-Viste bem, Valente. Eu fui agredida por este...
-Nem ouses terminar o insulto, senão sou capaz de fazer coisa
pior!
-Já chega! Os dois!
-Ainda vais defender este tipo depois de ele ter cuspido na
minha cara?
-Ou depois de tu o teres agredido com uma bofetada?
-Tu estavas aqui?
-Convenhamos que o ser humano sair para comprar pão, e a sua
noiva entrar como um foguete no seu prédio é estranho... Lógico que eu cheguei
a seguir-te. E ouvi cada palavra que os dois trocaram, Cissa.
-Estás a usar este tom comigo por que, Valente? Acaso pensas
que vou arrepender-me do que digo ou disse a este sujeito?
-O que sei é que não vai mais se repetir. Posso garantir, e
sabem por quê? Porque agora mesmo terão que se desculpar um com o outro.
-Eu não vou pedir perdão a esta garota. Muito menos depois do
que ela fez comigo!
-Queres dano pior do que o que fizeste ontem, atraindo para
si as atenções dos convidados do meu noivado, e jogando o nome do meu noivo na
lama? Quem faz questão de não pedir desculpas sou eu!
-A Madre sempre me dizia que uma das minhas qualidades era a
paciência... – Valente senta no sofá do apartamento e olha para Cissa e Tato-
Eu tenho o dia todo, mas nenhum dos dois sairá daqui sem falar o que eu disse.
Desculpas mútuas agora!
Após segundos de um silêncio sepulcral, Tato e Cissa decidem
conceder o perdão um ao outro, unicamente para evitar desavenças com o
saxofonista. O filho de Kleber e Dora é o primeiro a falar, bastante a
contragosto.
-Desculpa-me, Cissa.
-Desculpes o meu... Desculpe por ter eu me excedido.
-Muito que bem!- Valente levanta rapidamente- Agora, ouçam-me
com atenção: eu não vou permitir que o meu apartamento transforme-se num campo
de batalha. E vou deixar bem claro para que não ousem interpretar-me de maneira
equivocada: não estou nem um poucochinho preocupado com o que as pessoas pensam
a meu respeito. Enquanto estiverem preocupados acerca do modo que eu uso para
viver, eu vivo.
-Pareces que não quer entender a situação, Valente. Não
bastando o meu irmão, este garoto quer arrastar teu nome para a lama!
-Com o que te afliges, Cissa? Que pensem errado de mim porque
abriguei um rapaz sem-teto na minha casa?
-Se isto não é motivo para ti, é para mim! O que queres? Ser
vítima de maledicência de todos? Da vizinhança, do teu trabalho, dos nossos
amigos, da igreja?
-As pessoas de quem eu me cerco não perdem tempo falando
pelas minhas costas. Mudes o teu círculo de amizades, caso estejas ouvindo
coisas mentirosas a meu respeito. O meu compromisso, Cissa, é com a verdade.
-E comigo, como é bom frisar!
-Quando me conheceste, sabias como eu era, que gostavas de
ajudar as pessoas, porque eu fui alguém que precisava de ajuda. Não inventes
agora de tentar me mudar, porque eu não vou me encaixar no padrão de ninguém.
Se tu gostas de mim, nem cogites a possibilidade de irritar-se com a minha
maneira de ver o mundo.
-Mundo esse bem diferente de ti!
-Não importa! Se não ajudas o Tato com atitudes, ores por
ele. E se nem isto queres fazer, deixes que eu faça.
-Pois bem... Se estás disposto a ouvir aquilo que não mereces
ouvir, passes a sustentar esta situação infame. Eu não tenho mais nada o que
fazer aqui, com licença...
-Eu ainda não terminei de falar contigo, Cissa.
-O que foi agora?
-Ontem, saíste tão estabanada com tua amiga e teu irmão,
Michel, que se esqueceste de passar por um rito do noivado- Valente vai até uma
das gavetas de seu criado-mudo e traz uma caixa vermelha, entregando-a à noiva-
Abres.
-É o que eu estou pensando?
-Talvez. Vejas por si mesma.
Cissa abre a caixa e encontra duas alianças, sendo que uma é
posta em seu dedo anelar direito, pelo próprio noivo.
-Não gostas de tudo como manda o figurino?- após a
declaração, Cissa retribui repetindo o gesto do noivo. Discretamente, Tato
volta para o quarto onde está acomodado.
-Gosto, sim. E é por isto mesmo que eu volto a afirmar:
ninguém tem o direito de querer mudar a mim, ainda que diga o quanto me ama.
-Tens razão. Eu prometo que eu vou medir as minhas palavras
de agora em diante. Agora, eu só te peço um abraço, Valente. É pedir muito?
Valente atende ao pedido da noiva, que esconde a raiva por
conta da discussão com o novo amigo do saxofonista. E diante da correria com o
noivado, bem como o turbilhão de emoções que ela e seu noivo têm vivido nos
últimos dias, Cissa esquece-se da despedida de sua amiga, Olívia, que parte
para uma pós-graduação elogiada, indicada e incentivada pelo seu querido
professor. No aeroporto, só ele e a intransigente Beatriz comparecem ao evento.
Esta, aliás, mal consegue conter as suas lágrimas no momento em que a
evangélica pede um abraço.
-Tens certeza de que vais ficar bem sozinha?
-E quem te disse que estou eu sozinha? Onde estiver a planta
dos meus pés, Deus está comigo.
-Lá vem... Confesso que sentirei falta de ti. Voltes logo,
por favor.
-Dois anos passarão num instante, Beatriz.
-Não tenhas tanta certeza. Sem ti, pode ser uma eternidade,
Olívia. Mas eu entendo que é por conta de teu futuro.
-Prometo que nas férias eu venho, e que nós vamos nos falar
todos os dias.
-Prometes realmente?
-Melhor do que isto: eu juro- Olívia dá outro abraço na irmã,
bastante emocionada, ao passo que faz uma curiosa observação- Precisa haver
mais “eclipses” como este... Eu vou sentir muito a falta do senhor, Professor.
-Não te preocupes com nada, Olívia. Manteremos contato-
aperta a mão da moça.
-Fiques com Deus.
-Sigas com Ele, minha filha.
Olívia nunca esteve tão segura como nesta viagem. Mais um
sonho que estava prestes a ser realizado, e com o apoio das pessoas que ela
mais respeitava. Além disso, a fé que sempre lhe acalentava seguia junto. Era
preciso muita coragem para trocar de país... Talvez mais do que tivesse tido
Kleber ao procurar o filho na casa do saxofonista do restaurante de seu irmão,
pois demonstrava estar reticente com a ideia de uma reaproximação.
Só que não será nada fácil para o agente de viagens depois de
tudo o que leu e ouviu sobre o filho e dos lábios do próprio. Tato, tempos
depois da discussão agressiva que teve com Cissa, vai para a fachada do
Edifício Portuário (o do apartamento de Valente) e observa a movimentação dos
automóveis e dos transeuntes. O músico desce de seu cômodo e inicia uma
conversa com o jovem.
-Pensando na vida?
-Mais ou menos. Pensando no giro completo que a minha vida
deu.
-Tudo se aprumará. Basta crer.
-Sabes o que eu realmente queria neste momento?
-Queria ou quer?- Valente brinca com o emprego do tempo
verbal.
-É, eu quero.
-Digas.
-Queria ter esta fé em Deus que tu tens.
-Pensei que tu o tinhas.
-Tanta gente fala em Deus quando, na verdade, está fazendo
uso de uma expressão. Estou falando de acreditar mesmo naquilo que se diz.
-Entendo... Mas não é nada inalcançável.
-Ser como tu?
-Não, ser um homem de fé. Um pecador não pode inspirar-se em
outro. Tem que se inspirar em quem emana luz.
-Mas todos nós pecamos, ou não?
-Por isto mesmo que o melhor é buscar como inspiração para
vida Aquele que não tem máculas.
-Às vezes, penso que tens mais idade do que aparenta. Pareces
ser tão sapiente.
-A educação que recebemos não ajuda na construção daquilo que
queremos ser, Tato. O que fazemos com ela é o que nos define.
-Tu és um amigo que eu quero levar para o resto da minha
vida. Meu lamento é ter te conhecido na pior fase da minha vida.
-Quem sabe não é o começo de uma nova perspectiva para ti?
Hoje, estás afastado de teu pai, mas um dos dois pode voltar atrás e ensaiar
uma reaproximação.
-Confesso-te que não estou interessado em voltar. Meu pai
certamente quer que eu finja ser outra pessoa.
-Dizem que o tempo é um bom remédio... Nem sempre. Muitas
vezes, nós só ficamos acostumados à ferida. Prefiro deixar que o Maior Médico
resolva o problema.
-Obrigado por tudo, Valente. Eu não sei como agradecer-te.
Acho, inclusive, que nunca conseguirei te retribuir à altura.
-Passes na igreja. Aposto que tu vais gostar.
-Será que serei bem recebido lá?
-Antes que chegue o primeiro dos irmãos, o Dono está lá.
Depois, se não gostares, Ele te toca de outra forma. Mas isto não é uma ordem,
é só um convite.
-Tudo bem. Vou aparecer por lá, sim- Tato abraça o amigo, sem
dar-se conta de que Kleber está a se aproximar. O agente de viagens fica
furioso com a cena vista por ele e por Nete, que está trafegando pelo bairro. E
ambos interpretam a cena de maneira equivocada.
-Não perdes tempo mesmo, Otávio...
-Pai?
-Até pensei que o primeiro lugar para onde tu irias era a
casa onde devias encontrar-te com o outro rapaz. Mas vejo o quanto estás
próximo do saxofonista... Até fico pasmo diante de tanta desfaçatez de ambos.
-Agora dois amigos não podem mais abraçarem-se?- questiona
Valente.
-Não parecem ser só isto.
-Na tua visão deturpada. Mas é o que somos, Sr. Kleber.
-Quanta consideração pela minha pessoa...
-Não sejas irônico, Pai.
-E tu não sejas atrevido. Pelo que vejo, foi um erro ter
vindo até aqui procurar-te.
-O que estás a pensar? Que Valente e eu...
-Não estou afirmando nada, Otávio. Estou constatando.
-Constatando o quê? Por que não deixas de meias-palavras e
diz o que estás a pensar?
-Não te pareces óbvio o que se passa na minha cabeça, gajo?
-Pai, saias daqui. Não vês que estás provocando um escândalo?
-Tens toda razão, Otávio. É melhor mesmo que eu não fique
mais um só minuto aqui.
-Antes, terás que conversar com teu filho, Kleber.
-E por que eu faria isso?
-Porque precisam entender-se. Não vieste aqui para
protagonizar uma briga.
-O que alguém no meu lugar pensaria? Até onde me consta,
vocês dois não se conheciam, e justamente tu colocas o meu filho para morar
debaixo do seu teto. Logo tu, que trabalhas no restaurante do meu irmão, dar
guarida ao Otávio? Podem até mesmo acreditar em coincidências, mas eu não sou
idiota.
-Melhor não afirmares isto, já que se comportas perfeitamente
como sendo um!
-Vou acabar com teu atrevimento agora mesmo, músico de
araque- Kleber parte para a agressão contra Valente.
-Não toques nele!
-Deixes, Tato. Deixes que ele venha.
-Defendes este homem porque sabe da importância que ele tem
na tua vida, não é, Otávio? O tal de Michel não foi o bastante para você.
-Claro que Valente tem importância na minha vida. Ou se
esqueceste de que ele me deu o teto que tu tiraste de mim?
-Tudo o que tu tinhas perdeste por merecimento.
-Seja lá por qual motivo, eu não vou deixar que tu toques num
só fio de cabelo seu.
-Agora entendo por que não quiseste ir para a casa do Hélio.
-E depender da minha família? O senhor mesmo disse que tudo o
que eu tinha foi dado pelo senhor. Depois de ir para a casa do Tio Hélio, o que
farias? Jogarias na minha cara que eu serei eternamente dependente de todos? Se
este era o teu único resquício de preocupação, desprendas-te dele. Porque eu
vou trabalhar, sustentar-me, arranjar um lugar para morar e fazer o que bem
entender da minha vida. Mas a minha meta maior é ser um homem melhor do que tu.
-Antes, Otávio, terás que ser um homem.
-Chega! O senhor já fez o seu espetáculo, já atraiu olhares
de quem pretendia. Agora, saias da porta da minha casa!
-Tua casa, Valente? Tomes cuidado, pois nem isto poderás ter.
-É uma ameaça, Sr. Kleber?
-Teu novo amiguinho deveria te contar mais detalhes sobre
mim... Pobres daqueles que acreditam que eu sou homem de ameaçar; eu faço! E,
dentro em breve, tu estarás no olho da rua! E quando tu te vires sem um tostão
no bolso, a lua de mel vai acabar!
-Fora daqui!
-E não fiques preocupado, Otávio. Nunca mais nos veremos de
novo.
-A opção não é minha. O senhor escolheu por nós dois.
-Que rapaz é esse, que desrespeita até o próprio pai? Fabiano
saberá disso e é já- Nete passa despercebida pela rua onde ocorreu o desentendimento.
-Obrigado por defender-me.
-Se fosse comigo, eu sei que terias feito a mesma cousa. Achas
mesmo que teu pai pode fazer algo contra mim?
-Não, ele não se atreveria. Não quer mais ser vinculado a
nenhum tipo de escândalo.
Mas ele quer. E irá atrás do irmão, no anseio de prejudicar o
músico. Só que, em decorrência da reforma de sua agência de viagens, que demora
mais do que o previsto por conta de uma infiltração, Kleber aproveita o tempo
que é forçado a ficar em casa para trabalhar e se tornar um homem ainda mais
recluso. Quer evitar, a qualquer custo, que os colegas de trabalho e os amigos
o questionem sobre sua decisão de manter o filho unigênito afastado de sua
residência, e muito menos sobre quais motivos o levaram a expulsar Tato de
casa. Prefere dialogar (leia-se: fazer a sua exigência) quando estiver mais
calmo.
O período serve também para que Olívia acostume-se à nova
ambientação na qual vive. O idioma não era problema para a mestranda, já que
era uma nação onde a língua portuguesa também era a oficial. Ao sair da
universidade, para a qual havia sido submetida às quatro avaliações do
mestrado, encontra uma ambulante que vende joias na porta do prédio. Um
pingente, com a inscrição "Jesus" inserida num desenho de um peixe, é
um dos produtos que a idosa vende.
-Quanto custa este, senhora?- a estudante chega a apontar o
adereço.
-Só dez. Vai querer levar?
-Vou, sim.
Um belo rapaz, de aproximadamente trinta anos de idade,
pergunta:
-Tem outro desses?
-Sim, moço. Vai levar também?
-Quero, sim. Adoro colecionar essas coisas.
-Dá para ver. Tens até um cordão com o mesmo nome.
-Esse sotaque... Você não é daqui, é?
-Lisboa. Mas estou adorando este lugar. Quer dizer, o pouco
que eu vi.
-Desculpa, eu nem me apresentei: Nicolas Queiroga.
-Olívia Gusmão. A paz do Senhor.
-Mentira... Você também é evangélica?
-Sou, sim.
-Enfim... É bem difícil encontrar evangélicos na faculdade,
não sei se deu tempo de você reparar.
-Procuro nem pensar nisto. O que realmente interessa é viver
a fé que me faz tão feliz.
-E faz muito bem. Não sei como é lá onde você vive, mas aqui
tem muito preconceito contra quem é crente.
-Que estranho... Dizem que o teu estado é laico, mas que na
política tem uma influência forte do Cristianismo.
-Mas não aceitam isso. A gente é maioria, mas as pessoas veem
isso como uma imposição. E fora da política, somos vistos de um jeito
deturpado, como se não soubéssemos no que estamos acreditando ou pregando.
-Pois é, mas basta lembrar-se da passagem que diz que Deus
usa as coisas loucas desse mundo para confundir as sábias. O que ninguém é capaz de entender, Ele sabe
muito bem como aconteceu e por que razão.
-Parece até mentira alguém dizer isso aqui.
-Tu és mestrando da universidade também?
-Doutorando na área de geriatria.
-Que ótimo. É, realmente, uma área que desperta interesse.
-Bem, eu vou ter que ir agora. Tomara que a gente se veja de
novo, Olívia.
-Igualmente, Nicolas. Também vou esperar pelo nosso próximo
encontro nos corredores da universidade.
-Assunto não vai faltar, eu garanto. A gente se vê.
Encantada com o estudante, Olívia não vê a hora de voltar
para casa e contar a novidade para a irmã, Beatriz. O entusiasmo, entretanto,
não é o mesmo de Kleber, que está prestes a procurar Hélio para falar sobre
Valente. Acorda-se cedo, pronto para retomar as atividades na agência de
viagens, deixando sua esposa dormindo. O intuito é ir ao Recifeeling antes de chegar ao local de trabalho. Entra no banheiro
e levanta a tampa do vaso sanitário. Urina normalmente, até que é acometido de
uma violenta dor no ventre, chegando a suar rapidamente e a gritar, o que causa
o despertar de Dora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário