Felipe mede a temperatura de Bruno. Retira o termômetro debaixo da axila do rapaz.
-Trinta e sete e meio. Ainda
com febre, mas pra vista do que estava, melhorou bastante. E a perna?
-Ainda doendo, mas aliviou
mais depois do remédio que o senhor me deu.
-Bruno, ontem você... Ontem,
você falou umas coisas, quando a sua febre estava muito alta. Confesso que
fiquei preocupado, apesar de entender que você estava tendo alucinações.
-O que foi que eu falei?
-Que tinha uma moça que
estava fazendo de tudo pra te colocar na cadeia. Inclusive, que ela roubou um
explosivo da sua sala e botou no carro de alguém.
-Está enganado se pensa que
foi um delírio. Tudo verdade.
-Mas... – levanta-se da cama-
Por que você não foi à polícia contar isso?
-Vontade não me falta, só que
eu preciso comprovar o que digo. Só tenho o testemunho da minha nova secretária,
o que não vale muita coisa.
-Não?
-Ela era amiga da Virna, a
moça que morreu. Não vai querer denunciar a irmã dela, não é?
-Bruno, eu queria muito te
ajudar, mas não sei como.
-Já está ajudando.
-Como? Quanto mais você fala,
mais eu fico em dúvida se devo te manter aqui.
-Mesmo que você não me deixe
aqui, eu só te peço pra não me mandar pra cadeia.
-Só que eu não sei tanto sobre
você pra dar tanta confiança.
-Então é isso? Você quer
saber de tudo sobre a minha vida? Pega a pipoca, padre. Prometo que vai ser
muito divertido.
-Sem ironias.
-Tudo bem. Então, eu vou
contar tudo. Começando pela parte mais dramática, que nem de longe é essa.
-Como assim? Seja mais claro.
-Até os doze anos, eu tinha
uma vida normal. Quer dizer, depende muito do que chamamos de “normal”, não é?
-O que aconteceu?
-Minha mãe desconfiava que o
meu pai, o famoso arqueólogo Plínio Reinchenbach, tinha uma amante.
-Nunca teve certeza?
-Um dia, ela teve uma viagem
marcada pra Belo Horizonte, a trabalho. Lembro que ela falava disso o tempo
todo, e eu não entendia por quê. Era dia 07 de novembro de 2002, uma
quinta-feira. Minha escola inventou de fazer um passeio, e eu pedi pra ir.
-E depois?
-O Plínio, meu pai, inventou
de trazer a amante dele lá pra minha casa, depois do alarde que minha mãe fez
sobre a viagem. Ainda mais eu no passeio da escola- conta tudo com frieza de
detalhes- Ele não sabia que era uma armadilha.
-Da sua mãe?
-Ela imaginou que ele fosse
escapar de casa naquele dia pra se encontrar com alguém, e cancelou a viagem,
que estava marcada. Entrou em casa, sem fazer barulho. Pé ante pé. A casa foi
tomada por um aroma insuportável, vagabundo. Da sala ela sentia o cheiro.
-Espera, você não estava em
casa... Quem te contou isso?
-Liguei da excursão lá pra
casa, pra pedir a bênção ao meu pai. Era meio-dia, hora do almoço. Tinha esse
costume. Quem me atendeu ao telefone foi a Noêmia, minha governanta.
-Residência da Família
Reinchenbach.
-Noêmia? Sou eu, Bruno. Passa
pro pai, por favor.
A porta da mansão se abre.
Trata-se de Helena, a mãe do então garoto.
-Dona Helena? O que a senhora
está fazendo aqui?
-A minha mãe “tá” aí?-
pergunta Bruno, do outro lado da linha.
-Você consegue sentir?-
Helena aponta para a escada- O cheiro do perfume barato que o Plínio chega no
colarinho todas as noites! Com quem o Plínio está em lá em cima, Noêmia?
-Eu não vi ninguém com ele,
senhora...
-Mas eu vou ver!- sobe até o
quarto.
Noêmia, preocupada, segue a patroa.
-Alô? Noêmia, você “tá” aí
ainda? Mãe?
Ao chegarem ao quarto, Helena
e Noêmia encontram as roupas de Plínio e Letícia jogadas ao chão. A bolsa da
amante está aberta e, junto a ela, o vidro do perfume que ela costuma usar. Um
frasco vermelho, que Helena toma em suas mãos.
-“The Colour Of The Risk”...
Até o nome é tão vagabundo quanto os dois... – Helena abre o perfume e confirma
o aroma que sentia em Plínio. Passos adiante, ela os vê abraçados e nus em sua
cama. Deixa o recipiente cair, fazendo-os despertar.
-Helena?
-Não quero explicação
nenhuma, Plínio.
-Calma, meu amor. Eu posso
explicar.
-Quem precisa manter a calma
é você. Aliás, tem que ter muita calma pra colocar uma vadia dessa na cama onde
você dorme com a sua mulher todas as noites! Que você fizesse isso fora daqui,
já seria difícil de perdoar... Mas colocar ela na minha cama, se aproveitando
da ausência do seu filho?
-Helena, por favor, você tem
que me escutar.
-Você também vai ter que me
escutar, Plínio... Na audiência de divórcio, porque lá será quando vamos nos
falar de novo... Eu vou pra Belo Horizonte. E quando eu voltar, eu não quero
encontrar nem mesmo um lenço de papel seu nessa casa! Fica longe de mim, e do
nosso filho.
-Helena, me espera! Helena!-
Plínio veste a roupa e segue a esposa, a toda velocidade no carro.
Helena estaciona o seu
automóvel no heliporto e pilota a própria aeronave. Plínio tenta alcançá-la,
mas ela decola. Ele encontra outro helicóptero, desta vez com um piloto.
-Segue aquele helicóptero!
-O quê? Quem é o senhor?
-Eu pago o que for, mas segue
aquele helicóptero! Rápido! Antes que ela faça alguma besteira!
-E ele foi atrás da minha
mãe. Cheio de remorso, cheio de culpa. Isso só veio a aumentar quando...
-Por favor, continua...
-Quando ela perdeu o controle
do helicóptero e caiu ao mar.
-Virgem Santíssima. Quer
dizer que você é...
-Órfão de mãe. Mas passei a
me considerar órfão de pai também, Padre.
-Não diga isso.
-Digo, porque não acabei de
contar a estória toda.
-E tem mais?
-“Tá” com pressa pra
exorcizar alguém, por acaso?
-Já disse pra deixar de ser
irônico.
-Tudo bem, desculpe. Ela engravidou dele, e os
dois se casaram. Coisa de semanas. A amante foi promovida. Tentou se dar bem
comigo, bancar a mãe... E eu alimentava o ódio que eu sentia, com mais gosto
ainda.
-E esse bebê que ela teve?
-Morou conosco até que eu me
mudasse, por causa do meu casamento. É por isso que eu o odeio. Basta eu pôr o
olho nele que a cara daquela mulher me vem à cabeça.
-Não diga tolices. Esse
garoto é inocente em meio a toda essa estória.
-Tão inocente que é isso que
meu pai gosta nele. William é o filho preferido porque guarda boas lembranças
da mamãezinha dele. Eu não. Sempre fui o problemático, o que nunca se conformou
com o destino, que nunca quis viver com o que sobrou da família. Por isso, o
Plínio gosta mais dele.
-Ele, então, não sabe que,
antes de ser concebido, a mãe era amante do pai?
-Não. Mesmo porque nosso pai
teria algo a mais pra contar.
-Sinceramente, eu compreendo
cada vez menos...
-A Letícia, a amante
promovida, ela... Enfrentou uma depressão pós-parto após a gravidez. Ficou
fria, distante do meu pai. O apetite sexual dela diminuiu consideravelmente,
exceto pelo psiquiatra.
-O que ele tem a ver com
isso?
-Tudo. Bastou que ele a
diagnosticasse com depressão pós-parto que o relacionamento dela com o Plínio
esfriou de vez. O psiquiatra vinha, passava alguns medicamentos, perguntava
como ela estava... Muito atencioso. Até demais.
-Por favor... Você não está
sugerindo que a sua madrasta e o médico tinha um...
-Um bom momento, padre. Um
bom momento para dar o troco naquilo que o Plínio fez com a minha mãe. Eu me
escondia atrás da porta, escutava tudo. E aí, eu preparei, com meus treze anos,
aquela surpresa...
-Pai, vem comigo.
-O que houve, Bruno?
Aconteceu alguma coisa com o bebê?
-Fala baixo, não aconteceu
nada com ele. Vem comigo- Bruno abre a porta do quarto e encontra Letícia e o
médico particular aos beijos. Ela abre os olhos e repele o psiquiatra.
-“Taí”. A mulher com quem
você traiu minha mãe.
-Dá o fora daqui.
-Plínio, não é nada disso que
você está pensando- o médico é interrompido por um soco.
-Vai sair por conta própria ou
quer que eu mesmo tire, inclusive fazendo o mesmo com ela?- grita, apavorando o
homem, que sai às pressas- Como é que você teve coragem de fazer isso comigo?
-Você não me ama mais. Nunca me
amou! A única coisa que interessava pra você era o prazer carnal. Eu
sou um lixo pra você!
-Não fala bobagem! Eu destruí
meu casamento, minha vida sólida, regrada, pra viver uma aventura! Agora você
se aproveita só porque o seu estado de saúde é frágil pra botar um homem aqui
dentro de casa?
