-Peraí, a gente não
pode estar falando da mesma pessoa.
-É ela mesma,
Karen. Passou mal assim que saiu de seu apartamento. Tava tendo um sangramento.
-Meu Deus, mas como
é que o porteiro não me avisou nada?
-Parece que não
tinha ninguém na portaria quando Toni socorreu sua amiga.
-Toni? Quem é esse?
-Um dos servos lá
da igreja. Ele tinha vindo me visitar, encontrou Lívia desmaiando, e sangrando muito.
Da última vez que a gente se falou pelo telefone, ele disse que ela estava em
coma, por isso...
-Coma?
-Por isso que eu te
perguntei se tinha alguma novidade da sua amiga.
-Não, eu não fazia
ideia. Ninguém me disse nada... Obrigada por me avisar, eu vou ligar pra casa
dela agora e perguntar pra mãe dela como ela tá.
-Karen... Por
favor, se souber de alguma coisa, não deixa de me avisar. Já convoquei os
irmãos da igreja pra uma campanha de oração por essa moça.
-Fica tranquilo,
que se eu souber de alguma coisa, eu te aviso- aperta várias vezes o botão do
elevador- Obrigada, Pastor- sobe para o apartamento, nervosa.
-De nada. Fique com
Deus.
/////
O café da manhã
promete, mais uma vez, ser indigesto. Danilo, em nova tática, tenta agradar a
seu pai se levantando cedo antes que ele vá ao hospital. Patrícia conversa
sobre a família vizinha.
-Sabe que eles
deram uma festa ontem que não deixaram quase ninguém dormir? O que salvou a
noite mesmo foi que, com essa barulheira toda, alguma alma santa chamou a
polícia. Só assim esse bando de desordeiros se... Rafael? Rafael, estou falando
com você.
-Desculpa, Patrícia.
O que você tava dizendo?
-Você está longe, amor...
Já sei. Casos médicos. O que te chocou tanto dessa vez?
-Ontem, uma moça
chegou lá, desacordada, sangrando- Patrícia faz uma expressão de asco, enquanto
a empregada serve o café para Rafael e Danilo mastiga- Entrou em coma. Adivinha
por quê.
-Não faço a menor
ideia, meu querido.
-Aborto. Obrigado-
diz à empregada.
-Calma aí: a moça
entrou em coma por ter tentado abortar?
-E não conseguiu. A
criança está ótima, se desenvolvendo normalmente. Já a mãe tá à beira da morte.
-Realmente, é um
caso interessante- Patrícia não agradece à empregada pelo café.
-Mas o que me cortou
o coração foi a mãe da moça. Veio trazer os documentos dela- a empregada começa
a encher a xícara de Danilo, erguida pelo rapaz- invadiu minha sala e falou que
a filha era Lívia dos Santos Figueira.
Danilo deixa a
xícara cair e, com o susto, a empregada molha sua camisa.
-Mas o que foi que
deu em você, estaferma?- Patrícia se levanta para repreender a empregada.
-Desculpa, Dona Patrícia,
mas eu me assustei com ele derrubando a xícara.
-Ué... Derrubei
porque você me molhou primeiro de café, né, Etelvina?- disfarça perante Rafael.
-Não, Danilo, eu
derramei porque você...
-Calma aí: você tá
questionando meu filho, é isso? Passa na cozinha e pega o material pra limpar
essa porcaria que você fez.
-Mas Dona
Patrícia...
-Etelvina, eu
acordei de ótimo humor e não pretendo perdê-lo. Nem você o seu emprego. Limpa
essa sujeira de bico calado.
-Perdão. Com
licença.
-Bom, eu vou... Eu
vou pro banheiro trocar de camisa. Dá licença.
-Vá, meu filho.
-Bem que você
poderia selecionar uma pauta melhorzinha pra tratar no café da manhã, meu querido.
Falar de hospital é lamentável pra quem vai começar o dia.
-Patrícia, se eu
não conversar com você, vou falar disso com quem?
-Enfermeiros.
Pacientes. Técnicos de enfermagem. Assistentes sociais. Até com o médico que
bota a pulseirinha da classificação de risco, Rafael. Mas na mesa, comigo e com
o Danilo, é um pouco demais.
-Desculpe- limpa a
boca com o guardanapo- Eu realmente devo ser um idiota pra querer dividir minha
vida com a minha família. Não fazia ideia de que isso era um sacrilégio tão grande.
Bom dia, meu amor- Rafael segue para o hospital.
/////
Algumas horas
depois, um enfermeiro está ministrando a medicação de Lívia, quando Rafael
entra para saber sobre o estado da moça.
-Tem novidade do
caso?
-Nenhuma reação,
Doutor.
-Voltou a ter sangramento?
-Não, isso o senhor
mesmo conseguiu controlar.
-E quanto ao bebê?
-Na mesma. É uma
coisa impressionante. Poucas vezes eu vi isso, quando a mãe tá prestes a morrer
e uma criança vem ao mundo. Mas no caso dela... O senhor acha que esse bebê
vinga?
-O futuro a gente
não pode prever. Mas o mais estranho é que tudo indica que sim.
-Definitivamente, é
um tapa na cara dessa moça.
-A que se refere?
-Pensa bem, Doutor:
essa moça só chegou aqui porque queria matar o próprio filho, que nem chegou a
nascer. E se ele sobrevive, e a mãe morre?
-O ruim dessa
situação é que ela pôs a própria vida em risco por uma coisa tão... Enfim, tão
torpe quanto essa.
-Mas é um direito
dela, Doutor. A gente não pode influenciar num corpo que não é nosso.
-Às vezes, eu fico
vendo essas mulheres vítimas de abuso, tendo que tirar. Olha, eu não... Eu não
vou tirar a razão delas porque, querendo ou não, aquelas crianças são a maior
lembrança desse pavor, desse pânico... Mas não é uma punição?
-Olha, o senhor vai
me desculpar, mas depois de tantos anos na rede pública, com tanta mulher
morrendo porque quis abortar e deu errado... Eu até aceito.
-Já eu não consigo.
Sabe o que eu penso? Que essas crianças têm o direito de viver, de crescer, de
pelo menos tentarem ser tudo aquilo que os pais agressores não foram: pessoas
de bem. É como se pra manter um direito, a gente tirasse o direito do outro. É
o que é pior: de quem não pode se defender!
-Com licença-
Homero chega à enfermaria- Eu queria uma informação.
-Pois não?
-Eu tô procurando uma
paciente: Lívia Figueira.
-O senhor é
parente?
-Não. Eu sou pastor
da igreja do Marcos Antônio, o rapaz que socorreu a moça.
-Ah, sei.
-Na verdade, eu
fiquei comovido com a notícia de que ela estava tão mal.
-Pois é. Infelizmente,
a lotação não tem permitindo que coloquemos Lívia num quarto, mas ela vem sendo
bem tratada. Na medida do possível.
-Não se preocupe em
fazer o impossível, Doutor. Deixe isso pra ser cuidado pelo Maior dos
Especialistas.
-Bom, se o senhor
quer ver a Lívia, está nesse leito aqui.
-Não vim só pra ver
a Lívia. Vim pra orar.
-Doutor, o senhor
acha isso uma boa ideia?
-Ela não tem nada a
perder, além da vida. Por favor.
Homero estende a
mão sobre a cabeça da estudante e ora. Aos poucos, Rafael e o enfermeiro fecham
os olhos.
-Senhor, Te
agradecemos pela oportunidade de mais um dia de vida que Tu nos concedeste.
Intercedemos, mais uma vez, pela vida da Tua filha, Lívia. Sabemos, Senhor, que
só Tu tens poder de restaurar a saúde dessa moça. Derrama Tua poderosa unção
sobre esse leito de hospital, sobre todos esses enfermos que dedicam um minuto
pra falar Contigo, por todas as famílias que têm um ente querido internado e
confiam em Ti. Faz a Tua obra, o Teu mover, o Teu milagre, e a levante dessa
cama para que ela possa glorificar o Teu nome. Esse é o clamor que Te faço em
nome de Jesus...
-Amém- dizem os
três.
-Bom, eu não vou
mais tomar o tempo de vocês. Mas eu venho visitar sempre Lívia. Obrigado pela
oportunidade, Doutor.
-Que é isso? Não
precisa agradecer.
-Eu
já vou indo, então. A paz do Senhor.
Lívia
escuta os passos de Homero saindo do hospital. É a única coisa que ela consegue
ouvir. Quando mais longe ele vai, mais nítido é o som pra moça.
Os
passos param quando o pastor encontra Heloísa.
-Bom
dia, Pastor.
-Bom
dia... Eu acabei de ver sua filha. Aliás, vim só pra isso.
-Como
foi que o senhor soube?
-Toni
me contou.
-Como
é que tá Lívia?
-Na
mesma situação, irmã. Eu sinto muito.
-Mas
não mais que eu. Dormiu com um homem, não me contou nada, e agora me apareceu
grávida e perto de morrer.
-Por
favor, não encare isso como o fim. É uma provação.
-Pode
até ser. Talvez eu sobreviva à provação. Mas ela não. Tá tudo perdido, Pastor.
-Se
tivesse, Deus não tinha deixado um sinal.
-Qual?
Lívia entubada?- mantém-se agressiva.
-O
seu neto. Esse bebê que ela carrega na barriga, que tá se desenvolvendo sem
nenhuma sequela, sem marca do que aconteceu... A senhora tem que pensar que
isso não pode ter acontecido à toa... E se sua filha for guardada, é por essa
criança que a senhora tem que continuar lutando. Ela só tem a senhora.
-Por
que eu não consigo ouvir o que eles estão falando?- Lívia volta a escutar assim
que a mãe a choca.
-Essa
criança não é nada minha, Pastor. E vou lhe dizer mais: se Lívia morrer e essa
criança vingar... Eu me desfaço desse bebê. Não vou cuidar desse menino. Jogo
num abrigo, num orfanato, onde for! Comigo, ele não fica!
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