Sobre a cama de Ana
Maria, está Otaviano. Ele ajeita sua gravata e põe seus óculos escuros. Do
banheiro, sai sua namorada, com o cabelo molhado e vestida de preto. Ele pega
um pente e entrega à moça.
-Eu tenho que ir.
-Pra onde você vai?
-Vou voltar pra
casa. Eu acho que você merece descansar.
-Tudo o que eu
queria agora... Era uma resposta. Uma resposta sobre o que aconteceu. Um
porquê.
-A gente não manda no
destino, Ana Maria.
-Nós tivemos uma
relação tão conturbada, sabe? Muita coisa entre nós ficou sem ser dita. Até
agora, eu tenho a impressão de que ele queria me falar alguma coisa, além do
socorro.
-Foi tudo muito
depressa. Lógico que ele estava desesperado... Não sei... Tentando
sobreviver...
-Quanto a ele, nós
nunca vamos saber se ele tinha algo a me falar, ou se nós finalmente seríamos
pai e filha... Mas eu tinha o que dizer.
-Ana Maria- toma as
suas mãos- Vamos esquecer as mágoas que existiram entre você e ele. O que isso
vai trazer de bom pra vida da gente?
-Hoje eu estava
esperando ele chegar da empresa pra contar uma notícia que eu recebi do meu
médico.
-Você está bem?
-Eu não poderia
estar melhor. Eu queria que ele, como meu pai, fosse um dos primeiros a saber.
-O que é, Ana Maria?
-Hoje eu estava
preparando um jantar pra te receber e te contar: um fruto... – chora, emocionada-
Um filho de nós dois... Eu estou esperando um bebê. Nosso, Otaviano.
-Você... Gente, eu
sempre sonhei com o dia em que a mulher que eu escolhi pra ser minha me desse
essa bênção.
-E ele vai ser uma
bênção pra gente também.
-Quem sabe ele vai
continuar o que o seu pai fez até hoje? O que ele nos deixou?
-Talvez até melhor.
-Disso eu sei. O meu
filho... Ou melhor, o nosso filho, ele vai ser tão feliz... Do mesmo jeito que
eu quero te fazer feliz.
-Não. Ele vai ser
feliz do mesmo jeito que você já me faz feliz.
O rapaz se abaixa,
acaricia o ventre e Ana Maria e o beija. Os problemas financeiros se resolviam
num único dia. Só era necessário o cinismo.
XXXXX
Rosane sai do
banheiro com o teste de gravidez e vai para a sala. Sua mãe está sentada no
sofá. Levanta os olhos e nota que a filha sofreu um baque.
-Mãe, eu sei que a
senhora não vai poder me dar os parabéns, mas eu sei também que a senhora pode
me escutar. Eu fiz um teste de gravidez... Eu vou te dar um neto. Um filho meu,
minha mãe. Eu vou ter um bebê com ele. Com o...
-Bebê?- Jandir
estava na porta e Rosane não percebeu- Você está esperando um filho, Rosane?
-Jandir, eu...
-É verdade essa
estória? Você vai ter um filho?
-Vou, Jandir. Eu
estou grávida. Acabei de fazer o teste.
O mecânico a abraça,
emocionado.
-Rosane... Um filho
nosso? Eu não acredito. A gente vai ter um filho.
-Deixa eu te
dizer uma coisa.
-Fala, meu
amor.
-Eu sei
que... – desiste de contar a verdade, bastante relutante com a alegria de
Jandir- Que você vai ser o melhor pai do mundo pra essa criança. Eu sei disso.
-Você não tem
noção do quanto eu te amo, Rosane. Ainda mais depois de hoje.
Ele a beija,
ficando de costas para a mãe de Rosane. Durante o beijo, ela abre os olhos e
percebe o olhar de reprovação da mãe por não ter revelado sobre Otaviano.
-Meu filho
vai ter um pai que mereça ser chamado de pai. E esse homem é o Jandir- pensa.
XXXXX
O motorista
de Dalton, Geraldo, está forrando sua cama, já vestido com seu pijama. Ao
chegar até o interruptor, a porta do seu quarto é aberta: trata-se de Otaviano,
também vestindo a roupa de dormir.
-O senhor?
-Eu posso
entrar?
-Vá, entre.
-Com licença-
repara as condições precárias do quarto e não disfarça o descontentamento.
-O senhor não
tinha que ir pra casa?
-Tinha, mas a
Ana Maria pediu pra que eu ficasse. Ela não queria ficar sem a minha companhia,
ainda mais num dia tão difícil como esse. Perder o pai... Eu sei como é esse
trauma, já passei por isso. Entendo o quanto ela está fragilizada. Prometi que
dormiria aqui pra acalmá-la, mas com o tempo, eu vou ocupando um lugar nessa
casa. Isso, é claro, vai se concretizar no dia em que eu me casar com ela.
-Por que o
senhor está me falando essas coisas?
-Você pode não
ser o homem de confiança do Dr. Dalton como eu fui... Geraldo? É esse o seu
nome, não é?
-Geraldo...
-Pois então
eu sei que você levou o seu falecido patrão pra minha casa e ele escutou algumas
coisas a meu respeito que eu faço questão de esquecer.
-O Dr. Dalton
não me disse nada.
-Mas se
exaltou. O suficiente para ter aquele infarto e morrer.
-Juro que eu
não sei o que o senhor disse pra ele, não é problema meu.
