-Não... Não,
eu não me lembro de conhecer nenhuma mulher chamada Rosane.
-Como não,
Otaviano?- Ana Maria o surpreende- Eu me lembro muito bem da Rosane- Ela
apareceu no dia do nosso casamento, na sacristia. Foi falar com você. E estava
grávida, devia ser do Igor.
-Mas... Onde
está a Rosane? Por que ela não veio buscar os filhos dela?
-Rosane
morreu ontem, num acidente de carro- explica Jandir.
-Coitada. Era
uma boa pessoa. Uma mulher admirável. Lutava muito pela mãe, fazia tudo dentro
de casa, se virava sozinha...
-Sozinha,
não. Ela teve um marido que ficou todo o tempo do lado, cuidando do fi... Dos
dois filhos.
-Claro. Eu
peço que me perdoe, Jandir.
-Eu tenho
coisa demais pra perdoar, não acha? Minha mulher está no IML agora, eu não pude
enterrar porque os meus filhos foram tirados de mim. Tirados pela sua mulher!
-É mentira-
Ana Maria se vira para o delegado- um homem que coloca os filhos pra arranjar
dinheiro para ele beber não pode ter nenhum tipo sentimento pela falecida
esposa. Delegado, nem Igor nem Betina puderam chorar a morte da própria mãe
porque esse tal de Jandir já tratou de torná-los meninos de rua. É esse o tipo
de pai que o senhor defende, senhor delegado? Um homem capaz de cometer uma
atrocidade a uma criança e a um adolescente, que são sangue do seu sangue?
-Dona Ana
Maria, eu não sou nenhum juiz para decidir com quem os meninos vão ficar. Não
cabe a mim decidir isso. Mas eu estou aqui para que a lei seja cumprida. Jandir
é o pai desses garotos, e eles têm que vir comigo para casa.
-Não vou
voltar pra casa.
-Igor, meu
filho...
-Não me chama
de filho! Pode parar de mentir pro delegado, pai. Se dependesse do senhor, a
moça nunca ia ajudar a gente, a gente ia desmaiar de fome e o senhor ia pegar o
dinheiro pra ir pro bar. Se o pessoal da polícia não vai perguntar nada, eu
falo: ele queria explorar a gente.
-Seu Jandir,
sua situação está se complicando. O senhor forçou seus filhos a trabalhar na
rua? O que esse garoto está dizendo é verdade?
-É. É isso
mesmo. Eu obriguei os dois a trabalhar na rua. Nós não temos nada dentro de
casa e eu achei que...
-Seria melhor
que os dois trouxessem comida pra dentro de casa?
-Minha irmã é
pequena, seu delegado, mas ela não mente. Pode perguntar que ela vai responder
a mesma coisa que eu.
-Eu devia
colocar o senhor atrás das grades por exploração de menores. Mas em respeito à
sua dor e à dor de seus filhos, eu vou relevar isso. Quanto à senhora, dona Ana
Maria, eu peço que entre imediatamente em contato com o Conselho Tutelar.
-Mas o senhor
não pode deixar os meus filhos na mão dessa louca!
-E onde eles
vão parar? Nas suas? Seu Jandir, não me faça rir. Vamos embora daqui.
-Eu não vou
deixar os meus filhos. Não me impeça, por favor...
-O senhor vai
realmente se queixar novamente? Essa mulher está salvando essas crianças de um
pai bêbado, que é capaz de tudo por dinheiro.
-Não vai me
proibir de levar os meus filhos pra casa de jeito nenhum!
-Meça as suas
palavras, se não quiser ser preso por desacato à autoridade. O senhor sabe que
tenho mais policiais lá fora e a família da Senhora Bittencourt para
testemunhar contra qualquer ofensa que me fizer! Vamos embora daqui agora!
-Eu vou
comunicar ao Conselho Tutelar, não se preocupe.
-Até logo.
Boa tarde a todos.
-O senhor não
vai nem deixar eu me despedir dos meus meninos?
-Seu Jandir,
saia comigo de uma vez por todas- contrariado, o mecânico obedece ao delegado.