-Como você queria que eu
ficasse? Não queria mais saber de mim, não me tocava, me tratava como se fosse
a Helena!
-A Helena tinha dignidade. Você
não! Faz as suas malas. Você não fica um minuto mais aqui.
-Plínio, não faz isso comigo!
Se você me deixar, eu sou capaz de fazer uma loucura!
-Faça a loucura que quiser,
mas com seu médico particular. Eu vou acionar meu advogado e vou impedir que
você veja de novo o William, além de não arrancar qualquer centavo meu-
dirige-se à porta do quarto, até que Letícia ameaça engolir vários comprimidos
de um frasco branco.
-Você não vai me deixar. Eu sei
que não vai.
-Agora vai me ameaçar?
-Sabe que eu sou capaz de
cumprir aquilo que prometo.
-Isso é mentira. Você me prometeu
fidelidade. Esqueça que um dia esteve na minha vida. Vou lutar pela guarda do
William, e os meus dois filhos vão ficar comigo.
Letícia ingere todos os
comprimidos de uma vez, aos prantos. Rapidamente, começa a se sentir mal.
-Pai, olha o que ela fez!-
ambos olhando para Letícia, que sua frio e começa a empalidecer, sentindo
vertigens.
-Letícia! Letícia, o que você
tem?
-Chama um médico! Plínio, por
favor, chama um médico... – cai ao chão, agonizando. O marido corre e chega
perto do seu rosto- Eu vou morrer, Plínio... Me ajuda... Por favor, me ajuda...
eu estou morrendo...
-Nossa, mas “tá” demorando
pra caramba, não é, não?- provoca Bruno.
-Calma, meu amor! Não vai
acontecer nada! Eu vou te proteger, eu prometo- corre para pegar o telefone.
-Você não vai!
-O quê? Bruno, saia da minha
frente...
-Deixa ela morrer!
-Você ficou maluco? Saia da
minha frente agora, Bruno!
-Quer esquecer o que ela te
fez? O casamento que você jogou fora? Olha pro que o senhor viu agora! Ela beijando
outro, te enchendo de chifre! Já pensou se o bebê nem é seu?
-Plínio, me ajuda- aos
poucos, Letícia perde as forças.
-Vai, Plínio. Deixa ela
viver, e ela te engana com outro de novo! Acredita nela agora!
-Chega! Chega!- grita
desesperado. Os suspiros de agonia de Letícia param- Letícia? Não... Não,
Letícia!- desespera-se novamente, agora com culpa pela morte da segunda esposa.
-Você induziu seu pai a
deixá-la morrer?
-Que falta aquela vagabunda
faz no mundo? E outra: o assassino é ele, não eu.
-Bruno, você nunca pensou na
dor desse seu irmão? Ele também se tornou um órfão, como você!
-Sou muito light com ele,
padre! Mais do que eu gostaria, porque eu odeio aquele imbecil mirim! E ele
ainda vive numa bolha, não é? Não faz ideia de nada disso. Mas a minha vontade
é de contar tudo, pra ver se ele começa a odiar o paizinho querido dele.
-Nem mais uma palavra! Você não
se atreva a... A macular, a ousar destruir a inocência do seu irmão!
-Controle meu ímpeto, então! Se
bem que... Seria bacana se eu acabasse com essa inocência toda... Finalmente,
eu ensinaria algo de útil ao meu irmão.
-Útil?
-É, padre. O bom de destruir
a inocência das pessoas é fazê-las perceber, finalmente, que ela tiveram inocência
algum dia.
-Você é um monstro!
-Fique sabendo que não é o
primeiro e não será o último a dizer isso.
-Definitivamente, você não
merece nada de mim. Não merece nada de bom de ninguém.
-Talvez por isso tenha sido
castigados pelos céus quando a minha mulher perdeu o bebê graças a mim... Então,
pega o telefone e me denuncia, padreco. Quer o meu nome? Bruno Reinchenbach!
Diz quem eu sou, os meus “crimes” da década passada, tudo que eu falei agora!
Me joga no manicômio, ou na cadeia! Mas acaba com essa tormenta de uma vez! Se você
me destruir, vai ser um favor que faz à humanidade e a mim também.
Felipe anda para trás,
completamente estarrecido com tudo o que ouviu, e Bruno afunda em sua própria
amargura. O padre vai ao templo da igreja, e ajoelha diante de uma imagem
religiosa.
-Me guie... Me dê uma direção
para o que devo fazer, minha Virgem. Não me desampare nessa hora tão difícil.
Nem a esse rapaz, apesar de tudo. Envie um sinal, é só o que te rogo. Um sinal
do que devo fazer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário