27/10/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 21


-Dr. Lopes, talvez eu possa doar um dos meus rins para o Kleber. Posso, mesmo sendo a esposa?
-Claro que pode, mas precisamos fazer exames para saber se tu és compatível com ele. O mais natural é que o doador seja alguém que possua laços sanguíneos com o paciente. Vamos fazer os teus exames e logo saberemos se tu és apta para doar um rim ao Kleber.
-Eu já estava a telefonar para o Hélio, o irmão do meu marido, mas ele não atende.
-Não percamos tempo, Dora. Temos que aferir se tu és apta para fazer o transplante.
-Quanto tempo o meu marido ficará desacordado, Lopes?
-Por mais algumas horas. O pior é que, ao despertar, ele voltará a sentir as dores intensas.
-Vamos fazer o seguinte: eu ligarei mais uma vez para o meu cunhado. Ele também poderá vir para ajudar o Kleber.
-Está bem, então. Mas não demores. Vou preparar a sala de exames para que te recebam.
-Obrigada, Doutor- Dora insiste com outro telefonema- Atendas, Hélio. Atendas de uma vez... - a chamada é insistente, mas Hélio ainda não voltou para a sua sala. Desesperada pelo estado de saúde de seu marido, Dora faz os exames solicitados por Lopes.
Parece uma tortura para a dona de casa, como se estivesse pressentindo que todo o seu esforço na tentativa de salvar a vida de seu marido será inútil. Não totalmente... Mas o período utilizado para a realização dos testes que possam comprovar sua compatibilidade para o transplante é usado para que haja uma conversa definitiva entre Cissa e a visita indesejável que chegou ao apartamento dos Irmãos Marques Barboza. Em ambas as ocasiões, tudo soava como indigesto ao extremo.
-Sentes, Ricardo- Michel procura ser gentil com o ex-namorado da irmã.
-Obrigado.
-O que te traz aqui?
-Eu vou estar no meu quarto, fiquem à vontade- Cissa faz o anúncio.
-Por favor, Cissa. Eu insisto que fiques aqui. O assunto tem a ver contigo. Aliás, eu vim aqui para falar justamente contigo.
-Ah, sabemos o quão insistente tu és. Fui eu quem deixei de sê-lo, quando livrei-me da tua péssima influência. Aliás, não entendo o que temos para tratar depois de tanto tempo sem nos falarmos. Ao menos de minha parte, eu não tenho absolutamente nada para falar contigo.
-Muito ficou por dizer quando nós rompemos.
-Quando tu rompeste comigo, é o que queres dizer?
-Interpretes desta forma, tens todo o direito de ficar magoada.
-Ferida de morte! O que fizeste eu não desejo nem para o pior dos meus inimigos. A maneira como tu trataste a mim, como se eu não fosse ninguém, descartando-me ao me tratar como se eu não fosse a tua namorada, como se nem mesmo fosse eu mulher. Um bicho, para ti, tem mais serventia do que eu, que não fiz outra cousa além de amar-te.
-Hoje eu sei perfeitamente bem. E somente o sei por não ser mais o mesmo de antes.
-Verdade? E o que de tão impactante aconteceu, para não seres mais o mesmo canalha?
-Cissa, mantenhas a calma!
-Como queres que eu faça isto, Michel? Com este imbecil na minha frente, na minha casa, agindo como se não tivesse havido nada? Como se a minha raiva não tivesse razão de ser?
-Falas como se eu não estivesse aqui, bem na tua frente...
-Porque não estás! Para mim, deixaste de existir há muito tempo. Tu contribuíste para que eu pensasse assim!
-Olhes bem, Cissa... Não sou mais o mesmo homem, nem íntima e muito menos fisicamente. Não está nítida a diferença entre o rapaz que conheceste e o homem de agora?
-Aonde queres chegar com esta conversa, Ricardo?
-Ficaste boa parte do tempo que estivemos separados sem saber notícias minhas, não foi? Pois tem uma razão de ser.
-Ricardo, depois do teu rompimento com a minha irmã, foste para outra cidade. O que eu sei é o que todos nós sabemos.
-Ou o que eu deixei que soubessem.
-Digas logo o que queres com todo este lamento, Ricardo- Cissa faz questão de que as poucas frases ditas a Ricardo sejam acompanhadas por muita rispidez.
-Bem... Como vocês sabem, assim que o meu namoro com a Clarissa acabou, eu...
-Por opção minha, pois não queria mais ser feita de imbecil na frente de todos, já que tu escancaravas o teu caso com a Telma. O nome soa-te familiar? Aquela com a qual eu flagrei a ti na cama!
-Hoje eu sei muito bem quem é a Telma.
-Sabes como? Acaso ela fez o mesmo que tu fizeste comigo? A traição?
-Muito pior que isto.
-Não entendo o que pode ser pior do que ser passada para trás por quem se ama.
-Quando eu te disser, entenderás por que eu vim aqui, Clarissa.
-Sou toda ouvidos.
-Como tu bem pontuaste, Michel, eu viajei para outra cidade com a Telma. Queria começar uma vida ao lado dela.
-Ou seja: fazer tudo que eu pedia, e que te recusavas a conceder. Eu não vou ficar nesta sala nem mais um segundo que seja.
-Clarissa, vai interessar e muito a ti. Portanto, é melhor que não saias.
-Dizes de uma vez.
-Há dois anos, eu... Tinha vindo de uma festa com a Telma e...
-Termines, Ricardo- Michel percebe a aflição do rapaz.
-Eu estava dirigindo. Tanto eu quanto a Telma estávamos cansados. Até cheguei a sugerir que tomássemos um táxi, mas ela preferiu que eu dirigisse o meu próprio carro. Quando ainda estávamos na metade do caminho, ela aproximou-se do meu ouvido e começou a dizer coisas que... Causavam excitação em mim.
-Poupe-nos dos detalhes sórdidos de tua história com aquela mulher...
-Esta é a história, Clarissa, e infelizmente eu não posso fugir dela. Enfim... – Ricardo começa a narrar vagarosamente o que lhe havia sucedido- A sua boca havia chegado ao meu pescoço, e beijou-me com uma urgência, típica do comportamento da Telma. Por alguns segundos, eu segui por uma estrada longa, nem mesmo importando-me por onde eu estava, se era o caminho certo. Foi quando eu senti um calor sobre o meu abdômen. Era ela que não esperou sequer a oportunidade para desabotoar a camisa que eu usava e acariciava a mim, como se fosse a primeira vez que estivesse ao meu lado. Cheguei a pensar em parar o carro naquela estrada erma, escura, em meio aquela neblina, e tomar o seu corpo para mim, amá-la naquele mesmo lugar. Telma voltou a beijar-me, mas não mais no pescoço. Aproximou os seus lábios dos meus, e aquilo me conduzia à loucura. Os beijos que ela me deu naquela ocasião eram ainda ardentes do que ela costumava agir, não sei o que havia acontecido. Sem que eu mesmo sentisse, a braguilha da calça que eu vestia naquela madrugada foi aberta. Telma desprendeu-se do cinto de segurança e colocou um dos braços sobre a minha cabeça, e a sua mão direita, quando dei por mim... Daí por diante, a única coisa da qual consigo lembrar é da enfermeira correndo para chamar o médico porque, enfim, tinha acordado.
-Um acidente, Ricardo? Por esta razão ficamos tanto tempo sem notícias tuas?
-Onze meses em coma, Michel. O mundo passou, evoluiu e eu estava prostrado numa maca de hospital.
-Que coisa horrível... Mas e a Telma?
-Como ela estava sem o cinto de segurança, foi lançada para fora do carro quando ele capotou. O máximo que ela sofreu foi uma fratura. Ainda assim, conseguiu acionar os paramédicos pelo celular, já que eu fiquei preso entre as ferragens. Mas o dia do acidente foi a última vez que vi a Telma.
-Como assim foi a última vez? Vocês estavam juntos, tinham um relacionamento!
-Tínhamos- a declaração faz Cissa, que até então estava com o rosto direcionado para a direção oposta em que estavam o irmão e o ex-namorado, virar para ver a expressão derrotista do rapaz- Nos primeiros dias, eu soube que ela estava comigo, até que o médico disse que a minha situação era irreversível, que eu não acordaria e que, caso eu voltasse a despertar, ficaria com graves sequelas. Quando eu voltei para casa, depois de um tempo fazendo fisioterapia para recuperar parte dos movimentos, eu não encontrei mais nada que remetesse sequer à lembrança da Telma. Segundo o que me contaram, ela viajou para o Japão.
-Mas e tu, Ricardo? Estás como agora?
-Voltando à minha vida. Mas eu não poderia seguir em frente porque eu precisava fazer uma cousa, depois de todo este tempo, em que refleti sobre o que me aconteceu. Eu vim aqui para pedir-te perdão, Cissa.
