Nete sai da porta da Comportas e se dirige ao púlpito, de
onde dirigirá o Congresso de Mulheres das Comportas do Céu.
-Quero saudar a amada igreja, e a você que nos visita, com a
paz do Senhor Jesus.
-Amém- eis a resposta de boa parte dos presentes.
-Gostaria de dizer-vos que é um imenso prazer receber a todos
nessa noite, porque sei que viemos aqui para adorar Àquele que morreu na cruz
para salvar-nos.
-Numa igreja protestante? Eu? Devo de estar no “Inferno de
Dante”, ou qualquer um.
-Sejas bem-vinda- Valente tenta iniciar um diálogo.
-Tu também- Cissa responde, de maneira ríspida.
-Tudo bem, obrigado- Fabiano desliga o celular- Não consigo
acreditar.
-O que houve, Pastor?- a aflição de Fabiano atinge Valente.
-Nosso tecladista teve um imprevisto e disse que não poderá
vir hoje.
-Deve ser por conta do temporal forte.
-Antes fosse: o teclado teve que ir para uma assistência
técnica.
-Pensei que as mulheres fossem cantar a capella hoje.
-A quem?
-A capella: sem
acompanhamento.
-Como vim eu parar aqui?- Cissa fala baixo, entredentes.
-Ah, sim. Apenas a maioria das apresentações. A primeira canção,
que será um dueto entre mim e minha esposa, queria que fosse com algum som ao
fundo. O minisystem não pega há dois
meses, minha esperança estava no tecladista.
-Talvez eu possa ajudá-los.
-Não vejo como.
-Tocando o sax. Só precisaria saber qual música querem
interpretar.
-Ah, isto é fácil. Sabes aquele hino, o “Hallelujah”?
-Maravilhoso. Cantávamos muito no orfanato.
-Podes tocar para a igreja?
-Se não me chamassem, eu mesmo me convidaria. Vou para atrás
do púlpito, então- Valente carrega o saxofone.
-Sejas muito bem-vinda, irmã. Minha esposa visitou a igreja
de vocês, em Loures, e fez questão de vê-las interpretando os louvores da
Harpa.
-Harpa? Meu senhor, está havendo um engano grave. Eu não sou
irmã de ninguém deste lugar, nem mesmo evangélica.
-E como se explica este figurino?
-Qual o problema? Estou até mais composta do que em dias
normais. A louca lá da frente que me arrastou até aqui.
-Perdão, é que minha esposa realmente acreditou que você
fizesse parte do coral de mulheres lourenses.
-Trate de me lembrar de não viajar até Loures tão cedo...
-Mesmo assim, eu peço que fiques à vontade. Não foi em vão
que tu pisaste aqui. Vai que recebeste algum livramento...
-Pois é. Quem é que saberá?
-Será que o meu varão valoroso pode vir até o púlpito, por
gentileza?- Nete fica enciumada com a conversa entre Fabiano e Cissa.
Inocentemente, o marido obedece à esposa e segue até o púlpito.
-Essa coisa de “varão valoroso” contagia tanto quanto
coqueluche- Valente observa, em voz baixa.
-Eu é que não ficarei mais um segundo que seja neste lugar-
Cissa se levanta do banco e tenta sair, mas é impedida pela chuva, disposta a
não dar trégua.
Valente, Nete e Fabiano interpretam “Hallelujah”, e muitos ficam admirados com a presença e o talento do
saxofonista, que ali pisava pela primeira vez. Sem ter como sair, Cissa volta
ao lugar no qual estava e acompanha o culto. Terminada a primeira canção
entoada pelos pastores, o jovem retorna para o lado de Cissa, mal disfarçando
seu contentamento em estar perto de alguém tão lindo e, à primeira vista,
simpático. O que, entretanto, atraiu-lhe, foi o fato de conhecerem-se na
igreja. Em sua concepção, a inquieta moça frequentava o templo, e somente por
isso merecia sua atenção. Era como se estivesse dotada de todas as virtudes
concedidas a um único ser humano.
Após ver as protestantes lourenses louvarem dois cânticos da
Harpa Cristã e o próprio coral feminino da Igreja Comportas do Céu, os
presentes acompanham a pregação daquela noite, realizada através de Nete. Até
então, Cissa continuava impaciente e irritada, procurando sequer se lembrar do
compromisso que perdeu, a fim de não ficar ainda mais nervosa. Enquanto Valente
se vê completamente envolvido com o tema, a companhia da garota ao lado era o
relógio. O tempo passava vagarosamente... Só para ela...
Chegou a hora na qual Fabiano toma a palavra no congresso
organizado e dirigido por sua esposa, com a finalidade de deixar uma bênção na
despedida dos que ali estavam. Um pedido, inusitado para os visitantes e comum
para os que vão diariamente ao templo, é feito pelo pastor:
-Respirem fundo, olhem para os irmãos que estão do seu lado e
digam com fé.
Empolgado com certa restrição, o saxofonista vira para Cissa,
que prefere olhar pra cima.
-Irmã?- indaga o rapaz, fazendo a jovem olhar para ele,
praticamente revirando os olhos.
-Repitam comigo- a partir daí, Fabiano fala pausadamente para
que todos possam repetir- “Eu creio que tu receberás o milagre da parte de
Deus, e quero ver-te aqui para contares a tua bênção”. Amém?
-Amém.
-Agora, abrace esse irmão que está do seu lado e diga em seu
ouvido que quer vê-lo de volta à casa do Senhor. A paz do Senhor Jesus.
Valente troca um abraço com Cissa e diz aquilo que Fabiano
ordenou à igreja.
-Quero ver-te de volta à casa do Senhor, minha amada.
Algo é dito para Valente, e Cissa aproveita que muitos estão
saindo para deixar o templo. A misteriosa frase deixa o saxofonista intrigado,
mas ele não a segue, preferindo cumprimentar Nete e Fabiano. Na volta pra casa,
que ela particularmente achou que nunca fosse se concretizar, Michel está à sua
espera.
-Não acredito... Não acredito que você voltou!- corre para
abraçá-lo.
-Nossa! Quanta vontade de ver o teu irmão! Ai- Michel recebe
um safanão da irmã.
-Nem penses em se atrever a me abandonar novamente, ouviste? Tu
não sabes o quanto eu sofri com sua ausência.
-Pensei que estivesses acostumada com meu modus operandi.
-Estou a falar sério, Michel. Foi difícil sem ter-te por
perto.
-Por quê? O que aconteceu?
-Ricardo. Só este nome já é capaz de explicar tudo, não é?
-Ainda insistindo nesse gajo? Mas tu pareces ser desprovida
de inteligência, é inacreditável.
-Quanto a isto, não se preocupe. Acabou. Estou lutando para
esquecê-lo.
-Pelo que vejo, a tarefa não tem sido executada com sucesso.
Nem mesmo com afinco.
-Mas... Conta-me da viagem, como é que foi lá nas Bahamas?
-Um verdadeiro paraíso, Cissa. Se eu pudesse, jamais sairia
de lá.
-Nossa, é tão bom assim para não quereres voltar à tua casa?
-Digamos que eu lamento mais por não poder desfrutar das
companhias de lá do que propriamente pelo aspecto paradisíaco do lugar.
-Hum... Apaixonou-se?
-Clarissa, o único homem pelo qual eu me apaixono todos os
dias sou eu mesmo.
-E como sei...
-Nossa mãe, estás toda molhada! O que houve?
-Prestes a pegar uma pneumonia. Vou me trocar- Cissa tira a
blusa e vai ao seu quarto, sendo seguida por Michel.
-Não me venhas dizer que foi por conta da chuva, pois ela até
diminuiu.
-Agora, não é? Porque quando cheguei àquela igreja, estava
terrível.
-Igreja? Não, espera um pouco. Agora o Ricardo te fez apelar
para a religiosidade?
-Nada disso. Por mais louca que seja, essa é uma história que
merece ser contada. Aconteceu o seguinte: a Beatriz me convidou para ir à festa
de aniversário do Fernando, só que o meu carro...
Ambos prosseguiram e se divertiram com a conversa enquanto
Cissa pega uma nova muda de roupas. Michel já havia desembarcado em Lisboa há
algumas horas, quando a irmã havia saído inutilmente para a festa, enquanto a
Família Goulart- composta por Dora, Kleber e Tato- voltavam à cidade depois da
temporada nas Bahamas. Como Tato e Michel haviam se encontrado algumas vezes
durante a viagem, o fato de serem da mesma capital funcionaria como pretexto
para as próximas conversas...
Uma balada é o ponto de encontro entre os dois amigos. E isso
não foi mera obra do acaso, já que Michel deu o endereço da festa para Tato
ainda no decorrer de sua estadia no hotel. O filho de Kleber e Dora sai de casa
tardiamente, sem avisar aos pais, mas o taxista demora a chegar e ele só
desembarca quando o irmão de Cissa encerra sua performance, pois faz as vezes
de DJ. O atraso não é o suficiente para interferir no diálogo novo que travam
ambos, iniciado através de um abraço.
-Que bom ver-te novamente.
-E tu, como estás?
-Do modo que sempre almejo: vivendo intensamente. Pelo visto,
tua família aproveitou as Bahamas um pouco mais.
-Merecíamos mesmo estender as nossas férias. Há tempos que
propúnhamos fazer uma viagem, mas o Papai se recusava.
-E o que o levou a mudar de ideia?
-Acho que pesou um pouco na consciência nunca termos tido
muito tempo para fazermos algo juntos. O Doutor Kleber Lacerda Goulart ama o
que faz, sente prazer em mergulhar no trabalho.
-Disseste-me uma vez qual a ocupação dele, mas eu acabei
esquecendo.
-Prometes que não vai rir de mim?
-Por quê?
-Porque ele é dono de uma agência de viagens.
-Ah, é verdade- os dois riem- Chega a ser pitoresco um homem
sem tempo para viajar com a família ter justamente esse emprego.
-Verdade. Michel, gostaria de pedir-te perdão.
-Pelo quê?
-Por não ter conseguido chegar a tempo para ver a ti como DJ.
Tanto que tu insististe e eu acabei não comparecendo.
-Ora, Tato, não precisa culpar-se por conta desse imprevisto.
Acontece.
-Espero não ter estragado a noite da gente.
-Claro que não. Ainda mais porque, pela primeira vez não te
referiste a nós como “eu” ou “você”, e sim como “a gente”. Tenho pra mim que a
noite só está a começar.
-E o que vamos fazer?
-Não sei. Dize-me tu. Acaso não existe algo que possamos
fazer, ambos em conjunto?
-Permite-me que eu seja... Um pouco mais sincero?
-Mais sincero do que já és, impossível.
-Olha, Michel, é que... Jamais aconteceu comigo esse tipo de
cousa, de me sentir dividido entre o agora e a minha natureza.
-Tato, eu sou alguém que te deseja o melhor. Não estou a
imputar-te nenhum tipo de escolha. Façamos um trato.
-Qual?
-No dia em que um de nós se machucar, cessamos com ações,
lembranças, qualquer coisa que remeta ao nosso sofrimento. Do contrário, temos
o dever de procurarmos a felicidade. OK?
Michel toca em um ponto interessantíssimo: a felicidade. Para
alguns, ela é materializada nas coisas mais simples; outros creem que se trata
simplesmente de falar mal do próximo. Alguém duvida de que grupo de pessoas
Cissa, visivelmente contrariada por ter entrado na Comportas, faz parte nesse
momento?
-Sério: o que eu vi lá dentro daquele lugar é de fazer
qualquer um corar.
-O problema, Cissa, é que você não está acostumada a
frequentar esses lugares- adverte Olívia- Mas se tu se dispuseres a conhecer
melhor, sei que amarás.
-Não ligues para isso, Cissa- Beatriz debocha da sua irmã-
Antes de saíres, amiga, verifiques se sua bolsa não está repleta de folhetos de
literatura bíblica. Se estiver a ponto de nem fechar, foi ela quem colocou.
-Olívia, eu entendo que esta também seja a sua religião, mas
eu não me senti à vontade.
-Acontece, Clarissa, que respeito é algo que transcende
noções cristãs ou meramente religiosas. Se tu não sabes exercê-lo, não serves
para ser cristã, nem religiosa, nem um ser humano que se dê ao respeito.
-Claro... Respeito é assassinar milhões de pessoas em nome de
um conceito que não se pode comprovar. Olívia, tu quando queres tratar deste
assunto, torna-te verdadeiramente insuportável.
-Não precisas falar deste modo com a sua irmã, Beatriz...
-Não ouses defendê-la, Cissa. O que vocês pregam e acreditam
é algo absurdo! Pior é a lavagem cerebral que querem submeter o resto da
humanidade.
-Que humanidade, Beatriz? Aquela que tu não tens, justamente
por não teres respeito a ninguém?
-Gente... Agora a boa moça revelou-se uma revoltosa.
-Talvez porque tu penses que, calando-me, sou capaz de abrir
mão dos meus preceitos. Ocorre que caráter independe de quem concorda conosco.
-Vocês não acham que esse tema se estendeu demais? Chega de
discussão, por favor.
-Tens razão, Clarissa. Melhor eu ir ao meu quarto, estudando
eu ganho bem mais. Boa noite.
-Vai, insuportável! Vai!
-Nem pra tua irmã tu alivias, hein?
-Cissa, eu já fui a uns cultos que a Olívia me arrastou e,
definitivamente, não há nada interessante para continuar indo a uma igreja.
-Pior que eu encontrei um motivo para voltar até aquele
lugar.
-Espero que seja um homem que te faças sublimar o Ricardo da
mente.
-Mais ou menos...
-O que era, então? Um verbo: ação, estado ou fenômeno da
natureza?
-Tinha ele um rosto de menino, daquele que parece nunca ter
saído na rua.
-Detento?
-Falo sério, Beatriz! Alguém puro, entende?
-Virgem?
-É. Por que não dizer?
-Santos do pau oco podem ser visto em milhões de lugares, meu
anjo. A não ser que... Sua mente planeje depravar o pseudo-seminarista.
-Beatriz... Aquele gajo não parava de me olhar, estava
inebriado.
-Use-o como válvula de escape. Se ele é capaz de tirar-te
desse estado quase catatônico...
-E repetir toda a dor que o Ricardo me fez passar?
-Não se trata do Ricardo, e sim de si mesma, Clarissa. A vida
funciona para descartarmos e sermos descartados. Cada um tem seu dia de glória,
nos negócios e no campo sentimental.
-Pra mim, isso tem nome: egoísmo.
-E quando amamos tanto alguém que desejamos que ele não olhe
para ninguém, e sim para nós, por termos a certeza de que somente nós o amamos
verdadeiramente e com loucura? Nem o mais idiota dos românticos chama isso de
egoísmo, e sim de amor. Procures entender o que este rapaz que te fez suportar
um congresso de protestantes tem para fixar-se em sua cabeça. E descubra com
prazer. Para ambos.
Como Michel passou a noite fora, Cissa dormiu mais uma vez na
casa das irmãs Gusmão Alencar. O aventureiro passeou pela Lisboa acompanhado
até acabar o combustível de seu carro, quando o dia estava prestes a amanhecer.
Depois de uma madrugada de diversão, pediu um táxi para que Tato voltasse a sua
residência. Sentiam-se ambos revigorados. O sorriso de filho único de Kleber
dissipar-se-ia quando visse o pai na sala, às cinco da manhã. O motivo é que
este estava há quatro horas acometido de uma insônia.
-Kleber?- Dora viu que a cama estava vazia e vem até o sofá,
no qual está Kleber sentado- Por que a luz está acesa?
-Desde a uma da madrugada estou em claro, Dora.
-Sentes alguma coisa?
-Nada.
-Esperes, que vou te preparar um chá.
-Não adianta, daqui a pouco sairei para a agência.
-Querido, tu não tens condições de conduzir um carro após uma
noite sem descansar.
-Tens razão, Dora... Faça-me um favor: prepare o chá e leve
lá para cima. Vou recolher-me novamente.
-Está bem, eu não me demoro- Dora cumprimenta o esposo com um
delicado beijo e apaga a luz da sala, enquanto Kleber levanta do sofá e vai
para a cama. Acreditando que todos estão dormindo ainda, e não atentando para a
luz que há pouco estava acesa, Tato entra com os sapatos na mão para não fazer
qualquer ruído.
-Otávio?
O susto o faz derrubar os calçados. Olha para Dora,
apavorado.
-O que vocês estão fazendo aqui a essa hora?
-De onde estás vindo, Otávio?
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