Avançam alguns dias. Noêmia e
Plínio vão à Clínica San Pillar para saber como Bruno está. São levados ao
consultório do psiquiatra.
-Por favor, acomodem-se.
-Obrigada.
-Como ele está?
-Ainda se mantém agressivo.
Claro, conseguimos dominar isso com a dosagem de calmantes, mas percebemos que,
quando o deixamos sozinho, chora bastante. Chama pelo filho, pede perdão à
esposa. Enfim, são cenas lamentáveis. Mas basta que alguém se aproxime que ele
sai desse personagem frágil. Se transforma em outra pessoa com muita
facilidade, de acordo com a situação que julgar conveniente.
-Doutor, não nos esconda
nada: o que exatamente o meu filho teve?
-Tratou-se de um surto
psicótico.
-Ele é esquizofrênico?
-Não, é muito certo para
afirmar. Ele teve há algumas semanas, mas desde que chegou aqui não apresentou
outras ocorrências do caso.
-Só que eu li uma vez que
essas coisas eram sintomas dessa doença.
-De fato, são. Mas não é o
caso do seu filho, Plínio.
-Mas então?
-Ao que me consta, seu filho
teve uma realidade criada, uma vida que ele deseja ter. Na cabeça dele, as
coisas deveriam funcionar da maneira que ele achasse conveniente.
-Como um padrão criado por
ele?
-Isso mesmo. Eu creio que Bruno
possuía total domínio das coisas e, por que não dizer? Das pessoas à sua volta
também. Possuía um emprego estruturado, uma base familiar sem defeitos, começou
um casamento se dedicando totalmente à mulher, comemorava a alegria de ser pai
dentro em breve... Repentinamente, tudo aquilo que por ele foi orquestrado...
Sumiu, como numa mágica.
-Doutor... Isso tem cura?
-O método mais eficaz, minha
senhora, é ele ser restituído de tudo aquilo que perdeu- Plínio lembra das
discussões que teve com o jovem- Em determinados casos, essa bomba explode por
conta de fatos acontecidos na infância do paciente... Mas eu creio que os
medicamentos podem impedir que episódios como esse voltem a acontecer.
-Quer dizer que ele vai ficar
assim pra sempre?
-Não, Dona Noêmia.
Entretanto, é necessário que Bruno colabore com o próprio tratamento.
-Eu posso vê-lo?
-Claro. Deixe-me apenas avisar
à enfermeira, para que ela a leve ao quarto.
-O senhor não vem comigo?
-Não, Noêmia. Eu acho que ele
vai gostar mais de ter você com ele agora.
-Por aqui, senhora.
-Obrigada.
-O senhor gostaria de uma
água, de um café?
-Não, doutor. Pode levá-la
até meu filho.
-Volto num instante. Venha,
senhora.
|||||
Bruno está deitado em sua
cama, quando a enfermeira traz Noêmia ao quarto. O rapaz fica surpreso.
-Noêmia?
-Meu querido... – corre para
abraçá-lo- Como é que você está, meu amor?
-Pior, impossível. Isso não é
pergunta que se faça, Noêmia... E a Giovanna?
-Ela não quer receber
ninguém. Ainda está muito nervosa.
-Ela não quer receber ninguém
ligado a mim, é isso que quer dizer.
-Meu querido, eu sei que você
não tinha intenções de machucá-la. Mesmo porque ela esperava um filho seu.
-Aí é que “tá”, Noêmia. Vamos
encarar os fatos. O que você pensa de mim, infelizmente não é o suficiente pra
polícia, muito menos pra ela. Noêmia, você tem que convencê-la a vir aqui. Se
ela estiver no hospital, procure a Giovanna. Eu tenho que convencer a minha
mulher de que aquela arma não era minha!
-Se não era sua, meu amor... De
quem era? Você disse que achou no sofá, não poderia ser do ladrão.
-Viu? É por isso que eu digo.
Tem alguém tentando me incriminar!
-Mesmo assim, Bruno. Isso não
vai te tirar daqui. O médico disse que você não teve apenas uma crise nervosa,
um stress. Foi um surto psicótico.
-Baboseira! Surto eu vou ter
no dia que eu descobrir o canalha que “tá” fazendo tudo isso. Já imaginou eu me
vingando como Norman Bates? Encontro o desgraçado e... Vai ser divertido
derrubar aquele box de loja de R$ 1,99... Visualiza a cena, Noêmia... – cantarola
a famosa composição de Bernard Hermann utilizada na clássica cena de “Psicose”.
-Como é que você pode falar
dessa forma, com esse sangue frio?
-Foi o que me restou, Noêmia.
Mas não se preocupe. Eu não enlouqueci a ponto de esquecer da minha meta
principal: conseguir o perdão da minha mulher. Até agora, eu consegui tudo o
que eu quis, não foi?
-Bruno, me responde com
sinceridade. Eu prometo que nunca mais toco no assunto, e que, independente da
resposta, eu vou te apoiar sempre.
-Bastaram trinta segundos de
conversa comigo e você encarnou o espírito de suspense do Hitchcock.
-Você tem alguma coisa a ver
com essas mortes?
-Tenho. Eu só não sei o quê. Não
apertei um gatilho no cartório, não detonei uma bomba no Pina... Mas algo em
comum essas pessoas têm. A minha única culpa, a que eu vou carregar pro resto
da minha vida, foi a de ter provocado aquele aborto. Mesmo que a Giovanna me
perdoe, eu não vou me perdoar. Tirando isso, Noêmia, eu não mudaria uma vírgula
do que fiz, nem do que sou.
-Confesso que eu sinto medo.
-De mim?
-Não. De imaginar quem mais
pode morrer caso se envolva nessa sua estória.
-Ou eu mesmo ou o culpado
verdadeiro. Se for a segunda opção, eu acho que teria que vestir o personagem
assassino definitivamente.
-Não fale isso.
-Eu não sou de implorar por
pena, nem quero que me olhem. Mas eu esperava que tivessem por mim. Eu vou
lutar pelo perdão da Giovanna e por mim.
-Pra isso, você tem que se
recuperar, meu querido.
-Se está tentando me dizer
que eu tenho que sair daqui, fique tranquila. Nem o Sus me daria uma alta tão
rapidamente quanto a que eu penso que vou receber...
|||||
Arrumando as malas, Marisa espera
a filha, ainda abatida, sair do banheiro.
-Já podemos ir, querida? Eu vou
chamar o taxista.
-Espera, mãe. Aquela viagem
que você disse que ia fazer... Ainda “tá” de pé?
-Pra Maceió? Tive que
cancelar, devido a todo esse problema. Mas por que a pergunta?
-Você teria que ficar por
muito tempo, não é isso?
-Sim, mas de qualquer
maneira, ela seria adiada. Pelo meu netinho. Quis acompanhar tudo de perto, e
vou.
-Eu tenho uma proposta pra te
fazer.
-Sim, meu amor, o quê?
-Remarca a viagem. Eu vou com
você.
-Giovanna...
-Eu quero refazer a minha
vida lá, mãe. Se não for lá, em qualquer lugar longe do Bruno, da família dele.
Eu não quero que ninguém descubra que o meu filho ainda está vivo.
-Se é assim, será como você
desejar, minha querida. Eu espero que você possa se refazer de tudo o que te
angustia. Mas eu acho que você tem que saber como está o seu marido.
-Não. Vou te pedir pra não
mencionar mais o nome dele quando estiver comigo.
-Está bem, querida. Vou ligar
para agência e reservar a sua passagem. Ainda hoje embarcaremos para Maceió.
|||||
Bruno está agora sentado na
cama, sendo alimentado por uma enfermeira. Chegou a hora do jantar. Curiosa,
ela pergunta ao rapaz, quase monossilábico:
-Por que não quis jantar com
os outros internos?
-Adivinha?
-Você tem que fazer um
esforço, senão não vai sair daqui nunca.
-Nossa, como você é perspicaz
e animadora...
-É verdade, Bruno. Tem que
fazer sua parte. Eu vi que muitas vezes, você finge que toma os remédios.
-E finjo normalidade com uma
proeza, não é? Será que é porque eu não tenho nada?
-Pensa que quanto mais você
aceitar que não está bem, mais fácil será a sua recuperação.
-Tem razão. Então, as pessoas
têm que ver que eu não estou me sentindo bem?
-Isso. Vai facilitar bastante
a evolução do seu quadro.
-Enfermeira... – para de
comer- A senhora “tá” vendo?
-O quê?
-A cama suja de comida, não “tá”
vendo?
-Bruno, você está alucinando.
A cama não está suja de comida.
Violentamente, Bruno pega a
faca que está na bandeja do jantar e a derruba sobre o lençol, assustando a
moça;
-Agora “tá”!
-Calma, Bruno. Não vai fazer
nenhuma besteira- olha para a faca que o arqueólogo está segurando.
-Quem vai fazer alguma coisa
aqui é você. Abre o portão da clínica. O primeiro grito que você soltar vai ser
pra dar adeus à vida e a esse emprego mequetrefe que você arrumou. Passa na
minha frente e abre o portão!
|||||
Felipe Verdelho, padre da
Igreja Alagoana da Caridade, está em uma caminhonete. A estrada que liga
Pernambuco a Alagoas está com problemas de iluminação. Ele está com sono, o que
impede sua atenção na direção.
Bruno lamenta ter fugido da
clínica.
-Mas que fim de mundo é esse
que me internaram? Judas pensaria duas vezes em perder as botas aqui! Não
importa... Não meço distância. Eu vou encontrar a Giovanna- acelera os passos-
Vou pedir perdão, reconquistar a minha mulher, começar de novo quantas vezes eu
precisar... – chora, abalado com os últimos acontecimentos- Perdi a pessoa que
mais amava uma vez, perdi o meu filho, mas você não. Nasceu pra ser minha. E
vou te trazer de volta pra mim. Não importa contra quem eu lute, quem eu
enfrente... A vida que eu tracei pra nós dois vai se concretizar, meu amor. Na alegria
e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza... Me dá força,
mãe. Quanto tempo eu vou aguentar isso?
-Já estou perto de chegar lá?-
sem querer, Felipe desvia bruscamente de um animal e vai em direção ao acostamento, onde Bruno
caminha na direção contrária.
-Cuidado!- grita o
arqueólogo, ao perceber que a caminhonete vem ao seu encontro.
Felipe freia o veículo
rudemente, mas acaba atingindo o rapaz, que rola por um pequeno deslizamento de
terra, desmaiado e com um corte na testa devido à queda.
-Ave Maria santíssima... O
que foi que eu fiz?- Felipe desce da caminhonete e fica atônito ao ver Bruno
desacordado.
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