-Vamos supor
que seja verdade. Sabe onde arrumaria trabalho se fosse demitido daqui?
-Por favor,
Otaviano, não me...
-Doutor
Otaviano pra você. Eu posso não ser ainda o dono dessa casa, mas sou superior a
você. E eu reparei que o velho Dalton não investia muito na infraestrutura do
quarto dos empregados... Que pena. Mas não se preocupe, Geraldo. Eu pretendo
implantar melhorias aqui e garantir o seu emprego. Basta ficar de boca fechada.
-Eu tenho filho
pequeno... Dr. Otaviano... – diz, contrariado- Eu não posso perder esse
emprego.
-Sabe por que
eu simpatizei contigo logo de cara? Porque você demonstrou que é um homem
inteligente. Pega as coisas no ar. Bom, eu tenho que descansar, e eu acho que
você também. Foi um dia muito tenso pra todos nós. Boa noite, e não se esqueça
do que eu falei.
-Boa noite,
senhor.
Otaviano sai
do quarto e Geraldo, contrariado, olha para a janela. Mesmo sem tê-lo como
patrão, sabia desde então o quanto ele podia ser perigoso.
NOVE MESES
DEPOIS
Rosane volta
da ferira livre carregando duas sacolas de compras e passa por uma banca de
revistas. Admira as fotos dos famosos que está tão acostumada a ver pela
televisão. O jornal do dia anuncia:
-Controle da
“TimBRe” está nas mãos de braço direito de Bittencourt.
-Essa foto é
do Otaviano! Moço, quanto é?
-Um real- diz
o jornaleiro, que recebe o pagamento.
-Obrigada- e
continua a leitura.
-Novo
acionista rouba a cena na “TimBRe”: a gravadora “TimBRe”, responsável pelas
maiores vendagens de discos dos últimos dez anos, sofreu mudanças nos últimos
meses, muitas atribuídas a Dalton Bittencourt (1918- 1994). Antes de morrer,
Dalton deixou suas ações para Otaviano Melo Passos, seu braço direito na
empresa e que sequer imaginava que seria detentor de 60% do controle. Sem saber
o que lhe esperava, o rapaz firmou compromisso com Ana Maria Bittencourt, dona
de 30% das ações (os outros 10% são distribuídos entre cinco sócios) e ela, em
pouco tempo, decidiu se afastar da “TimBRe”, pedindo ao noivo que a
representasse legalmente. Abalada desde o falecimento de seu pai, Ana protelou
seu enlace matrimonial com Otaviano, mas o grande dia chegou: eles se casam
nessa quinta (10) em uma cerimônia discreta na Basílica Central. Não faltarão
repórteres querendo saber detalhes da vida a dois, mas uma pergunta tem feito a
cabeça de todos que estarão na festa: como Otaviano conseguir ascender de
maneira tão rápida? A resposta, segundo a noiva, só o amor que os une explica.
-Hoje... Ele
vai casar com ela hoje... Mas eu não vou deixar, não esperando um filho dele...
Moço, eu posso guardar minhas coisas aqui? Eu volto logo.
-Pode ir, eu
guardo aqui.
-Obrigada- corre
para pegar um ônibus com as poucas moedas que lhe restam...
XXXXX
Na basílica,
Otaviano e o padre estão esperando pela chegada de Ana Maria, mas o rapaz não
suporta mais tanta ansiedade.
-O que houve,
hein? Por que ela não chega?
-É normal a
noiva se atrasar no dia do casamento, meu filho. Fique calmo.
-Calmo...
Calmo como? Tudo bem que as noivas se atrasam, mas no meu casamento? Tanto que
estou esperando por isso! Vem cá, eu quero um copo d’água, onde tem, hein?
-Na
sacristia, logo à esquerda. Eu pego pra você...
-Não. Deixa
que eu pego.
-Você não
pode sair daqui. Você é o noivo.
-Já esperei
tempo demais, padre. A Ana Maria pode esperar também. Só tenho certeza de uma
coisa: dessa basílica eu só saio casado. Com licença- passa, irritado.
Ao chegar à sacristia,
encontra um bebedouro e toma um gole d’água. Dá de cara com Rosane.
-O que você
está fazendo aqui? Vai embora, Rosane.
-O padre me
deixou entrar. Eu disse que precisava de um momento pra me reconciliar com Deus.
Mesmo tendo mentido, vai ver eu preciso disso mesmo, não é?
-Você está
louca? Quer me prejudicar, quer? Só que você não vai conseguir! Nunca!
XXXXX
Geraldo traz
Ana Maria e Sônia no carro. A empregada desce e elogia sua protegida.
-Você está
linda, minha filha.
-Eu queria
tanto que meu pai estivesse aqui, Sônia...
-Não vamos
mais atrasar, já não chega esse trânsito que a gente enfrentou?- aconselha
Geraldo.
-Certo,
Geraldo. Eu vou lá para o altar e você vem comigo- avisa Sônia. Ana Maria fica
na porta da igreja, vendo seus empregados correndo até o altar. Os convidados
se levantam assim que percebem a presença da noiva. Ela estranha que a Marcha Nupcial
não toca, mas dá alguns passos.
Sônia e
Geraldo percebem que o noivo não está presente e Ana Maria grita:
-Onde é que
está o Otaviano?- tendo como resposta a expressão de dúvida dos presentes.
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