-A mim?
-Tu foste a mais prejudicada pela minha ausência proposital, pela minha falta de caráter, pela minha falta de amor. Por isto, eu te devo desculpas- ajoelha-se diante da moça- Eu sei que nada do que eu disser vai apagar o que eu te fiz, mas...
-Não é preciso chegares a tanto, Ricardo...
-Por favor, Clarissa. Eu não vou conseguir viver com a consciência tranquila se não me perdoares de coração. Por favor, entendas o meu remorso.
-Ricardo... Se tu precisas disto para seguir tua vida em paz... Eu te perdoo, sim.
-De verdade?
-Olhes para mim. Eu ainda sou a mesma: transparente no que penso, no que sinto. Conheces-me melhor do que eu mesma. Tua tormenta é por causa do perdão que eu ainda não te dei? Então, sigas em paz. A minha vida transcorreu normalmente porque eu não fui capaz de alimentar mágoas.
A noiva de Valente abraça o ainda debilitado rapaz, deixando Michel abismado com o autocontrole de sua irmã.
-Obrigado. Eu precisava realmente disso, da tua sinceridade. Devia-te muito, Clarissa.
-Vais, Ricardo. Sigas o teu rumo, e não te preocupes com nada. Todos nós podemos recomeçar- a frase faz com que o ex-namorado da vendedora comece a chorar, comovendo Michel, que abraça o visitante.
-Fiques bem, Ricardo. Eu fico feliz que tu estejas pronto para começar de novo- Michel aperta a mão do rapaz.
-Obrigado, Michel. De coração, muito obrigado- sai do apartamento, deixando que o DJ feche a porta.
-Gente... O que foi que aconteceu aqui? Foi inacreditável! Não, e eu nem sei o que é mais absurdo de acreditar: o Ricardo neste estado deplorável que nós vimos ou tu, que ficaste compadecida da sua situação estarrecedora.
-Compadecida? Eu? Ainda por cima, pelo Ricardo? Pareces não conhecer mesmo a irmã que tens, Michel!
-Então, o que eu vi aqui foi... Uma encenação?
-Eu fiquei impressionada, juro-te. Mas não com o que aconteceu, nem mesmo com o que aquele escroque disse, tampouco com o seu pedido de desculpas.
-Do que falas exatamente?
-Do meu autocontrole. A minha vontade era de rir desesperadamente frente ao rosto do Ricardo, e gritar que ele mereceu cada dia de sofrimento que passou. Aliás, perto das lágrimas que eu derramei pelo fato de ele ter me trocado por outra, foi pouco!
-Minha irmã... – Michel senta em seu sofá- Agora tu foste longe demais. Nunca pensei que tivesse tanto ódio guardado pelo Ricardo.
-Mas a vida, quando quer, é justa, Michel. O mundo cobrou do Ricardo a conta que eu não consegui cobrar, apesar de ser eu a sua maior vítima. Hoje, basta olhar para mim. Estou noiva de um homem que me valoriza. E que é totalmente o oposto do Ricardo.
-Mas também é o teu oposto. Lembras que disseste que estavas com o Valente justamente porque ele não tem nada de teu?
-Só que ele tem caráter. E o meu Valente não precisa mendigar atenção, perdão, carinho... Isto tudo ele tem. Queres saber? Achei bem merecido. A única lástima nesta história toda é que não testemunhei o dia no qual Ricardo deu-se conta de que foi abandonado pela amante. Queria muito ter visto isto de perto... – seca uma lágrima em meio a um sorriso- Ganhei o meu dia, Michel.
Acostumado a ver a irmã agir de maneira passional, Michel fica estupefato de presenciá-la falando de alguém com tamanha frieza. Nem parece ser a moça desesperada por carinho alheio que conviveu com o rapaz durante toda a vida...
Após passar por todos os exames, Dora está sozinha no quarto em que Kleber está instalado. O efeito do sedativo administrado por Lopes começa a dissipar-se, mas o agente de viagens apenas se move, nada falando. O médico volta para falar com a esposa.
-E então, Doutor?
-Estou com o resultado dos teus exames aqui, Dora.
-O que dizem eles?
-Infelizmente, tu não és compatível com o Kleber.
-Ah, não. Não pode ser...
-Convoques outras pessoas da família o quanto antes, alguma delas pode doar um rim ao teu marido.
-Até agora, o Hélio não me atende. Eu já estou desesperada, sem saber o que fazer. A falta de notícia e o quadro do Kleber que não muda estão deixando-me ainda mais atordoada!
-Não deixes de insistir. Cada momento é precioso para salvar a vida do Kleber.
-Já sei... Eu vou ao restaurante do meu cunhado, o Recifeeling. Talvez ele esteja lá. Por favor, Doutor... Se acontecer alguma cousa, contates-me o mais rápido possível.
-Fiques tranquila, eu avisarei se for necessário.
-Dora... – Kleber acorda zonzo.
-Fales, meu amor.
-O que houve comigo? Onde estou?
-Não te preocupes com nada agora. Tu vais ficar bem, eu posso garantir.
A esposa de Kleber vai ao restaurante de Hélio, encontrando Cissa no caminho, já que ela também está indo ao Recifeeling, depois de ter passado em um shopping. Apressada, a vendedora entra no recinto antes da cunhada do proprietário. Vai ao encontro de Valente, com uma sacola rosada em mãos.
-Meu amor?
-Cissa, que surpresa!- cumprimenta a noiva com um beijo- Eu não te esperava aqui.
-A intenção foi exatamente esta: fazer-te uma surpresa.
-Muito bem-vinda, por sinal.
-Pensei em acompanhar uma das tuas apresentações hoje. Incomodo?
-Que pergunta é esta? Claro que fico feliz por prestigiar-me.
-Trouxe isto para ti.
-O que é?
-Abres.
-Deixa-me adivinhar: é de comer?
-Não.
-É um relógio?
-Não, mas tem hora.
-Hum, será que é o que estou a pensar?- desembrulha o presente- Que lindo, Cissa!
-Gostaste do celular?
-Adorei... Quer dizer, gostei, porque adorar, eu só adoro Um. Mas ele é muito lindo.
-Estavas mesmo precisando, aquele teu é bastante ultrapassado. Inclusive, ele vem com uma surpresa: o primeiro contato é o número da tua noiva.
-Tu pensaste em tudo mesmo, hein? Mas até que eu gostava daquele meu, mesmo sendo ele mais simples.
-Simples? Querido, aquele teu telefone móvel parecia mais um tijolo dos anos noventa! Daquele lá, só se salva o chip! Desapegues!
-Senta-te aí, eu vou reservar a mesa para tu usares durante o show da noite- Valente beija o rosto da noiva e fala com Alessandra- Tens como reservar aquela mesa para a minha noiva? Podes deixar, que eu pago.
-Tudo bem, Valente. A mesa está reservada para a Cissa.
-Obrigado, Alessandra- o saxofonista começa a apresentação, tocando algumas canções do nordeste brasileiro, de um repertório escolhido a dedo por Hélio, profundo admirador desta cultura. Dora entra no restaurante à procura de seu cunhado.
-Boa noite, Senhora Isadora.
-Alessandra, onde está o Hélio? Passei o dia inteiro a ligar e ele não me atende de maneira nenhuma!
-Que estranho, o Hélio não é disto... Talvez ele tenha esquecido o celular no seu escritório.
-Como assim? Ele não está no restaurante?
-Passou aqui de manhã, mas saiu para tratar com os fornecedores e não deu um prazo para voltar. Inclusive, estranho ele ainda não ter voltado. Até a apresentação de saxofone já começou.
-Preciso que tu me faças um favor, Alessandra. Assim que o Hélio chegar, tu vais dizer para ele ir à clínica do Dr. Jaime Lopes. Ele sabe onde fica.
-O que aconteceu?
-Meu marido está internado lá por conta de um grave problema e eu preciso que ele vá até lá. É caso de vida ou morte.
-Está bem, senhora. Avisarei ao Hélio quando ele voltar ao restaurante.
-Obrigada. Até mais ver.
Ao sair do restaurante, Dora vai até o ponto de taxistas e paga por uma corrida.
-Para que lugar, senhora?
-Para a clínica... Não, eu tive outra ideia... Vamos até o Edifício Portuário.
Tato está sozinho, acompanhando a programação televisiva, até que ouve a campainha do apartamento alugado pelo saxofonista.
-Que estranho... Será que o Valente esqueceu-se de algo ou é a noiva que veio procurá-lo?- abre a porta, ficando surpreso com a presença de Dora, que entra rapidamente.
-Preciso falar contigo, Otávio.
-Mãe, o que estás a fazer aqui?
-Tato, eu não sei nem como começar...
-Aconteceu alguma coisa com a senhora?
-Filho, tu vais ter que salvar a vida do teu pai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário