07/07/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 5


Nete sai da porta da Comportas e se dirige ao púlpito, de onde dirigirá o Congresso de Mulheres das Comportas do Céu.
-Quero saudar a amada igreja, e a você que nos visita, com a paz do Senhor Jesus.
-Amém- eis a resposta de boa parte dos presentes.
-Gostaria de dizer-vos que é um imenso prazer receber a todos nessa noite, porque sei que viemos aqui para adorar Àquele que morreu na cruz para salvar-nos.
-Numa igreja protestante? Eu? Devo de estar no “Inferno de Dante”, ou qualquer um.
-Sejas bem-vinda- Valente tenta iniciar um diálogo.
-Tu também- Cissa responde, de maneira ríspida.
-Tudo bem, obrigado- Fabiano desliga o celular- Não consigo acreditar.
-O que houve, Pastor?- a aflição de Fabiano atinge Valente.
-Nosso tecladista teve um imprevisto e disse que não poderá vir hoje.
-Deve ser por conta do temporal forte.
-Antes fosse: o teclado teve que ir para uma assistência técnica.
-Pensei que as mulheres fossem cantar a capella hoje.
-A quem?
-A capella: sem acompanhamento.
-Como vim eu parar aqui?- Cissa fala baixo, entredentes.
-Ah, sim. Apenas a maioria das apresentações. A primeira canção, que será um dueto entre mim e minha esposa, queria que fosse com algum som ao fundo. O minisystem não pega há dois meses, minha esperança estava no tecladista.
-Talvez eu possa ajudá-los.
-Não vejo como.
-Tocando o sax. Só precisaria saber qual música querem interpretar.
-Ah, isto é fácil. Sabes aquele hino, o “Hallelujah”?
-Maravilhoso. Cantávamos muito no orfanato.
-Podes tocar para a igreja?
-Se não me chamassem, eu mesmo me convidaria. Vou para atrás do púlpito, então- Valente carrega o saxofone.
-Sejas muito bem-vinda, irmã. Minha esposa visitou a igreja de vocês, em Loures, e fez questão de vê-las interpretando os louvores da Harpa.
-Harpa? Meu senhor, está havendo um engano grave. Eu não sou irmã de ninguém deste lugar, nem mesmo evangélica.
-E como se explica este figurino?
-Qual o problema? Estou até mais composta do que em dias normais. A louca lá da frente que me arrastou até aqui.
-Perdão, é que minha esposa realmente acreditou que você fizesse parte do coral de mulheres lourenses.
-Trate de me lembrar de não viajar até Loures tão cedo...
-Mesmo assim, eu peço que fiques à vontade. Não foi em vão que tu pisaste aqui. Vai que recebeste algum livramento...
-Pois é. Quem é que saberá?
-Será que o meu varão valoroso pode vir até o púlpito, por gentileza?- Nete fica enciumada com a conversa entre Fabiano e Cissa. Inocentemente, o marido obedece à esposa e segue até o púlpito.
-Essa coisa de “varão valoroso” contagia tanto quanto coqueluche- Valente observa, em voz baixa.
-Eu é que não ficarei mais um segundo que seja neste lugar- Cissa se levanta do banco e tenta sair, mas é impedida pela chuva, disposta a não dar trégua.
Valente, Nete e Fabiano interpretam “Hallelujah”, e muitos ficam admirados com a presença e o talento do saxofonista, que ali pisava pela primeira vez. Sem ter como sair, Cissa volta ao lugar no qual estava e acompanha o culto. Terminada a primeira canção entoada pelos pastores, o jovem retorna para o lado de Cissa, mal disfarçando seu contentamento em estar perto de alguém tão lindo e, à primeira vista, simpático. O que, entretanto, atraiu-lhe, foi o fato de conhecerem-se na igreja. Em sua concepção, a inquieta moça frequentava o templo, e somente por isso merecia sua atenção. Era como se estivesse dotada de todas as virtudes concedidas a um único ser humano.
Após ver as protestantes lourenses louvarem dois cânticos da Harpa Cristã e o próprio coral feminino da Igreja Comportas do Céu, os presentes acompanham a pregação daquela noite, realizada através de Nete. Até então, Cissa continuava impaciente e irritada, procurando sequer se lembrar do compromisso que perdeu, a fim de não ficar ainda mais nervosa. Enquanto Valente se vê completamente envolvido com o tema, a companhia da garota ao lado era o relógio. O tempo passava vagarosamente... Só para ela...
Chegou a hora na qual Fabiano toma a palavra no congresso organizado e dirigido por sua esposa, com a finalidade de deixar uma bênção na despedida dos que ali estavam. Um pedido, inusitado para os visitantes e comum para os que vão diariamente ao templo, é feito pelo pastor:
-Respirem fundo, olhem para os irmãos que estão do seu lado e digam com fé.
Empolgado com certa restrição, o saxofonista vira para Cissa, que prefere olhar pra cima.
-Irmã?- indaga o rapaz, fazendo a jovem olhar para ele, praticamente revirando os olhos.
-Repitam comigo- a partir daí, Fabiano fala pausadamente para que todos possam repetir- “Eu creio que tu receberás o milagre da parte de Deus, e quero ver-te aqui para contares a tua bênção”. Amém?
-Amém.
-Agora, abrace esse irmão que está do seu lado e diga em seu ouvido que quer vê-lo de volta à casa do Senhor. A paz do Senhor Jesus.
Valente troca um abraço com Cissa e diz aquilo que Fabiano ordenou à igreja.
-Quero ver-te de volta à casa do Senhor, minha amada.
Algo é dito para Valente, e Cissa aproveita que muitos estão saindo para deixar o templo. A misteriosa frase deixa o saxofonista intrigado, mas ele não a segue, preferindo cumprimentar Nete e Fabiano. Na volta pra casa, que ela particularmente achou que nunca fosse se concretizar, Michel está à sua espera.
-Não acredito... Não acredito que você voltou!- corre para abraçá-lo.
-Nossa! Quanta vontade de ver o teu irmão! Ai- Michel recebe um safanão da irmã.
-Nem penses em se atrever a me abandonar novamente, ouviste? Tu não sabes o quanto eu sofri com sua ausência.
-Pensei que estivesses acostumada com meu modus operandi.
-Estou a falar sério, Michel. Foi difícil sem ter-te por perto.
-Por quê? O que aconteceu?
-Ricardo. Só este nome já é capaz de explicar tudo, não é?
-Ainda insistindo nesse gajo? Mas tu pareces ser desprovida de inteligência, é inacreditável.
-Quanto a isto, não se preocupe. Acabou. Estou lutando para esquecê-lo.
-Pelo que vejo, a tarefa não tem sido executada com sucesso. Nem mesmo com afinco.
-Mas... Conta-me da viagem, como é que foi lá nas Bahamas?
-Um verdadeiro paraíso, Cissa. Se eu pudesse, jamais sairia de lá.
-Nossa, é tão bom assim para não quereres voltar à tua casa?
-Digamos que eu lamento mais por não poder desfrutar das companhias de lá do que propriamente pelo aspecto paradisíaco do lugar.
-Hum... Apaixonou-se?
-Clarissa, o único homem pelo qual eu me apaixono todos os dias sou eu mesmo.
-E como sei...
-Nossa mãe, estás toda molhada! O que houve?
-Prestes a pegar uma pneumonia. Vou me trocar- Cissa tira a blusa e vai ao seu quarto, sendo seguida por Michel.
-Não me venhas dizer que foi por conta da chuva, pois ela até diminuiu.
-Agora, não é? Porque quando cheguei àquela igreja, estava terrível.
-Igreja? Não, espera um pouco. Agora o Ricardo te fez apelar para a religiosidade?
-Nada disso. Por mais louca que seja, essa é uma história que merece ser contada. Aconteceu o seguinte: a Beatriz me convidou para ir à festa de aniversário do Fernando, só que o meu carro...
Ambos prosseguiram e se divertiram com a conversa enquanto Cissa pega uma nova muda de roupas. Michel já havia desembarcado em Lisboa há algumas horas, quando a irmã havia saído inutilmente para a festa, enquanto a Família Goulart- composta por Dora, Kleber e Tato- voltavam à cidade depois da temporada nas Bahamas. Como Tato e Michel haviam se encontrado algumas vezes durante a viagem, o fato de serem da mesma capital funcionaria como pretexto para as próximas conversas...
Uma balada é o ponto de encontro entre os dois amigos. E isso não foi mera obra do acaso, já que Michel deu o endereço da festa para Tato ainda no decorrer de sua estadia no hotel. O filho de Kleber e Dora sai de casa tardiamente, sem avisar aos pais, mas o taxista demora a chegar e ele só desembarca quando o irmão de Cissa encerra sua performance, pois faz as vezes de DJ. O atraso não é o suficiente para interferir no diálogo novo que travam ambos, iniciado através de um abraço.
-Que bom ver-te novamente.
-E tu, como estás?
-Do modo que sempre almejo: vivendo intensamente. Pelo visto, tua família aproveitou as Bahamas um pouco mais.
-Merecíamos mesmo estender as nossas férias. Há tempos que propúnhamos fazer uma viagem, mas o Papai se recusava.
-E o que o levou a mudar de ideia?
-Acho que pesou um pouco na consciência nunca termos tido muito tempo para fazermos algo juntos. O Doutor Kleber Lacerda Goulart ama o que faz, sente prazer em mergulhar no trabalho.
-Disseste-me uma vez qual a ocupação dele, mas eu acabei esquecendo.
-Prometes que não vai rir de mim?
-Por quê?
-Porque ele é dono de uma agência de viagens.
-Ah, é verdade- os dois riem- Chega a ser pitoresco um homem sem tempo para viajar com a família ter justamente esse emprego.
-Verdade. Michel, gostaria de pedir-te perdão.
-Pelo quê?
-Por não ter conseguido chegar a tempo para ver a ti como DJ. Tanto que tu insististe e eu acabei não comparecendo.
-Ora, Tato, não precisa culpar-se por conta desse imprevisto. Acontece.
-Espero não ter estragado a noite da gente.
-Claro que não. Ainda mais porque, pela primeira vez não te referiste a nós como “eu” ou “você”, e sim como “a gente”. Tenho pra mim que a noite só está a começar.
-E o que vamos fazer?
-Não sei. Dize-me tu. Acaso não existe algo que possamos fazer, ambos em conjunto?
-Permite-me que eu seja... Um pouco mais sincero?
-Mais sincero do que já és, impossível.
-Olha, Michel, é que... Jamais aconteceu comigo esse tipo de cousa, de me sentir dividido entre o agora e a minha natureza.
-Tato, eu sou alguém que te deseja o melhor. Não estou a imputar-te nenhum tipo de escolha. Façamos um trato.
-Qual?
-No dia em que um de nós se machucar, cessamos com ações, lembranças, qualquer coisa que remeta ao nosso sofrimento. Do contrário, temos o dever de procurarmos a felicidade. OK?
Michel toca em um ponto interessantíssimo: a felicidade. Para alguns, ela é materializada nas coisas mais simples; outros creem que se trata simplesmente de falar mal do próximo. Alguém duvida de que grupo de pessoas Cissa, visivelmente contrariada por ter entrado na Comportas, faz parte nesse momento?
-Sério: o que eu vi lá dentro daquele lugar é de fazer qualquer um corar.
-O problema, Cissa, é que você não está acostumada a frequentar esses lugares- adverte Olívia- Mas se tu se dispuseres a conhecer melhor, sei que amarás.
-Não ligues para isso, Cissa- Beatriz debocha da sua irmã- Antes de saíres, amiga, verifiques se sua bolsa não está repleta de folhetos de literatura bíblica. Se estiver a ponto de nem fechar, foi ela quem colocou.
-Olívia, eu entendo que esta também seja a sua religião, mas eu não me senti à vontade.
-Acontece, Clarissa, que respeito é algo que transcende noções cristãs ou meramente religiosas. Se tu não sabes exercê-lo, não serves para ser cristã, nem religiosa, nem um ser humano que se dê ao respeito.
-Claro... Respeito é assassinar milhões de pessoas em nome de um conceito que não se pode comprovar. Olívia, tu quando queres tratar deste assunto, torna-te verdadeiramente insuportável.
-Não precisas falar deste modo com a sua irmã, Beatriz...
-Não ouses defendê-la, Cissa. O que vocês pregam e acreditam é algo absurdo! Pior é a lavagem cerebral que querem submeter o resto da humanidade.
-Que humanidade, Beatriz? Aquela que tu não tens, justamente por não teres respeito a ninguém?
-Gente... Agora a boa moça revelou-se uma revoltosa.
-Talvez porque tu penses que, calando-me, sou capaz de abrir mão dos meus preceitos. Ocorre que caráter independe de quem concorda conosco.
-Vocês não acham que esse tema se estendeu demais? Chega de discussão, por favor.
-Tens razão, Clarissa. Melhor eu ir ao meu quarto, estudando eu ganho bem mais. Boa noite.
-Vai, insuportável! Vai!
-Nem pra tua irmã tu alivias, hein?
-Cissa, eu já fui a uns cultos que a Olívia me arrastou e, definitivamente, não há nada interessante para continuar indo a uma igreja.
-Pior que eu encontrei um motivo para voltar até aquele lugar.
-Espero que seja um homem que te faças sublimar o Ricardo da mente.
-Mais ou menos...
-O que era, então? Um verbo: ação, estado ou fenômeno da natureza?
-Tinha ele um rosto de menino, daquele que parece nunca ter saído na rua.
-Detento?
-Falo sério, Beatriz! Alguém puro, entende?
-Virgem?
-É. Por que não dizer?
-Santos do pau oco podem ser visto em milhões de lugares, meu anjo. A não ser que... Sua mente planeje depravar o pseudo-seminarista.
-Beatriz... Aquele gajo não parava de me olhar, estava inebriado.
-Use-o como válvula de escape. Se ele é capaz de tirar-te desse estado quase catatônico...
-E repetir toda a dor que o Ricardo me fez passar?
-Não se trata do Ricardo, e sim de si mesma, Clarissa. A vida funciona para descartarmos e sermos descartados. Cada um tem seu dia de glória, nos negócios e no campo sentimental.
-Pra mim, isso tem nome: egoísmo.
-E quando amamos tanto alguém que desejamos que ele não olhe para ninguém, e sim para nós, por termos a certeza de que somente nós o amamos verdadeiramente e com loucura? Nem o mais idiota dos românticos chama isso de egoísmo, e sim de amor. Procures entender o que este rapaz que te fez suportar um congresso de protestantes tem para fixar-se em sua cabeça. E descubra com prazer. Para ambos.
Como Michel passou a noite fora, Cissa dormiu mais uma vez na casa das irmãs Gusmão Alencar. O aventureiro passeou pela Lisboa acompanhado até acabar o combustível de seu carro, quando o dia estava prestes a amanhecer. Depois de uma madrugada de diversão, pediu um táxi para que Tato voltasse a sua residência. Sentiam-se ambos revigorados. O sorriso de filho único de Kleber dissipar-se-ia quando visse o pai na sala, às cinco da manhã. O motivo é que este estava há quatro horas acometido de uma insônia.
-Kleber?- Dora viu que a cama estava vazia e vem até o sofá, no qual está Kleber sentado- Por que a luz está acesa?
-Desde a uma da madrugada estou em claro, Dora.
-Sentes alguma coisa?
-Nada.
-Esperes, que vou te preparar um chá.
-Não adianta, daqui a pouco sairei para a agência.
-Querido, tu não tens condições de conduzir um carro após uma noite sem descansar.
-Tens razão, Dora... Faça-me um favor: prepare o chá e leve lá para cima. Vou recolher-me novamente.
-Está bem, eu não me demoro- Dora cumprimenta o esposo com um delicado beijo e apaga a luz da sala, enquanto Kleber levanta do sofá e vai para a cama. Acreditando que todos estão dormindo ainda, e não atentando para a luz que há pouco estava acesa, Tato entra com os sapatos na mão para não fazer qualquer ruído.
-Otávio?
O susto o faz derrubar os calçados. Olha para Dora, apavorado.
-O que vocês estão fazendo aqui a essa hora?
-De onde estás vindo, Otávio?

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