-Achas mesmo que, depois de tudo o que ocorreu hoje, ainda
temos algum assunto a tratar?
Como um vendaval, Cissa não espera nem que Valente tome a
iniciativa de fechar a porta, entrando no apartamento do que era seu noivo há
poucas horas.
-Talvez tu não tenhas o que dizer, mas certamente tens a
escutar.
-Não estou interessado em ouvir-te.
-Mas ouvirás. E atentamente.
-O que queres tu de mim agora, Cissa?
-Contemplar a tua falta de vergonha, teu cinismo, tua atitude
diante do inferno que transformaste a minha vida. Destruíste o meu sonho,
calhorda!
-Querias mesmo que eu prosseguisse com aquela farsa?
-O que foi o nosso relacionamento, definido por ti como uma
farsa, frente ao espetáculo que transformaste a nossa cerimônia matrimonial? Eu
vim aqui saber como tu foste capaz de arquitetar um golpe tão sujo como este.
Estás tão indignado com o meu comportamento, mas deixaste para agir pelas
minhas costas. Poderia ter acabado com o nosso noivado em segredo, mas
preferiste transformar-me em motivo de chacota, fazer com que apontassem a mim
como a rechaçada da igreja! Agora sou eu que te pergunto: esta foi a atitude
digna de alguém conhecido pela alcunha de “varão valoroso”? Pois, para mim, não
passou de algo típico de um covarde!
-Muito bem. Falaste o que querias, não?
-Ainda é pouco. Pouco perto dos danos que causaste à minha
vida.
-Ah, é verdade. A tua vida... A prioridade é a tua vida nesta
história toda... E eu que me dane!
-Se tu soubesses o quanto tive que me segurar diante daquelas
pessoas naquele altar... Como também fui obrigada a suportar calada as tuas
manias, os teus malditos preceitos, o modo correto que lançavas mão para tudo
na vida...
-E foi preciso um escândalo como o de hoje para que tu
pudesses dar-te conta da bela porcaria de homem que escolheste, não foi?
-Não ajas como se fosse a vítima de tudo isto, hipócrita.
-Eu fui o algoz! Algoz da minha vida e da tua, pois preferi
levar adiante este romance mesmo sabendo quem tu eras. E olhes agora o preço
que estamos pagando por conta da minha insistência em ficar contigo!
-O melhor castigo é que tu morras, desgraçado! O que foi?
Tens agora peso na consciência?
-Vamos parar de falar como se estivéssemos falando de outras
pessoas e passemos a conversar às claras: tu não me amavas.
-Como podes ser tão insensível a ponto de inventar algo desta
natureza?
-Sabes muito bem que não é mentira nenhuma! Eu não passei de
um brinquedo nas tuas mãos. Quando tu chegaste perto de mim, o teu intuito era
fazer com que eu me interessasse por ti. Mas é lógico que percebeste
imediatamente que eu não era válvula de escape de mulher alguma, que queria
viver uma história de amor plenamente nossa, e não que eu substituísse alguém
em tua vida.
-Que idiotice estás a falar agora?- Cissa desconversa.
-Achas mesmo que eu esqueci o Ricardo, depois de teres dito
que sofrias por ele? E ao longo da nossa relação, em que ouvia comparações da
Beatriz e do teu irmão, em que eles afirmavam que eu em nada parecia com ele?
-Até então, não parecias mesmo. Hoje, eu vejo que os dois são
da mesma estirpe. Não passam de dois canalhas...
-Não me confundas contigo!- Valente levanta a voz.
-E tu, não banques o homem agora! Esperava uma atitude de
homem lá naquela igreja, não aqui! Mas nem para isto tu serves!
-Michel e Beatriz sempre diziam que eu diferia totalmente do
Ricardo. No começo, até achei ótimo que isto acontecesse, porque assim seria
mais fácil de chegar ao teu coração. Mas fui reparando mais no teu comportamento,
e vendo que estava convivendo com uma completa estranha.
-Ah, faças-me o favor!
-A Irmã Nete não gostava muito de mim no começo, por conta
daquela história do motel, e depois por perceber que a minha formação era
católica. Eu nunca estive à altura dela, e quando vi a forma como vocês
interagiam, vi que não estava à tua.
-Então, por que achas que tive que suportar aquele lugar
durante quatro anos da minha vida? Por cinismo? É isto que alegarás, Valente?
-Suportou por mim, nunca por amor a Deus. No fundo, tinhas a
impressão de que eu poderia oferecer algo diferente, um caráter que talvez o
Ricardo não tivesse.
-Nem ele, e tu tens menos ainda.
-Perguntavas tu da minha vida e eu só te dizia aquilo que
sabia da minha história. Já das poucas vezes que falavas dele, enchias a boca
com um desprezo doentio, como se fosse mais importante odiá-lo do que amar o
teu namorado.
-Hoje entendo o quanto errei em separar os dois, como se
fossem joio e trigo. Ambos são da mesma laia!
-Mas a gota d’água foi quando subornaste o porteiro para
entrares na minha casa e ficaste nua no meu quarto.
-Como eu fui tola... Pensei que tu não havias me tocado para
esperar o casamento. Agora eu entendo o porquê. Não passas de um maricas, um
enrustido, um homem que jamais saberá o que é sentir desejo por uma mulher.
Valente passa ao lado de Cissa e abre a porta do seu quarto,
onde há um espelho de um metro. Retira-o da parede e coloca-o diante da
vendedora.
-Estás vendo esta mulher? Tu, melhor do que ninguém, podes
definir quem ela é de verdade. Mas na minha concepção, ela não é nenhuma
prostituta para que eu venha a tratá-la como tal. Eu sinto muito se tu não
sabes o que é respeito por si mesma, Clarissa.
-Prostituta por quê? Por querer fazer sexo com o homem que eu
amava?
-A prostituta age como alguém que não tem responsabilidade na
vida de um homem. O grande problema, Clarissa, é que tu tinhas, porque estavas
destinada a ser minha mulher, mas não o era ainda. E quando eu vi a forma como
alimentavas a polêmica acerca da permanência do Tato no apartamento, percebi
que seria uma armadilha. Eu poderia aceitar que nós transássemos e tu
cogitarias a possibilidade de usar isto contra mim.
-Chantagem? É isto que pensaste que eu faria?
-Não. É isto que tu farias, sem qualquer sombra de duvidas.
Tendo entre nós dois intimidade, não havia motivos para esperarmos o casamento.
Mas e se eu esperasse? Se foste capaz de entrar na minha casa sem que eu
soubesse, poderias muito bem contar a todos que eu transei contigo caso eu não
me casasse. E desta forma colocarias em prática o que tinhas em mente desde o
início: tirar-me da casa de Deus, porque aquele lugar não te apetecia.
-E por que achas que eu cultuaria os feitos de alguém que
jamais me convenceu de Sua existência? Será que não era óbvio que em tudo havia
a intenção de agradar-te? Ou pensas que eu sou capaz de amar alguém que eu não
conheço, imbecil?
-Achas que, pelo que eu fiz, não entendo de amores, não é?
Pois eu vou dizer-te uma cousa: se não consegues amar a Deus por não vê-Lo,
podes odiar alguém também sem conhecer. E foi exatamente o que a minha mãe fez
comigo.
-A mim, pouco importam os teus traumas de família. Resolvas
com um analista- Cissa resolve deixar o apartamento, mas muda de ideia ao ouvir
o grito do saxofonista.
-Vais escutar até o final! E não me interessa se isto servirá
de chacota, se tu contarás a todos, pois eu só envergonho-me dos erros que eu
cometo, de ninguém mais. A minha mãe teve um caso com um homem casado, e quando
ele descobriu que ela estava grávida, fez com que ela optasse entre mim e ele.
Ela escolheu um aborto, Cissa, para não ter de perdê-lo. Foi quando a minha tia
fez um acordo: pediu que ela esperasse o meu nascimento para que a minha mãe me
entregasse à adoção.
-Não sei o que eu tenho a ver com esta história que estás a contar-me.
-Não mesmo? Pois em breve entenderás. Continuando: a minha
mãe aceitou seguir adiante com a gestação e quando eu nasci, minha tia ficou
encarregada da minha educação.
-E por que nem a tua tia quis ficar contigo?
-Porque ela era uma freira, havia acabado de fazer votos de
castidade e estava num convento- explica Valente, finalmente revelando o porquê
do protecionismo de Joana para com ele- Pouco tempo depois, este mesmo convento
converteu-se num local para menores desabrigados, o Lar do Menino Tobias. No
dia em que ela me entregou, havia marcado um encontro com o meu pai, um
político lisboeta. Na surdina, ele havia comprado um imóvel e posto em seu
nome. Os dois foram conhecer a casa, mas houve um acidente. O carro em que
estavam caiu no mar. Ninguém sobreviveu.
-O que pensas que ganharás contando-me esta história?
-Passei parte da minha vida esperando que me amassem, Cissa.
E quando eu saí daquele orfanato, pensei ter encontrado o amor em tua figura
alegre, sedutora, carismática... Ledo engano. Quando eu não fosse mais
suficiente para o teu mundo, seria descartado. Ou não conheceria eu tua
natureza inconstante?
-E para que não fosses abandonado, preferiste expulsar-me de
tua vida?
-Infelizmente, o que eu sinto por ti ainda não se distanciou
de mim. Mas eu posso garantir que a melhor história de amor que eu conheço não
merece ser apenas contada, mas também vivida por mim. E eu vou viver o amor de
Deus, queiras tu ou não.
-Fiques com ele. Usufruas do teu amor- Cissa alega, com
desdém- Talvez nesta ilusão em que resolveste mergulhar, encontres a mulher que
tanto procuras. Mas eu não vou viver algo que eu não acredito.
-Partilhamos da mesma opinião, então. Porque eu não acredito
em ti. O que disse na igreja sou capaz de repetir em qualquer lugar: no dia em
que uma mulher conseguir afastar-me do amor da minha vida, que é Deus, eu deixo
de ser Valente Valença.
-Como és patético...
-Tomara que um dia encontres o amor de Deus e entendas o que
eu quero viver.
-Isto ainda é preferível a ter que olhar o teu rosto
novamente. Eu tenho pena de ti, Valente. Muita pena.
Cissa deixa o apartamento do ex-noivo e volta para a sua
casa, onde Michel, apreensivo, está à sua espera. Abatido, o saxofonista segura
o espelho que havia colocado temporariamente na sala e o devolve ao quarto,
contemplando o CD brasileiro que Hélio havia dado-lhe de presente há alguns
dias. Resolve ouvir a faixa-título, “Deus do secreto”, pela primeira vez, sentando-se
no chão em meio ao mais desesperado lamento que poderia fazer em toda a sua
vida diante da letra do louvor:
-“Minha trajetória é marcada por conquistas, minha arma foi a
fé. Minha esperança é regada por lembranças que o tempo não levou, mas parece
que um furacão me alcançou. Deus, eu não podia imaginar: perdi meu chão. Olha
como chora o meu coração! Dessa vez, não consigo Te tocar, não tenho forças pra
clamar. Confesso: já tentei. Dessa vez, eu entrei no quarto e tranquei a porta.
Só Tu podes me encontrar, pois Tu és o Deus que me vê no oculto, Tu és o Deus
que me vê no secreto. Tu és o Deus que me vê quando o homem não me vê. Eu não
estou só, eu não estou só!”.
Trajando ainda naquela noite avançada um vestido que já
estava manchado de tanto caminhar pelas ruas de Lisboa, Cissa aparece para
tranquilizar o seu irmão.
-Já estava a telefonar para a polícia. Onde tu estavas?
-No apartamento do Valente. Quis esperá-lo voltar.
-O que foste fazer lá, minha irmã?
-Botar um ponto final na minha história. Acho que nunca fomos
tão francos. Na igreja, eu conheci o Valente Valença verdadeiro. E ele conheceu
a verdadeira Clarissa Marques Barboza. Antes tarde do que nunca.
-Desculpa-me, Cissa, mas... Não havia como funcionar.
-Tudo bem. Eu é quem fui uma tola em insistir com essa
porcaria de romance. Tive a minha paga.
-E agora? O que será de ti?
-Sem a máscara? Uma mulher livre, é claro.
-Cissa... Eu estava a pensar sobre nossas vidas. Talvez fosse
a hora de respirar novos ares.
-Como assim?
-Sofreste com o Ricardo, com a influência do Tato, com a
imprevisibilidade do Valente... Não temos sido felizes.
-Logo tu me dizes isto? Ora, Michel, tu és tão despreocupado
com as responsabilidades da vida, vives a viajar, não tens um lugar que possas
chamar de “porto seguro”... E não te consideras feliz?
-O que estamos fazendo das nossas vidas a não ser vagar de um
lado para o outro, depositando nossa confiança em pessoas que não satisfazem às
nossas expectativas? Para que eu devo iludir-me, se me sinto bem melhor quando
estou sem rumo, vagando de um canto a outro do planeta, sem dar satisfação a
ninguém do que faço ou deixo de fazer?
-Muitas vezes, eu critico teu comportamento, mas eu tenho
vontade de fazer o mesmo que tu fazes: sumir. Desaparecer sem deixar rastros.
Neste momento, é o que mais eu preciso: esquecer-me da existência deste lugar-
tira o vestido, com pesar.
Toca o celular de Michel.
-Alô? E então, gajo? Ah, sei. Pagam bem, é? E para quando
será? Tudo bem, eu prometo pensar. Mas eu te ligo dando uma resposta até
amanhã. Abraços.
-Quem era?
-O dono da boate.
-E o que ele queria, que não poderia esperar até amanhã?
-Com toda esta confusão envolvendo o teu casamento, acabei
esquecendo-me de contar.
-O quê, Michel? Dizes!
-Hoje saiu a minha foto no jornal. Uma votação considerou-me
como o melhor DJ de Lisboa.
-Que maravilha, Michel. E o teu chefe só soube agora?
-Não, é que... A empresa responsável pela votação premiou os
cinco primeiros colocados com uma viagem de um mês em Ibiza.
-Espanha? Tu viajarás para a Espanha?
-Este é o problema, Cissa. Em outras circunstâncias, eu iria
sem o menor problema, e poderia até esticar a minha permanência, mas... Não é
de bom tom que eu te deixe sozinha.
-Isto não é um problema. Quando vocês terão que ir?
-Daqui a três dias.
-Haverá algum problema se... Tu levares alguém na bagagem?
-Cissa, queres dizer, então, que...
-Não queres esticar a tua permanência, mudar um pouco de ares
como sempre? Pois então, eu topo. Estou convidando-me a ir contigo.
-Será que é uma boa ideia, minha irmã?
-No que te é tocante, eu não tenho dúvidas. Ibiza é o melhor
lugar para que tu trabalhes. Já eu resolvo dois problemas numa única cartada:
além de não morrer de saudades do meu irmão querido...
-E único...
-Ainda conseguirei livrar-me deste lugar. Melhor ir para
longe e não deixar que sobrem rastros das minhas decepções ao longo da vida.
-Querida, é uma viagem de um mês. Não vou ficar lá o resto da
minha vida.
-Vai ver que logo mudarás de ideia quando pensares em tua
carreira. Avalies bem o quanto Ibiza pode ser um importante passo profissional.
O destino não te colocou lá à toa.
-Falando em destino e não em Deus? A velha Clarissa parece
ter retornado ao seio dos amigos e da família.
-Nunca saí. Posso comprar a passagem?
-Está bem, Cissa. Daqui a três dias, nós dois embarcamos para
Ibiza, e sem previsão de volta.
-Nossa, eu estou a sentir-me tão aliviada que... Falta apenas
uma cousa para a minha felicidade ficar completa.
-Vejas lá o que pretendes fazer, minha irmã.
-Podes acreditar em mim: tu vais gostar e muito- lentamente,
a jovem tira o vestido de noiva, ficando só de lingerie, e indo para a cozinha,
onde busca uma caixa de fósforo. Ela acende três palitos e os joga sobre a
roupa confeccionada para o casamento com Valente. Michel fica surpreso com a
atitude da vendedora e a vê jogando o modelo pela janela do apartamento.
-Enlouqueceste de vez.
-Doidivanas eu estava antes, quando vivi uma vida que não era
minha. Agora, Michel, nós dois temos o mundo em nossas mãos. E vamos desfrutar,
meu bem, até não podermos mais.
-Se é assim... Saúde- Michel prepara duas taças de vinho
tinto e oferece uma delas à irmã.
-Ao futuro, Michel.
-À nossa felicidade. Nossa e de ninguém mais- os irmãos
brindam e, em seguida, trocam um abraço.
Passam-se seis meses, e o retorno dos Irmãos Marques Barboza
foi sendo protelado. A vida sem compromisso já era da natureza de Michel e
Cissa e eles não queriam quebrá-la tão cedo. Em uma noite, Tato chega cansado
ao seu apartamento. Havia arrumado, há pouco tempo, um curso relacionado à área
de design, e antes de fechar a porta,
Olívia aparece para lhe fazer um convite.
-Ocupado?
-Não. Cansado. Acabei de voltar.
-Como foi o curso?
-Gostando cada vez mais. Deveria ter tomado esse rumo na
minha vida há tempos.
-Vim convidar-te para visitarmos a Comportas. O Valente havia
convidado-me uma vez.
-Precisa ser hoje? É que estou tão esgotado.
-Pode ser amanhã?
-Pode, sim.
-Se não te sentires confortável, nós podemos ir à minha
igreja.
-Todo o escândalo que a minha presença causou, perto do que
aconteceu depois que eu deixei a casa do Valente, já não é mais tão incômodo.
E... A tua amiga, deu notícias?
-Virou empresária do irmão. Disse que a experiência como
vendedora ajudou a convencer os clientes a contratarem-no. Eles foram pra
Ibiza, costumam viajar por compromissos de trabalho do Michel, mas acabaram
fixando residência lá.
-Sei.
-Não estás perguntando isto por causa do Michel, estás?
-Ele é uma página virada. Já estou interessado em outra
pessoa.
-Ah, é?- Olívia fica um pouco constrangida- E quem é o teu
alvo?
-Foi bom teres tu perguntar isto, falando em alvo. Percebi
que, para conquistá-la, eu tenho que ter como alvo Cristo.
-Mas não cometa o mesmo erro que a Cissa. Ame aos
ensinamentos cristãos pelo que Deus é, não pelo que Ele pode fazer, ou quem
pode trazer.
-Não é que eu esteja tão confiante. Aliás, eu sempre fui
bastante inseguro. Mesmo que eu não consiga conquistar o teu coração, só de
ter-te por perto já é uma dádiva.
-O meu?- gagueja- Olhes, Tato, eu... Eu acho que ainda não...
-Entendo que ainda é muito forte o que aconteceu entre tu e o
Alonso. Que só com esta história de julgamento, fica muito mais difícil
esquecer a influência trágica que aquele homem exerceu sobre a tua vida. Só que
eu sempre fui paciente, Olívia, e eu só vou desistir se tu quiseres que eu
assim o faça.
-Bem, é melhor eu ir andando. Nos vemos amanhã, Otávio.
-A paz do Senhor, Olívia- a saudação deixa Olívia ainda mais
encantada.
-Amém.
Chega a noite seguinte. Tato aproveita que vai visitar a
Comportas e chama Kleber, Dora e Hélio para acompanhar o culto, comandado por
Fabiano. O pastor os recebe e Nete olha do altar a chegada da Família Goulart,
acompanhada por Olívia. A esposa, antes uma mulher falastrona, agora se esquiva
da maior parte dos comentários que maquina em sua mente inquieta e julgadora
dos atos alheios, embora esteja ansiosa para tecer considerações acerca dos que
virão ao culto naquela noite.
Só depois que Valente entra, cumprimentando Fabiano. Senta-se
num banco vazio. A igreja está consideravelmente cheia, mas o saxofonista do Recifeeling opta pelo isolamento, sem
dar-se conta da presença de Tato, da amiga de sua ex-noiva e da família do
amigo.
-Parece que ele não nos viu- comenta Tato.
-Esperes, que vou chamá-lo para juntar-se a nós- Hélio tem a
ideia, mas tem seu braço segurado pelo irmão.
-Não. Deixes que eu mesmo vá.
-Tu, Kleber? Tens certeza?- Dora estranha o comportamento do
marido.
-Por que não? Já não há mais motivos para rusgas entre ele e
a nossa família. Aliás, a verdade é que nunca houve- o agente de viagens deixa
o irmão boquiaberto e o filho orgulhoso de sua atitude- Podemos falar?
-Kleber?- Valente levanta-se do banco, vendo a presença de
Olívia, Tato, Dora e Hélio- Que surpresa tua presença aqui.
-Junta-te ao teu amigo, Valente.
-Eu não o havia visto. Que bom que vocês vieram até a igreja.
-Tato convidou-me ontem. E eu precisava agradecer a Deus
algum dia pelo que Ele fez em minha vida.
-Estás falando do transplante?
-Não. De um modo ou de outro, a minha vida voltou a ser o que
era. A minha relação com o meu filho não é mais a mesma que viste quando nos
conhecemos. Melhorou. E consideravelmente, depois das verdades que disseste a
mim no hospital.
-Prefiro que não lembremos esta época. Foi quando estávamos
com as nossas vidas viradas de ponta-cabeça.
-Que seja. O melhor a fazer é começarmos uma trajetória mais
amena. Mesmo que não nos tornemos amigos, ao menos construamos uma relação de
respeito. Afinal, és o melhor amigo do Tato.
-Não te enganes. O melhor amigo do Tato é Aquele a quem tu
vieste agradecer pelo que te foi restituído hoje. Prefiro ser irmão em Cristo.
-Obrigado por fazer por meu filho o que eu, muitas vezes,
recusei-me a fazer: dar compreensão. Aceitas o convite para sentar-se conosco?
-Não sem antes dizer-te uma cousa.
-O quê?
-Sejas bem-vindo- estende a mão para Kleber, cumprimentando o
agente de viagens. Ambos vão ao mesmo banco, onde o músico cumprimenta Olívia,
Hélio, Dora e o amigo, que está sentado ao seu lado. Reparando na proximidade
entre Tato e a mestranda, ele indaga:
-Vens cá: ela aceitou namorar-te?
-Ainda não. Mas confesso que até oro para que isto aconteça o
mais rápido possível.
-Orando para conquistar alguém? Então, meu amigo, eu devo
informar-te de que... Estás no caminho certo.
-Foi bom o meu pai ter chamado-te para ficares aqui. Tens
estado isolado boa parte do tempo. Quando muito te vemos animado, é quando estás
trabalhando no restaurante.
-Precisei quebrar um mal no dia em que rompi meu compromisso
com a Cissa. Mas fico me perguntando se fiz a cousa correta. Até agora, só vejo
ônus.
-Mas não contaste que o Fabiano até chamou-te para voltar a
ser integrante da banda da Comportas? Por que não quiseste?
-É como se fosse uma compensação por ter dado ouvido à língua
ferina da esposa e aos delírios da minha ex. Mas penso: e se acontecer de novo?
E se ele der ouvidos a qualquer mentira que inventarem a meu respeito? O que eu
sofri, através dos olhares, do silêncio diante de mim, eu não desejo viver
novamente.
-Arrependes-te de não ter casado?
-Confesso-te que um pouco. Não me desfiz de qualquer pessoa,
mas da mulher que eu sonhava dividir uma vida, entendes? Mas também sei que
seria abdicar de quem eu sempre quis ser se eu desse ouvidos a tudo que ela
incitava-me a fazer.
-Em algum momento, Deus tratará de acalmar o teu coração,
dando fim a qualquer tipo de angústia que tu tenhas- Olívia busca acalmar o
saxofonista.
-Obrigado pela força, minha irmã.
-Falando em irmã, onde está a Beatriz?
-Procrastinando, como sempre. Mas eu não desisto até trazê-la
pra igreja, Tato.
-Traduzindo: “tentando dar juízo, mas ainda sem sucesso”.
Talvez ela não tenha aparecido no último capítulo para não
fazer a função de personagem “orelha” no final... Seja como for, este será o
último parágrafo de conteúdo humorístico do enredo!
Fabiano começa o culto no púlpito, enquanto a esposa senta no
banco em que Valente estava para conferir em seu caderno o nome dos visitantes
daquela noite. Eis que o professor aparece em pé, ao lado da esposa do pastor.
-Anotes o meu nome, irmã.
-Desculpa-me, eu não havia visto o senhor. Qual o teu nome?
-Lírio.
-“Lírio”... – anota o nome do professor no caderno- É a primeira
vez que visita a nossa igreja?
-Não, já estive presente diversas vezes.
-Impossível. Eu teria notado tua presença se fosse o caso.
-Acredites, Ednete: quando eu entro na vida de alguém, não
passo despercebido. Com licença- senta-se ao lado de Olívia, ao passo que Nete
repara que aquele banco nunca esteve tão cheio, voltando para perto do púlpito
e entregando o caderno discretamente a Fabiano.
-Professor?- Olívia fica assustada- Não sabia que o senhor
conhecia a Comportas!
-Já estive aqui, Olívia.
-Houve ocasiões que também visitei e gostei muito da pregação
do Pastor Fabiano.
-E como estás tu?
-Sentindo uma paz. Não sei por qual razão, mas foi algo que
parece ter me invadido repentinamente.
-Verdade? Não te desfaças dela.
-Pensei que tinhas muito trabalho agora à noite, na
universidade.
-Tenho mesmo. Mas tu me conheces, sabes que administro com
muita propriedade o tempo que tenho.
-Mais uma de tuas virtudes. Não bastando a tua paciência, a
humildade, a alegria... Olhes, são tantos predicados que não conseguiria
enumerar.
-Tenho uma cousa a resolver neste momento, inclusive.
