-Você perdeu
a noção, Otaviano? São crianças. Precisam de um prato de comida, eu já pedi à
Sônia que providenciasse o quanto antes.
-Pediu à
governanta para servir dois meninos de rua?
-A gente não é
menino de rua!
-Como não,
garoto? Olha pra roupa que vocês estão vestindo!
-Meu pai
mandou a gente colocar isso. Ele sujou a roupa e cortou- justifica Betina.
-Isso pouco
me interessa.
-Não seja
rude! Esses meninos não têm culpa do pai que têm, muito menos do seu humor.
-Sônia!-
Otaviano chama.
-Sim, doutor?
-Você
preparou um prato de comida pra esses dois?
-Sim, senhor.
Já ia chamar os meninos pra eles virem comigo.
-Por favor,
em vez de levá-los à mesa, leve-os até o portão da nossa casa. E não se esqueça
de dar ordens aos seguranças para que tranquem. Quanto à comida, despeje num
prato para os cachorros.
-Otaviano, você
está passando dos limites. É só por alguns minutos, depois eu vou levá-los ao
Conselho Tutelar.
-Ana Maria,
pouco me importa como foi que você os encontrou ou o que pretende fazer com
eles.
-Nada que
esteja relacionado a mim tem importância pra você. Nunca teve.
-É esse o
truque? Agora vai usar esses garotos para serem plateia das suas crises?
-Pode ficar
certo de que eles não vai sair daqui.
-Vamos ver se
não.
-Moça, a
gente não quer causar problema nenhum. Eu e Betina vamos voltar pra casa...
-Imagina,
rapaz. Imagina se vocês são capazes de nos trazerem um problema. São
insignificantes demais pra isso.
-Eu não
admito que você se refira a eles dessa maneira.
-Como é
possível que, mesmo com todos esses problemas, você decida bancar a boa
samaritana?
-Pelo menos
na minha casa, eu tenho liberdade pra fazer o que você não me deixa fazer na
sua empresa.
-Cara,
relaxa. Os meninos só estão com fome- Yuri provoca o pai, fingindo estar do
lado dos meninos.
-Não fale
comigo nesse tom! Já não basta ter nos matado de preocupação a madrugada toda?
-De boa,
deixa eu te falar: eles comem e vão embora daqui. Se bem que...
-O quê, meu
filho?
-O tal conselho,
o Tutelar... Eles vão mandar eles de volta pra casa, pro pai que manda eles pra
rua. Se for assim, eles não podem ir pro Conselho. Melhor essa galera ficar
aqui.
-Você perdeu
o juízo? Eu não quero...
-Ótima ideia,
Yuri. Eu vou falar com o meu advogado para que ele legalize essa situação.
-Você vai
pedir a custódia desses meninos agora? Dois pivetes que você encontrou na rua,
sabe-se lá fazendo o quê?
-Eu não vou
deixar aquele homem maltratar os dois.
-Só que
aquele homem é o pai. Ele tem todo direito de fazer o que quiser.
-Tipo jogar
café quente na cara deles ou assinar contrato sem ler?
-Yuri, cala
essa boca!
-Responde ao
teu filho, Otaviano: é isso que você quer? Que eles sofram coisa pior do que as
que Yuri e eu sofremos por sua causa?
-Já
entendi... É pra me provocar. Tudo é de propósito.
-Entenda como
quiser. Betina e Igor vão ficar aqui. E você pode colocar a gravadora no
buraco, já não me importo. Na minha casa, você não manda. Venham, meninos- Yuri
e Sônia acompanham os três.
-Esse
garoto... Ele me lembra alguém... Não sei quem é, mas eu não gosto nem um pouco
dele. Essas crianças não vão ficar na minha casa. Eu já sei o que vou fazer.
XXXXX
Betina e Igor
estão almoçando junto com Yuri e Ana Maria.
-E o almoço?
Está bom?- pergunta Sônia.
-Muito bom-
reponde Betina.
-Gostoso
mesmo- Igor confirma- Parece com o almoço que a minha mãe fazia.
-Fazia? Por
quê?- Ana Maria fica curiosa- Não faz mais? Saiu de casa?
-Ela foi pro
céu- Betina diz, causando um breve silêncio na sala.
-Ontem.
Acidente de carro- esclarece Igor.
-Eu sinto
muito... Como é que eu posso mandar esses meninos de volta pra um pai daqueles,
Sônia?
-Ele sempre
foi carinhoso com a gente. Bebia muito, mas gostava da gente. Só que desde hoje
de manhã, ele mudou muito. Rasgou a roupa da gente, sujou... Pra gente pedir dinheiro
na rua pra comer.
-Vem cá, e
esse cara não tem um trampo, não?- Yuri questiona o irmão.
-Trabalha
numa oficina com o amigo. Mas não aparece lá todo dia, não. Fica bebendo,
enchendo a cara. Tinha muito ciúme da minha mãe.
-Nossa, esse
homem parece mais ser padrasto do que pai de vocês dois. Ou então é um pai como
o meu.
-Yuri, por
favor, não vamos perturbar os meninos com os nossos problemas pessoais.
-Eles
chegaram aqui não tem nem quinze minutos e o Otaviano já queria dar a comida
deles pros cachorros da segurança. “Por favor” quem fala sou eu, mãe. Eu vou
pro meu quarto.