-Sônia?
-Sim, Ana
Maria?
-Leva a
Betina e o Igor pra tomarem um banho. Eu preciso ter uma conversa com o
Otaviano.
-Menina...
-Por favor,
Sônia.
-Está bem...
Vamos, meninos.
-Até mesmo
dois garotos são capazes de te tirar do sério? O que pensa que vai conseguir
com isso? Se for me afastar de você, é bom tomar cuidado. Não é nada bom pra
sociedade saber que somos um casal em crise, que vive se ameaçando, que mina a
própria relação.
-Eu não quero
esses pivetes na minha casa! Já deixei isso bem claro. Ou será que sua intenção
é tentar corrigi-los, já que não consegue fazer isso com o nosso filho?
-Nunca mais
se refira ao Yuri como exemplo de péssima educação. Ele não escolheu os pais
que tem, e se tivesse esse poder, certamente não escolheria você como pai. Se
você acredita que se esconder atrás de um cartão de crédito é ser afetuoso, vá
pro inferno. Não me ensine como é ser mãe. Qualquer ser humano que tenha um
pingo de amor sabe cuidar de um filho, como eu sei do meu- vai para a cozinha,
deixando Otaviano transtornado.
XXXXX
Porcelana e
Yuri entram numa casa velha, cheia de garotos usuários de drogas.
-Sai todo
mundo daqui!
-Porcelana,
espera aí! A gente... – um deles ainda tenta argumentar, até que o canivete
seja apontado para todos.
-Já mandei
sair! Anda logo! Fora daqui!
Assustados,
todos obedecem à temida pessoa. Yuri não entende nada sobre o lugar está.
-O que você
vai fazer comigo?
-Senta aí!-
joga-lhe contra uma cadeira- Senta aí e me escuta- tira o capuz que está
usando, revelando que é Lana.
-Vai falar o
quê, marginal? Que vende droga? Que é mentira essa historinha de ONG, de menor
que vive fumando... Eu já ouvi meu pai falando uma vez que vocês têm o apoio da
gravadora. Vai dizer o quê agora? Que o teu marido também é traficante, que nem
você?
-Eu mandei
você ficar quieto pra me escutar- esbofeteia o adolescente- Você vai ficar de
boca fechada sobre isso. Vai ser melhor pra você!
-Quem disse
que eu vou calar a minha boca?
-O meu
marido, Frederico, não tem nada a ver com isso!
-Nada... Vai
ver ele nem seu marido é. Se duvidar, até teu casamento é de fachada.
-Como o dos
seus pais?
-Olha aqui,
sua...
-Se ofendeu,
querido? Eu ainda nem comecei! O meu marido não pode saber que eu faço isso.
-E como é que
você vai calar a minha boca?
-Você já não
está fazendo isso se drogando, infeliz? Sua família louca te procurando, e você
fumando em alguma esquina escura, durante uma madrugada inteira, causando
desespero em todos?
-Mentira!
-Pode até ser
que você não tenha ingerido nada ontem, mas hoje você comprou. Das minhas mãos.
E não veio atrás de mim só pra me desmascarar. Veio porque não se aguentou de
vontade de fumar de novo. Você não sabe da minha vida, não sabe o que eu tive
que passar pra fazer isso hoje.
-Olha aqui, você
não me enrola. Você sempre teve dinheiro. Como o seu marido. Eu vi ontem lá em
casa.
-Nem sempre
foi assim, moleque. Muito mais nova do que você, eu assaltava as pessoas pra
conseguir dinheiro pra fumar. Nem comer eu queria. O Frederico foi quem quis me
tirar dessa vida.
-E conseguiu?
-Nunca. Nem
acho que ele vai conseguir. O meu vício é mais forte do que eu.
-Eu não acredito
em você. Pra mim, você está mentindo.
-Pois então,
me escuta, porque eu só vou falar uma vez: contando essa estória pra alguém, é
a sua mãe que você perde. Eu não vou fazer nada com o Dr. Otaviano. Já deu pra
ver que se tocar num fio de cabelo dele, você não se importa. Você é um cara
bem transparente, Yuri. Não esconde o nojo que sente do cara que te botou no
mundo, que te sustenta...
-Mas que não
me deu amor.
-Agora sai
daqui. Pensa bem no que vai fazer. A cada vez que você pensar em chamar a
polícia, é um minuto de vida a menos dela. Cuidado, Yuri- o garoto sai da casa-
Eu vou calar a boca desse moleque de algum jeito.
XXXXX
Sônia espera
no quarto com Betina que Igor saia do banho. O garoto vem, enrolado numa toalha
branca.
-Pronto,
agora é sua vez de ir pro banho. Mas não demora pra não gripar, viu?- a garota
vai ao banheiro.
-Dona Sônia,
eu não tenho roupa. Como é que eu faço?
-A Ana Maria
separou umas roupas que o Yuri não usa mais. Pode vestir.
-Ele vai
ficar bolado com isso?
-De jeito
nenhum, menino. Pode vestir.
-Então, tudo
bem- Igor fica de costas e revela uma cicatriz em suas costas.
-O que é isso
nas suas costas, Igor?
-Marca de
nascença. Feia demais.
-Não foi
nenhuma queda? Não é cicatriz?
-Que nada. Eu
jogava muito bola com os meninos da minha rua, o povo até pensava que fosse
algum tombo. Mas tenho isso desde que eu nasci. Minha mãe disse que meu avô
tinha uma igual.
-Bem, eu...
Eu vou sair do quarto pra você se trocar.
-Obrigado,
dona Sônia.
A governanta
fica apavorada e vai até o jardim, onde senta num banco.
-Mas é a
mesma marca do Yuri...
E se lembra
de um diálogo tido entre Otaviano e Ana Maria, por consequência da aparição de
Jandir na mansão, acompanhado da polícia.
-Não... Não,
eu não me lembro de conhecer nenhuma mulher chamada Rosane.
-Como não,
Otaviano? Eu me lembro muito bem da Rosane- Ela apareceu no dia do nosso
casamento, na sacristia. Foi falar com você. E estava grávida, devia ser do
Igor.
-Não é
possível. Só pode ser uma coincidência. Mas o Dr. Otaviano já conhecia os pais
do Igor. Como ele pode ter a mesma marca das costas do Yuri?
XXXXX
Frederico e
Ana Maria estão na ONG, vendo alguns adolescentes jogarem bola.
-Muito
obrigada por você ter procurado o meu filho.
-Eu entendi o
seu desespero. Realmente, foi um momento de muita tensão para todos. Saber de
tudo daquela maneira.
-Eu queria
agradecer à sua esposa também. Na ocasião, eu sequer lembrei de perguntar o
nome...
-Lana. Mas
ela não está. Provavelmente deve estar tentando conseguir alguém que nos ajude.
Como tentamos fazer ontem à noite, quando fomos à sua casa.
-Deve ser
difícil conseguir alguém que olhe por esses meninos. Da mesma forma, é difícil
esquecer toda a decepção que eu senti ontem.
-Me perdoe a
indiscrição, mas... O que me pareceu foi que a relação de vocês vinha se
desgastando.
-O Otaviano
foi um homem maravilhoso. Mas isso foi nos primeiros anos do nosso casamento.
Depois, foi tudo se complicando. Tão lentamente... Tão naturalmente que, quando
eu dei por mim, nós já estávamos enfrentando uma crise familiar.
-Quem sabe se
o seu casamento tem solução? Nada é impossível, se o Otaviano tiver sido
realmente destinado pra você.
-Nesse
momento, eu queria muito crer nisso.
-A única
coisa que não tem remédio, Ana Maria, é a morte. Enquanto você tiver seu marido
e seu filho do lado, deve lutar por uma família que se una.
-Bonito o seu
modo de ver as coisas, Frederico. Sua fé é impressionante, comovente. Daria tudo
nesse momento pra ter uma perspectiva tão otimista quanto a sua.
-Eu lido com
jovens que podem se recuperar do vício em drogas. Mas nem todos conseguem
sair. Alguns nem querem se livrar delas,
essa que é a verdade. Mas o que eu posso fazer? Só o que a vida me permite
fazer.
-Não acho que
eu possa fazer alguma coisa pela minha família. Talvez eu nem queira. Minha
preocupação não é mais o Otaviano, e sim o Yuri. Eu não sei até onde essa falta
de dinheiro pode influenciar o comportamento dele. Mas eu vim falar de outro assunto.
-Do que se
trata?
-Eu queria
saber se você tem algum contato do Conselho Tutelar.
-Sim, claro.
Mas você pode adiantar sobre o assunto?
-Dois
garotos. Eu os encontrei na rua, com fome, sendo explorados pelo pai como se
fossem meninos de rua.
-Mas como tem
gente capaz disso, Ana Maria?
-E você não
sabe do pior: esse homem veio com a polícia hoje, na minha porta, exigir as
duas crianças. Por sorte, o delegado pediu pra que eu procurasse o Conselho Tutelar
e esclarecesse a situação. Por enquanto, eles estão em minha casa. Eu os deixei
sob os cuidados da Sônia, a minha governanta. Será que você pode me ajudar?
-Claro que eu
posso, Ana Maria. Eu vou procurar uma amiga que trabalha lá e explicar o seu
caso.
-Desde hoje
eu me pergunto por que esses dois foram aparecer na minha casa logo hoje. Por
que tive tanta intenção de trazê-los em meio a essa batalha que virou a minha
vida quando o Otaviano revelou a verdade?
-Eu não posso
resolver os seus problemas. Mas tem uma coisa que pode resolvê-los: a fé. Não
desista desses meninos, Ana Maria. Confie que vai dar tudo certo. Se eles
apareceram agora, é porque talvez a sua prova esteja perto do fim.
O sorriso
reconfortado de Ana Maria deixa Frederico mais tranquilo. Ele não nota que a
troca de olhares deixa Lana- que chega sem ser percebida- enciumada.
XXXXX
Jandir está
novamente bebendo, em casa, quando alguém bate a sua porta. Assustado, ele
pensa que se trata da polícia novamente, mas dá um suspiro e decide enfrentar a
situação permanecendo na mentira, uma vez que está convencido de que é o
delegado. Mas fica alterado quando vê de quem se trata.
-O que é que
você está fazendo aqui?
-Não vai me
convidar pra entrar, Jandir?
-Só quando a
sua mulher devolver os meus filhos- Jandir é empurrado por Otaviano, que logo
entra na casa.
-Mas as
coisas estão bem diferentes por aqui. No meu tempo, isso daqui não tinha nem
primeiro andar. Você fez um bom trabalho.
-Principalmente
dando conta de uma mulher e dois filhos. Você pelo visto não teve a mesma sorte
que eu.
-Se engana, Jandir.
Eu tenho dinheiro. Pra mim, é sinônimo de felicidade.
-Um dia pode
acabar. Como acabou a minha família. Assim, de repente.
-Com o tempo,
você pode recuperar seus filhos. E aí, meu querido, você pode reconstruir sua
vida.
-Fala de uma
vez o que você quer e se manda daqui.
-Eu quero que
você faça papel de vítima quando for procurado pelo Conselho Tutelar. Todo
mundo tem que acreditar que você é a vítima da situação, e não a Ana Maria. Você
precisa manter os meninos afastados da minha família.
-Por que está
me falando isso? Qual o seu interesse nisso?
-Jandir, eu
não vou tolerar que meninos venham morar na minha casa. Eu não estou disposto a
fazer nenhum tipo de caridade. Evite que isso aconteça.
-Sua mulher
não pensou em separar os filhos de um pai... Ou será que, no fundo, o que ela
queria era trazer o filho do grande Otaviano Melo Passos pra junto dele?
-Do que você
está falando?
-Não minta.
Eu sei que você percebeu na hora em que eu falei da Rosane! Igor é seu filho! O
filho que você abandonou há doze anos pra casar com a Ana Maria! É por isso que
você quer tanto tirar ele de lá, não é?
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