-Está tudo bem, Kleber? Kleber?- a dona de casa fica aflita
com o grito.
-Não te preocupes.
-O que houve contigo?
-Já te falei que não foi nada. Voltes a dormir.
Para não se indispor com o marido, coisa que mais tem feito
nos últimos dias, Dora obedece a Kleber. O agente de viagens, por sua vez,
recupera-se levemente da indisposição, permanecendo com as mãos sobre o ventre.
A cena já havia sido vivenciada por ele há tempos, e o esclarecimento sobre o
que tinha foi protelado por conta do trabalho... Era a hora de procurar um
médico.
Pode ainda ser cedo em Lisboa, mas Olívia já está se
arrumando para ir à faculdade naquela tarde, que se aproxima. Antes, liga o notebook e inicia uma conversa com
Beatriz, ainda sonolenta por ter frequentado uma rave na noite anterior.
-E então, Olívia? Como é que está tudo por aí?
-Às mil maravilhas. Nunca pensei que fosse gostar tanto de um
lugar como eu estou adorando tudo isto aqui.
-Teu sorriso está diferente... Algum motivo em especial, além
do mestrado?
-É, tu me conheces bem.
-O que fazer, já que sou tua irmã? Mas contes. O que há de
novo?
-Beatriz, eu conheci um gajo que...
-Mas vejas só! Logo tu, interessada em alguém?
-Se ainda fosse um homem comum, mas não...
-Muito bonito?
-Bonito ainda é pouco para defini-lo.
-Já sei: também é crente como tu. Só isto explica tanto
entusiasmo.
-Eu disse o quanto tu me conhecias bem.
-Onde vocês conheceram-se?
-Na universidade. Ele é doutorando e está escrevendo uma tese
sobre geriatria. E em poucos minutos de conversa, já mostrou-se como alguém
muito especial.
-Invistas neste homem.
-Beatriz!
-Teu interesse nele é nítido, querida. Não tens o que
esperar. E se o desejo for recíproco...
-Sabes bem que eu não vou fazer o que me sugeres.
-Claro, esqueci-me que agora tens outro chato por perto. Mas
permanecendo no assunto: ele demonstrou estar interessado em ti?
-Sim. E é isto o que me deixa mais nervosa.
-Vou dar-te um conselho que tenho certeza de que podes
segui-lo sem que me recrimines.
-Do que se trata?
-Uma vez que o rapaz promete retribuir o que tu sentes, vejas
no que pode dar. Não fujas. Afinal, não é isto que todas nós procuramos: homens
com interesses em comum?
-Estás certa. Verei se o encontro hoje na universidade.
-Qual o seu nome?
-Nicolas.
-Sendo assim, toques num tema que tenhas percebido que ele
gosta tanto quanto tu. Desta forma, não faltará assunto, tampouco oportunidades
para conversar.
Beatriz não foi tão agressiva ou invasiva quanto costuma ser,
e Olívia aplicaria o conselho dado por sua irmã. Claro que, por trás da boa
ação, havia o interesse de ver a irmã desprendendo-se do preceito de pureza que
a religião tanto prezava, mas tudo fora dito num tom que não a afastasse.
Mas Nete estava realmente preocupada com um certo assunto, e
isso ficou latente durante o intervalo de um ensaio das componentes de um coral
da Igreja Comportas do Céu, cuja ocasião traz Cissa como integrante. Após o
último hino, a esposa de Fabiano chamou a vendedora em particular.
-Precisava falar tanto contigo, filha...
-A senhora parece estar tão aflita! O que houve, irmã?
-É... É sobre o teu noivo.
-Aconteceu alguma cousa com o Valente?
-Sim, com certeza. Mas o que houve de tão grave é o fato do
qual todos nós temos conhecimento: a presença do gajo que... Que o teu irmão
conhece.
-Olha, Irmã Nete, se a senhora vai me dizer que acredita que
eu concordo com a presença do Otávio na casa do meu noivo, saibas que eu sou
abertamente contra.
-Não, querida, eu sei que tu não queres o rapaz lá. Mas
ocorreu-me uma curiosidade, e eu queria que tu pudesses esclarecer-me.
-Se eu souber do que se trata...
-O Valente disse quando pretende casar-se contigo?
-Não, ele não estabeleceu um prazo. Provavelmente quer juntar
dinheiro para comprar uma casa própria e... Eu também havia dito que queria
abrir minha própria confecção de roupas. O noivado, para mim, foi uma surpresa,
pois pensei que ele esperaria mais.
-Aproveites esse pretexto e o use a seu favor.
-Como?
-Faças o Valente adiantar o casamento!
-Com que propósito, irmã?
-Querida, penses comigo: casada com o Valente, tu terás que
viver no apartamento do teu marido. Logo, o rapaz vai ter que sair de lá.
-A presença do Otávio não incomoda ao Valente, por incrível
que isto possa parecer.
-Mas incomoda a mim, à igreja, aos vizinhos e, certamente, a ti
também. Sabes o que eu cheguei a presenciar na rua? Uma discussão entre o rapaz
que o Valente abrigou e o próprio pai, para quem se atreveu a falar de maneira
nem um pouco respeitosa. Sinceramente, eu fiquei assustada com a sua
agressividade. E também...
-Por favor, não me escondas nada.
-Ah, é que... O pai do gajo o flagrou dando um abraço no
Valente.
-Este tipo de gesto não é para ser entendido de maneira errada,
irmã...
-Não, longe de mim, imagines... O que me assustou foi que o
pai do rapaz disse, claramente, que os dois tinham algo a mais do que amizade.
-Que absurdo! Como é que ele pôde pensar uma coisa tão
absurda?
-O que me intriga, Cissa, é ele falar isto em público. Por
isso que eu fiquei tão aflita. Já imaginaste se ele espalhar essa calúnia
acerca do Valente?
-Meu medo também é este, irmã. O problema é que o meu noivo,
como bem todos devem saber, ama olhar para o próximo.
-Só que, às vezes, o próximo não merece tanta atenção
sendo-lhe dispensada.
-Concordo plenamente. Ainda assim, não consegui convencer
Valente a desfazer-se da presença desse novo amigo.
-O adiantamento do casamento é mais um motivo para insistir.
Se ele quiser saber o porquê, não digas, pois pode acabar irritando-se caso
seja confrontado.
-Que argumento poderia justificar a antecipação da nossa
cerimônia?
-Bem, vocês estão juntos há quatro anos. É natural que
queiram que a união civil e religiosa ocorra o mais rápido possível. Além do quê,
quanto tempo pode demorar para que tu abras o próprio negócio e ele junte a
quantia necessária para a compra de uma casa? Saxofonistas não ganham tanto
quanto almejam, ainda mais tocando num estabelecimento para fornicadores! O
único que ficou rico foi o tal do Kenny G.
-Eu pensei que não conhecias músicos do gênero instrumental.
-Querida, eu não sou rica, meu marido não o é e os meus
vizinhos também não. As chances de um carro de som aparecer na minha rua são
mil em mil e uma oportunidades!
-Não fiques preocupada, irmã. Eu vou insistir com o Valente,
mais uma vez, sobre o assunto.
-O importante é que não te dês por vencida e neutralize a
influência malévola do indivíduo que instalado está em tua futura residência.
Pronto! Nete só faltou dizer que o rapaz escreveu o roteiro
de “Malévola”. O comportamento do Tato, daqui a pouco, poderá ser creditado
como o responsável pela notícia desagradável que Kleber receberá naquela noite,
após ter passado por uma bateria de exames que permitir-lhe-ia descobrir a razão
de tantas dores, das quais vinha sendo acometido um pouco antes da discussão
com o filho.
O médico da Família Goulart foi avisado de que a consulta
deveria ser mantida em sigilo. A ética será respeitada pelo profissional da
saúde- o difícil é dissimular a verdade para Dora, a mulher com quem está
casado há vinte e seis anos.
-Desculpa-me por fazer-te esperar o dia inteiro, perder um dia
de trabalho.
-Não há problema, Doutor, desde que eu saia daqui sabendo
qual é a razão das minhas dores.
-Kleber, eu devo ser sincero contigo, mas é difícil constatar
a verdade.
-Lopes, nós dois nos conhecemos há tanto tempo, que não há o
menor sentido em tanto mistério. O que os exames disseram?
-As notícias não são nada boas.
-Fales!
-O teu problema é grave, Kleber. Trata-se de uma
insuficiência renal.
-Tanto suspense só para este diagnóstico, Lopes?
-Não estás entendendo...
-O que vai me recomendar? Sessões de hemodiálise? Eu faço, só
precisas dizer-me quais são os dias que eu devo comparecer à clínica e eu checo
as vagas da minha agenda...
-É caso cirúrgico, Kleber.
-Cirúrgico?- Kleber sua novamente, como aconteceu quando
estava em casa, empalidecendo rapidamente.
-Se tu não fizeres um transplante o quanto antes... Poderás vir
a óbito…
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