10/04/2015

LEVE-ME DAQUI/ CAPÍTULO 10: SÓ SEI QUE QUERO DESMANCHAR



-Peraí, a gente não pode estar falando da mesma pessoa.
-É ela mesma, Karen. Passou mal assim que saiu de seu apartamento. Tava tendo um sangramento.
-Meu Deus, mas como é que o porteiro não me avisou nada?
-Parece que não tinha ninguém na portaria quando Toni socorreu sua amiga.
-Toni? Quem é esse?
-Um dos servos lá da igreja. Ele tinha vindo me visitar,  encontrou Lívia desmaiando, e sangrando muito. Da última vez que a gente se falou pelo telefone, ele disse que ela estava em coma, por isso...
-Coma?
-Por isso que eu te perguntei se tinha alguma novidade da sua amiga.
-Não, eu não fazia ideia. Ninguém me disse nada... Obrigada por me avisar, eu vou ligar pra casa dela agora e perguntar pra mãe dela como ela tá.
-Karen... Por favor, se souber de alguma coisa, não deixa de me avisar. Já convoquei os irmãos da igreja pra uma campanha de oração por essa moça.
-Fica tranquilo, que se eu souber de alguma coisa, eu te aviso- aperta várias vezes o botão do elevador- Obrigada, Pastor- sobe para o apartamento, nervosa.
-De nada. Fique com Deus.

/////

O café da manhã promete, mais uma vez, ser indigesto. Danilo, em nova tática, tenta agradar a seu pai se levantando cedo antes que ele vá ao hospital. Patrícia conversa sobre a família vizinha.
-Sabe que eles deram uma festa ontem que não deixaram quase ninguém dormir? O que salvou a noite mesmo foi que, com essa barulheira toda, alguma alma santa chamou a polícia. Só assim esse bando de desordeiros se... Rafael? Rafael, estou falando com você.
-Desculpa, Patrícia. O que você tava dizendo?
-Você está longe, amor... Já sei. Casos médicos. O que te chocou tanto dessa vez?
-Ontem, uma moça chegou lá, desacordada, sangrando- Patrícia faz uma expressão de asco, enquanto a empregada serve o café para Rafael e Danilo mastiga- Entrou em coma. Adivinha por quê.
-Não faço a menor ideia, meu querido.
-Aborto. Obrigado- diz à empregada.
-Calma aí: a moça entrou em coma por ter tentado abortar?
-E não conseguiu. A criança está ótima, se desenvolvendo normalmente. Já a mãe tá à beira da morte.
-Realmente, é um caso interessante- Patrícia não agradece à empregada pelo café.
-Mas o que me cortou o coração foi a mãe da moça. Veio trazer os documentos dela- a empregada começa a encher a xícara de Danilo, erguida pelo rapaz- invadiu minha sala e falou que a filha era Lívia dos Santos Figueira.
Danilo deixa a xícara cair e, com o susto, a empregada molha sua camisa.
-Mas o que foi que deu em você, estaferma?- Patrícia se levanta para repreender a empregada.
-Desculpa, Dona Patrícia, mas eu me assustei com ele derrubando a xícara.
-Ué... Derrubei porque você me molhou primeiro de café, né, Etelvina?- disfarça perante Rafael.
-Não, Danilo, eu derramei porque você...
-Calma aí: você tá questionando meu filho, é isso? Passa na cozinha e pega o material pra limpar essa porcaria que você fez.
-Mas Dona Patrícia...
-Etelvina, eu acordei de ótimo humor e não pretendo perdê-lo. Nem você o seu emprego. Limpa essa sujeira de bico calado.
-Perdão. Com licença.
-Bom, eu vou... Eu vou pro banheiro trocar de camisa. Dá licença.
-Vá, meu filho.
-Bem que você poderia selecionar uma pauta melhorzinha pra tratar no café da manhã, meu querido. Falar de hospital é lamentável pra quem vai começar o dia.
-Patrícia, se eu não conversar com você, vou falar disso com quem?
-Enfermeiros. Pacientes. Técnicos de enfermagem. Assistentes sociais. Até com o médico que bota a pulseirinha da classificação de risco, Rafael. Mas na mesa, comigo e com o Danilo, é um pouco demais.
-Desculpe- limpa a boca com o guardanapo- Eu realmente devo ser um idiota pra querer dividir minha vida com a minha família. Não fazia ideia de que isso era um sacrilégio tão grande. Bom dia, meu amor- Rafael segue para o hospital.

/////

Algumas horas depois, um enfermeiro está ministrando a medicação de Lívia, quando Rafael entra para saber sobre o estado da moça.
-Tem novidade do caso?
-Nenhuma reação, Doutor.
-Voltou a ter sangramento?
-Não, isso o senhor mesmo conseguiu controlar.
-E quanto ao bebê?
-Na mesma. É uma coisa impressionante. Poucas vezes eu vi isso, quando a mãe tá prestes a morrer e uma criança vem ao mundo. Mas no caso dela... O senhor acha que esse bebê vinga?
-O futuro a gente não pode prever. Mas o mais estranho é que tudo indica que sim.
-Definitivamente, é um tapa na cara dessa moça.
-A que se refere?
-Pensa bem, Doutor: essa moça só chegou aqui porque queria matar o próprio filho, que nem chegou a nascer. E se ele sobrevive, e a mãe morre?
-O ruim dessa situação é que ela pôs a própria vida em risco por uma coisa tão... Enfim, tão torpe quanto essa.
-Mas é um direito dela, Doutor. A gente não pode influenciar num corpo que não é nosso.
-Às vezes, eu fico vendo essas mulheres vítimas de abuso, tendo que tirar. Olha, eu não... Eu não vou tirar a razão delas porque, querendo ou não, aquelas crianças são a maior lembrança desse pavor, desse pânico... Mas não é uma punição?
-Olha, o senhor vai me desculpar, mas depois de tantos anos na rede pública, com tanta mulher morrendo porque quis abortar e deu errado... Eu até aceito.
-Já eu não consigo. Sabe o que eu penso? Que essas crianças têm o direito de viver, de crescer, de pelo menos tentarem ser tudo aquilo que os pais agressores não foram: pessoas de bem. É como se pra manter um direito, a gente tirasse o direito do outro. É o que é pior: de quem não pode se defender!
-Com licença- Homero chega à enfermaria- Eu queria uma informação.
-Pois não?
-Eu tô procurando uma paciente: Lívia Figueira.
-O senhor é parente?
-Não. Eu sou pastor da igreja do Marcos Antônio, o rapaz que socorreu a moça.
-Ah, sei.
-Na verdade, eu fiquei comovido com a notícia de que ela estava tão mal.
-Pois é. Infelizmente, a lotação não tem permitindo que coloquemos Lívia num quarto, mas ela vem sendo bem tratada. Na medida do possível.
-Não se preocupe em fazer o impossível, Doutor. Deixe isso pra ser cuidado pelo Maior dos Especialistas.
-Bom, se o senhor quer ver a Lívia, está nesse leito aqui.
-Não vim só pra ver a Lívia. Vim pra orar.
-Doutor, o senhor acha isso uma boa ideia?
-Ela não tem nada a perder, além da vida. Por favor.
Homero estende a mão sobre a cabeça da estudante e ora. Aos poucos, Rafael e o enfermeiro fecham os olhos.
-Senhor, Te agradecemos pela oportunidade de mais um dia de vida que Tu nos concedeste. Intercedemos, mais uma vez, pela vida da Tua filha, Lívia. Sabemos, Senhor, que só Tu tens poder de restaurar a saúde dessa moça. Derrama Tua poderosa unção sobre esse leito de hospital, sobre todos esses enfermos que dedicam um minuto pra falar Contigo, por todas as famílias que têm um ente querido internado e confiam em Ti. Faz a Tua obra, o Teu mover, o Teu milagre, e a levante dessa cama para que ela possa glorificar o Teu nome. Esse é o clamor que Te faço em nome de Jesus...
-Amém- dizem os três.
-Bom, eu não vou mais tomar o tempo de vocês. Mas eu venho visitar sempre Lívia. Obrigado pela oportunidade, Doutor.
-Que é isso? Não precisa agradecer.
-Eu já vou indo, então. A paz do Senhor.
Lívia escuta os passos de Homero saindo do hospital. É a única coisa que ela consegue ouvir. Quando mais longe ele vai, mais nítido é o som pra moça.
Os passos param quando o pastor encontra Heloísa.
-Bom dia, Pastor.
-Bom dia... Eu acabei de ver sua filha. Aliás, vim só pra isso.
-Como foi que o senhor soube?
-Toni me contou.
-Como é que tá Lívia?
-Na mesma situação, irmã. Eu sinto muito.
-Mas não mais que eu. Dormiu com um homem, não me contou nada, e agora me apareceu grávida e perto de morrer.
-Por favor, não encare isso como o fim. É uma provação.
-Pode até ser. Talvez eu sobreviva à provação. Mas ela não. Tá tudo perdido, Pastor.
-Se tivesse, Deus não tinha deixado um sinal.
-Qual? Lívia entubada?- mantém-se agressiva.
-O seu neto. Esse bebê que ela carrega na barriga, que tá se desenvolvendo sem nenhuma sequela, sem marca do que aconteceu... A senhora tem que pensar que isso não pode ter acontecido à toa... E se sua filha for guardada, é por essa criança que a senhora tem que continuar lutando. Ela só tem a senhora.
-Por que eu não consigo ouvir o que eles estão falando?- Lívia volta a escutar assim que a mãe a choca.
-Essa criança não é nada minha, Pastor. E vou lhe dizer mais: se Lívia morrer e essa criança vingar... Eu me desfaço desse bebê. Não vou cuidar desse menino. Jogo num abrigo, num orfanato, onde for! Comigo, ele não fica!

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