-Posso ajudar-te?
-Não, custa a mim resolver. É com um amigo meu. Aquele ali-
aponta para Valente.
-Não sabia que conhecias o Valente.
-Há tempos. Com licença- senta-se entre Tato e o saxofonista-
Posso ajudar um certo “varão valoroso”.
-Acho que ninguém pode no momento- responde o músico, sem
reconhecer o professor misterioso.
-Esta não foi uma pergunta que fiz, e sim uma afirmação
incontestável.
-Já nos conhecemos, senhor?
-Sim.
-Ah, agora estou a lembrar-me. Foste o homem que me socorreu
quando aquele bandido feriu-me após roubar o meu celular.
-Agora estás a lembrar de uma das milhares de vezes em que
estive presente.
-Como assim?
-Vamos ter uma experiência a sós, Valente.
-Onde estão todos?- assustado, o órfão não vê mais ninguém
presente além dele e do professor.
-Eu disse que era a sós. Não te preocupes com os outros.
Estão constantemente em teus pedidos de oração. E ainda que possas esquecer-te
deles, eu não tenho motivos para esquecer-me- os olhos do jovem ficam
marejados- Qual é a maior história de amor que tu tens conhecimento?
-A de Deus, que deu o Seu filho para morrer em favor de nós.
-E não é justamente Este o teu melhor amigo, pois entendes
que é o melhor caminho para chegar a Deus?
-Sim. É Ele.
-Sempre soubeste o quanto nosso Pai amou-te. Mas é justamente
quando estás abatido que mais preciso lembrar. Abala-te pelo teu abandono
quando criança, pelas dificuldades que passaste ao sair no orfanato, pelas
mentiras criadas a teu respeito, pelas armas direcionadas ao teu destino e
disfarçadas em forma de amor? Repares que, em todas estas vezes, tinhas a
certeza de que o teu melhor amigo segurava firmemente as tuas mãos.
Compreendas, Valente, que histórias de amor não acabam; opta-se por vivê-las ou
não.
-Por mais falho que eu seja, eu tenho orgulho da história de
amor que eu vivo.
-E fazes parte da maior de todas. Grandes histórias de amor
merecem ser conhecidas. As melhores são vividas por nós mesmos.
-Obrigado. Era o que eu precisava ouvir neste momento.
-Ledo engano. É isto que deves escutar, de modo que não entre
por um ouvido e saia pelo outro: eu amo a ti.
-Eu também te amo. Prometes olhar-me?
-Como pelos que te cercam e pelos que desejam o teu bem, que
põem o joelho no chão intercedendo por tua vida, como a Joana, tua tia. Sim, eu
prometo. Tens o Meu amor. Não mendigues aquilo a que tens todo o direito de
usufruir. Peças, humildemente, e eu estarei pronto para entregar-te.
Lírio segura a cabeça do menino e a coloca sobre seu tórax,
abraçando-lhe fortemente enquanto ele chora como uma criança, desfazendo-se de
todo medo causado pela avalanche de peripécias que foram por ele vividas.
Ouve-se a voz de Fabiano.
-Valente? Valente, está tudo bem contigo?- a indagação do
pastor, quando somente estão os dois no templo, faz o rapaz abrir os olhos.
-Sim. Está, sim, senhor.
-O culto acabou e passaste o tempo todo com os olhos
fechados. As pessoas já deixaram a igreja e continuaste aí. Onde tu estavas,
gajo?
-Desfrutando da presença do meu melhor amigo, Fabiano- enxuga
o rosto e deixa o banco, saindo da igreja- A paz do Senhor.
Contente, o saxofonista volta para casa sendo contemplado por
Lírio do alto de um prédio. O homem desce e segue rumo a um lugar de baixa
luminosidade, conhecido por ter moradores de rua e alguns usuários de drogas.
Um transeunte, apressado, o vê naquela direção e, dada a hora avançada, sugere:
-Senhor, melhor que não entres naquela rua. É muito esquisito
andar naquela direção, ainda mais neste horário.
-Obrigado pelo conselho- após o agradecimento de Lírio, o
transeunte segue o caminho de volta ao seu lar, e de longe o melhor amigo de
Valente repara que a região pretendida é realmente perigosa. Abre a sua maleta
e veste um jaleco, que atrai a atenção dos que O observam de longe- De fato, a
hora é avançada... Mas não tão tarde a
ponto de não ouvir uma história de amor.
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