-Por que você está falando com seu pai desse jeito,
Marina?
-Porque eu não vou deixar que ele fale o que bem entender
de mim, Mãe. O que eu sei sobre ele é muito pior do que eu fiz.
-De onde você tirou que eu tenho uma amante, sua infeliz?
-Ah, o senhor quer convencer todo mundo aqui de que eu tô
dizendo uma mentira?
-É lógico que você está mentindo! E eu não vou admitir
que você levante um falso desses contra mim!
-Mas vai admitir, porque eu escutei o dia que ela ligou
pra cá.
-Quem ligou, Marina?
-Laura, você vai dar ouvidos a uma calúnia dessas? Essa
garota não sabe o que diz, fica inventando qualquer coisa pra me desmoralizar
porque eu não aceito o que ela faz com todos nós! Está completamente fora de
si!
-Não só eu, Pai. A Olga também tava.
-Olga? Quem é Olga, minha filha?
-Olga é a amante que meu pai tem. Ou melhor: tinha, já
que depois de descobrir que ela tem AIDS, faz de tudo pra nem falar com ela!
-Você vai retirar tudo o que está dizendo de mim, Marina!
-Nem uma vírgula! Quando eu escutei ela ligando pra cá,
achei a voz dela parecida com a da médica que provocou meu aborto.
-Definitivamente, você ficou louca!
-Louca eu tava quando fiquei com medo de você, da sua
ameaça de me expulsar de casa!
-Marina, o que o seu aborto tem a ver com o que estamos
falando?
-Tudo, Mãe. A amante do meu pai é a médica que trabalha
na clínica que ele me levou- Marina vira o rosto para Jorge- Não foi o senhor
mesmo que estranhou que eu saí de casa quando ainda tava de cama? Foi porque eu
ouvi a sua ligação e te segui até o restaurante onde ela marcou o encontro.
-Jorge, você me disse que tinha falado com um amigo seu
da polícia e contou a situação da nossa filha. Disse que ele te indicou uma
clínica pra fazer o procedimento... Como é que você conhece a médica que tirou o
filho da Marina?
-Viu? Você já está destemperada! Dando ouvidos a tudo que
essa mentirosa diz! Por acaso você tem ideia do que vale a palavra dela? Essa
garota te passou a perna, transava com um desconhecido sem que você se desse
conta!
-Tô impressionada! Juro, eu tô impressionada com a sua
cara de pau!
-Marina, cala essa boca!- Jorge levanta a voz mais uma
vez.
-Lá no restaurante, quando ela te contou que era
soropositiva, você negou que ela tivesse infectada porque AIDS só quem tinha
era homossexual! Mas quando você se deu conta de que a Olga nunca foi só sua,
que dormia com quem bem entendesse, seu mundo desabou de vez, não foi? A
coitada até achou que você fosse ficar do lado dela, mas você foi tão hipócrita
que... Sabe o que ele disse pra ela, Mãe? Que ela não só acabou com a vida
dele, mas também com a sua, porque existe mesmo a possibilidade de ele ter se
infectado! Será que você ia mesmo contar pra ela que pode ter o vírus?
-Eu vou acabar com você, desgraçada!- Jorge parte para
cima da filha com fúria, mas Laura e Marília impedem que a moça seja agredida,
aos prantos.
-Sai de perto dela! Você não toca na minha filha, ouviu
bem?
-Não acredito que você vai dar ouvidos às sandices dessa
menina! Será que não está claro o que ela pretende? Jogar a culpa nos outros pelo
que é de responsabilidade dela!
-O que tem de verdade nisso que ela falou, Jorge?
-Nada! Marina está mentindo, tentando me desmoralizar
porque sabe que eu não tenho medo nenhum do que ela alega ou faz!
-Quer tirar a prova, Mãe? Então, a gente vai pra clínica onde
ela trabalha!
-Não vão a lugar nenhum!
-A Olga não tem mais nada a perder. Acha que ela vai
calada só porque você quer? Com o ódio que ela tá de você, é lógico que ela vai
contar a verdade. Não tem como fugir disso, Pai!
-Se uma de vocês sair por aquela porta, pode ter certeza
de que não vão mais entrar aqui! Isso vale principalmente pra você, Laura!
A dona de casa se aproxima do marido, atordoada, e
declara.
-Se fosse uma simples acusação da Marina, eu entenderia a
sua revolta, Jorge. Mas ela não seria capaz de tamanha leviandade.
-A garota que transou com um homem com consentimento e
mentiu pra polícia não é capaz de mentir? Tem noção do que você está falando,
débil mental?
-Não fala assim comigo!
-Falo do jeito que eu quiser, eu sou seu marido,
esqueceu?
-Mas não o dono da minha vida! Você pode ter estragado a
vida da Marina, mas não vai fazer o mesmo comigo e com a sua outra filha!
-Tomou partido dela mesmo, não foi? Como você é patética
fazendo o papel da mulher traída... E se eu te traí, vai fazer o quê? Por acaso
esse não é um direito que me cabe?
-Como me cabe também? Ah, não, eu esqueci que não posso
fazer isso. Afinal, você é homem, não é?
-Você não se atreveria...
-Mas me atrevo a confrontar essa mulher e saber a
verdade.
-Laura, eu já disse que se você sair por aquela...
-O que é? Tem medo de que eu descubra o caso de vocês ou
que você é aidético?
Jorge responde à provocação com uma bofetada contra
Laura. Marília ampara a mãe.
-Nunca mais se atreva a falar comigo desse jeito,
entendeu?
-Agora, sim. Colocamos todos as cartas na mesa,
conseguimos tirar as máscaras. Você não vai passar disso, Jorge: de um
brutamontes que tenta esconder seus erros com agressões, físicas e verbais! Se
eu tinha alguma dúvida sobre procurar ou não essa mulher, agora eu vou com toda
a certeza do mundo!
-Ainda não aprendeu, Laura? Pois eu vou te ensinar uma
coisa...
-Não bate nela!- Marília surpreende ao enfrentar o pai
pela primeira vez- O senhor nunca tocou na minha mãe, mas essa vai a última vez
que faz isso, entendeu? Se você não tem nada a esconder, deixa a mamãe provar
que Marina tá inventando tudo isso!
-Ele sabe que a Olga não vai se privar de contar a
verdade, Marília. A decisão de saber o que eu sei tá nas mãos da senhora, Mãe.
-Já sabe o que vai acontecer se você sair daqui
acreditando nas invenções da Marina, Laura.
-Não, Jorge. Você não pode descer tão baixo como fez
hoje, quando encostou a sua mão em mim. Mas eu vou te dar um voto de confiança:
vou atrás dessa mulher e provar a sua inocência.
-Não se atreva a sair!
-Só se você me matar antes!
-Mãe, por favor, desiste dessa ideia- aconselha Marília.
-Se você quiser ficar, que fique. Mas eu vou atrás da
verdade.
-Então, vai, Laura! Vai! Confia na menina que mentiu num
depoimento, que engravidou de um desconhecido, que tinha um relacionamento bem
debaixo do seu nariz. Vai. Mas eu garanto que você vai se arrepender.
-Nem ouse me colocar pra fora de casa, porque daqui eu só
saio morta! Eu só vou repetir uma vez, Jorge: você destruiu a vida da Marina,
mas eu não vou deixar que o mesmo aconteça com a nossa família. Eu não vou
passar a vida inteira pagando pelos seus erros, ouviu? Vamos, Marina.
-Vamos, Mãe.
Marília fica na sala, a sós com o pai, que está com a mão
no rosto, desnorteado?
-Isso é verdade, Pai? Você tem AIDS?
-Marília, sai daqui! Sai daqui, antes que eu faça com
você uma besteira pior do que eu fiz com a sua mãe! Vai pro teu quarto! Dá o
fora daqui!
Sozinho na sala, Jorge começa a quebrar os objetos que
decoram o ambiente. Marília, agora trancada no quarto, ouve o barulho da
destruição e fica apavorada com mais uma atitude violenta praticada por seu
pai.
De volta à clínica na qual realizou o procedimento
abortivo, Marina sente receio de entrar.
-Espera, Mãe.
-O que foi, minha filha?
-Esse lugar... Não pensei que tivesse que voltar aqui.
-Agora você vai até o fim, Marina. Vamos entrar.
Ambas encontram Olga organizando alguns prontuários na
recepção do local. A médica está de costas para mãe e filha.
-Olga?- brada Laura, assustando a dona da clínica
clandestina.
-Quem vocês estão procurando?
-O que foi? Não lembra mais o meu rosto?
-Desculpe, eu atendo muitas pessoas aqui.
Você é minha paciente?
-Melhor do que isso: sou a filha mais nova do
Jorge. Isso te lembra alguma coisa, Olga?
-Meu nome não é Olga, é Gilda Sandoval. Não
está vendo no meu jaleco?
-Não precisa mentir pra minha filha, ela sabe
que seu nome verdadeiro é Olga.
-Sua filha?
-Sou Laura, a esposa do Jorge. Será que a
gente pode entrar? Eu preciso conversar com você.
-Sobre o quê? Eu já não tenho mais nada a ver
com o Jorge.
-Porque ele não te quer mais, desde que
descobriu da sua doença?- Marina confronta a médica?
-Foi ele que te contou isso?
-Descobri sozinha, Olga.
-A questão não é essa, pelo menos por
enquanto. Desde quando você tem um caso com o meu marido?
-Olha aqui, os seus problemas pessoais você
resolve com o seu marido!
-Só que nós três estamos correndo risco de morte!
Você é parte desses problemas, e por isso eu exijo saber da verdade! Olha só, eu não quero fazer escândalo, cobrar
que você se afaste dele, que encerre esse caso, nada do que normalmente uma
esposa faria. Eu só quero que você me esclareça isso, por favor.
-Conheci o Jorge há dez anos, em setenta e
oito.
-E sabia que ele era casado, pai de duas
filhas?
-Isso eu soube sem perguntar. Foi ele mesmo
quem me contou. Jorge e eu sempre tivemos um jogo muito franco. Eu disse que
não queria que ele se separasse, ou que abandonasse as filhas. Porque eu sempre
fui livre, sempre fui libertária. Sempre que a gente conversava, eu me abria
sobre os meus problemas, mas nunca fui de pedir conselhos ou pedir que ele
resolvesse nada. Era como se nós conversássemos sobre tudo pela primeira vez.
Já na cama, não havia ninguém que me entendesse tão perfeitamente quanto ele.
-Mãe, é melhor a gente ir embora, você já
ouviu o suficiente...
-Ainda não- Laura seca o rosto com um lenço-
Meu marido sabia que você tinha uma clínica de aborto?
-Sempre soube, embora nós tivéssemos falado
pouco a respeito.
-Quer dizer que você não foi indicada por
nenhum amigo dele da polícia?
-Jorge não queria expor a Marina. Porque se
as pessoas descobrissem a gravidez dela, seria o mesmo que colocar a família
inteira na boca do povo. A história de ter contado o problema pra alguém da
polícia foi só pra que as pessoas pensassem que o aborto, caso fosse descoberto
um dia, estava previsto na lei. Ele jamais ia tolerar ela criando uma criança
sem auxílio do pai, e sem se casar. Foi uma decepção tão grande pra ele saber
que a filha mais obediente não era mais moça, e que ainda por cima engravidou.
Mas ela ainda jovem, pode ter outros filhos... Desde que se case, como o pai
quer.
-Sua passividade diante de tudo isso me
assusta...
-Sabe por quê, Mãe? Porque ela não sente
culpa. Quantos ela já não matou? Esse papo de que eu posso ter outros é só pra
aliviar a barra dela. Mas eu queria aquele filho!
-Queria, mas não abriu a boca pra se
defender, por medo do Jorge, e provavelmente por medo de criar essa criança sem
pai. Na teoria, Marina, você como mãe solteira os dezesseis anos de idade é
muito bonitinho... Cria, pra ver se você ia aguentar!
-Infeliz...
-Calma, minha filha...
-Vamos embora daqui, Mãe...
-Não. Já disse que ainda não ouvi tudo que
tinha pra saber.
-O que mais você quer, Laura?
-Esse seu diagnóstico de AIDS. Procede?
Olga faz uma longa pausa, até se decidir
sobre responder ou não à Laura.
-Sou soropositiva.
-Tem certeza?
-Não tenho mais dúvida disso. Foi por isso,
inclusive, que Jorge e eu não tivemos mais nada. Ele simplesmente me rejeitou
depois de eu ter confessado tudo.
-Quais são as chances de Jorge ter se
contaminado com o vírus?
-Eu... Eu não quero mais falar disso...
-A sua vontade não vai prevalecer sobre a
verdade. Eu tenho que saber!
-Antes de me encontrar com o Jorge, eu sempre
tomava anticoncepcional. Mas nunca usamos preservativo.
-Era tudo que eu precisava saber. Obrigada
por me dizer.
-Mãe, onde é que você vai?
-Pra casa. Eu preciso dizer uma coisa ao seu
pai...
Quando voltam para o apartamento no qual
moram, Laura e Marina se assustam com o estado que Jorge deixou a sala.
-O que aconteceu aqui?
-Gostou?- Jorge surge da cozinha com um copo
de uísque na mão- É serviço pra você fazer. Pelo menos, assim você não enche
sua cabeça de caraminholas.
-Deixa que eu te ajudo, Mãe- Marina tenta ir
à cozinha pegar uma vassoura e uma pá, mas Jorge a segura.
-Sua mãe vai limpar isso tudo sozinha. Além
disso, nós ainda não terminamos aquela nossa conversa.
-Terminamos, sim. Pelo menos eu já disse tudo
que eu penso do senhor.
-Atrevida... Não bastou colocar sua mãe contra mim?
-Jorge, pode deixar. Eu limpo.
-Pelo que eu vejo, finalmente colocou a cabeça no lugar.
Sua filhinha não conseguiu te convencer de que eu sou um mau-caráter, não foi?
-A Marina não. A Olga, sim.
-Deve ser alguém mancomunado com essa desaforada.
-Seja lá quem for, eu estou convencida de que você teve
um caso com aquela mulher. Mas não se preocupe, porque eu não vou me deixar
abater por isso.
-O que quer dizer, Laura?
-Amanhã, nós dois vamos fazer um exame pra saber se temos
o vírus da AIDS.
-Laura, eu não vou compactuar com as desavenças que essa
menina nos causou.
-Então, eu vou explicar de uma maneira bem clara, Jorge-
Marília sai do quarto para escutar o que a mãe tem a dizer- Se você se recusar
a fazer o teste de HIV comigo, você vai sair dessa casa!
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