é aquilo que o Conselho Federal de Psiquiatria chama de “a louca dos signos”?
CAROLINE: “Dos signos” eu não sei. Mas “louca”... Há uma forte possibilidade.
MARY: Sei... Você se considera uma pessoa emotiva?
CAROLINE: Eu? Imagina...
MARY: Consegue se lembrar da última vez que chorou?
CAROLINE: Bom, acho que foi há uns dias... É que eu gosto de preparar uns pratos, experimentar uns temperos novos. A última vez que eu derramei uma lágrima eu devia estar descascando cebola.
Três dias antes...
CAROLINE: (chora ouvindo o rádio e canta a música executada) “As loucuras que eu fiz pra te satisfazer, só pra te ver feliz, pra te dar mais prazer”...
MARY: Você se considera uma mulher passional?
CAROLINE: Na medida do possível. Não vou demonstrar sentimento pra quem não quer sentir. Sou prática, Doutora.
MARY: Mas o crime que te acusaram de ter cometido... Foi por alguma razão passional, não foi?
CAROLINE: Eu não cometi crime nenhum. Já falei.
MARY: Caroline, você... Já amou alguém?
CAROLINE: Continuo amando, Doutora.
MARY: Pode me dizer quem?
CAROLINE: Está olhando pra ela.
MARY: Quero dizer “além de você”.
CAROLINE: Bom, teve... Ah, tinha aquele... O tal de... Não, não é minha praia.
MARY: Nenhuma paixão mesmo?
CAROLINE: Minha vocação não é pra me apaixonar, Doutora.
MARY: Qual é, então?
CAROLINE: Fazer as pessoas se apaixonarem por mim.
MARY: Como faz pra conseguir?
CAROLINE: Não é tão fácil de explicar como é de praticar.
MARY: Então, vamos facilitar a nossa conversa. Me descreva a última pessoa que se apaixonou por você. Pode fazer isso?
CAROLINE: Só isso? Então, tá.
Caroline estava no metrô lotado. Atrás dela, estava Luiz Carlos, que não repara na presença da moça. O veículo corre normalmente, mas freia de maneira brusca e a jovem cai nos braços do olheiro, que fica encantado com a beleza da futura modelo.

(Fundo musical: “Sonhos”- “e de repente eu me vi assim, completamente seu”)
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