-Você mal
tocou na comida, meu filho.
-Sem fome.
Depois eu vou pra geladeira beliscar alguma coisa- beija-lhe, mas deixa a mãe
preocupada- A gente se vê, galera.
Betina acena
para Yuri e continua comendo. Igor percebe que há algo errado.
-Pra onde ele
vai?
-Pro quarto,
Igor. Ele mesmo falou.
Yuri passa
pela sala e sai de casa sem que ninguém perceba.
XXXXX
O delegado
atende Jandir em sua sala.
-Sente-se, Jandir.
É algo relacionado à sua mulher?
-Não, é sobre
Igor e Betina, os meus filhos. O senhor imagina que eu estava passeando com
eles, pra ver se eles se distraem um pouco depois da morte da mãe, e... -
simula um choro.
-E o quê?
-Uma mulher,
muito bem-vestida, viu os dois correndo na rua, e quase os atropelou. Ela ficou
indignada, disse que eu tinha soltado os dois e queria chamar a polícia. Disse
que iria chamar a polícia porque eu estava sendo displicente com meus meninos e
os levou no carro.
-E como era
essa mulher?
-Alta, loura,
vestida de preto, com salto alto, olhos azuis...
-Seu Jandir,
por que uma desconhecida leva os seus filhos e o senhor não faz nada pra
impedir?
-Eu ainda
gritei, chamei as pessoas que estavam passando e...
O telefone
toca.
-Só um
momento.
-O senhor vai
deixar de me atender? Meus filhos correndo perigo desse jeito?
-É só um
minuto, seu Jandir- atende- Alô?
-Por acaso, a
polícia está procurando duas crianças de rua?- fala Otaviano, numa ligação
feita diretamente de seu quarto.
-Quem está
falando?
-Minha
identidade será mantida em sigilo. Uma delas não é um garoto, de
aproximadamente doze anos, chamado Igor?
-Sim. E a
outra criança?
-Bom, a outra
eu não sei o nome, mas é uma menininha. Bem menor do que ele. Eu sei que Ana
Maria Bittencourt é o nome da mulher que os tirou do pai em plena rua.
-Como posso
ter certeza de que essa informação é verdadeira?
-Ela se
recusa a devolvê-los. Quem sabe se a polícia, aparecendo na casa dela, a faz
devolver os garotos?- desliga.
-Alô? Alô!
-O que houve?
-Achamos suas
crianças. Um telefonema anônimo avisou que Ana Maria Bittencourt está em posse
de seus dois filhos.
-Ana Maria?
-Sim, vamos
até a casa dela agora.
XXXXX
Yuri volta à
escola e encontra Porcelana novamente vendendo drogas. Para tirar uma dúvida,
ele se aproxima do traficante e o aborda.
-Eu sei quem
você é.
-Como é a
história?
-Eu sei quem
você é.
-Qual é a tua
cara? Ficou chapado de vez?
-Foi na minha
casa, dizendo que estava precisando de ajuda pra ONG... Ajudar drogados, é? Ou
quer fazer os drogados se acabarem de vez?
Com uma
navalha, Porcelana agarra o adolescente e o leva para o fim daquela rua.
-Você não vai
abrir a boca pra ninguém. Senão eu acabo com você e com a sua família. Você
pensa que eu estou brincando, moleque? Se você me denunciar, contar alguma
coisa pra polícia, você e toda aquela corja morrem, entendeu? Vem comigo!
-Onde é que você
vai me levar?
-Cala essa
boca e vem comigo- puxa-lhe, apontando o canivete para o pescoço.
XXXXX
Sônia vai
atender a porta. Otaviano e Ana Maria, junto com os meninos, também conferem de
quem se trata.
-Ana Maria
Bittencourt?
-Sou eu, quem
é o senhor?
-Sou da polícia.
Recebi uma denúncia anônima de que a senhora estava em poder de um adolescente
e uma menina.
-É verdade.
Eu os trouxe pra casa para cuidar deles.
-Mentira!-
Jandir entra na casa.
-Coimo o
senhor se atreve a entrar desse jeito na minha casa?
-Eu estou com
a polícia, minha senhora. Agora a senhora vai ter que devolver os meus dois
filhos.
-Pra quê? Pro
senhor explorá-los? Pra mandar eles trabalharem pra sustentar o seu vício, e
depois ameaçá-los de uma surra, como queria fazer hoje de manhã?
-Calma,
senhor delegado- Otaviano tenta disfarçar- Só pode estar havendo algum engano.
Minha mulher seria incapaz de...
-Foi você?
Você ligou pra polícia e disse que os meninos estavam aqui, Otaviano?
-Otaviano?
Você é o Otaviano que morava na comunidade da Vila Velarde há uns anos?- Jandir
começa a se lembrar do antigo vizinho.
-De onde você
me conhece?
-Eu sou o pai
dos meninos, e eles são os filhos da Rosane. Não é possível que você não se
lembre dela- provoca o mecânico.
-Rosane... –
Otaviano lembra do acidente no qual havia se envolvido no dia anterior.
-O senhor
conheceu a minha mãe?- Igor pergunta, e agora ele presume que há um motivo
maior para afastá-lo de sua casa, junto com Betina.
-Esse menino
é meu filho. O filho da Rosane- conclui.
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