Quase sete horas da manhã.
Boa parte dos presos estava acordada. Uma das exceções era Irandir, que estava
cumprindo pena por roubo há algum tempo. Ao se levantar, não tira os olhos do
companheiro de cela, que parecia não ter dormido na noite anterior. Do lado
deste, uma bíblia.
Vem um carcereiro trazer o
café da manhã de ambos. O outro detento continua estático, mesmo a bandeja
tendo sido colocada ao seu lado na cama. Irandir não deixa de observá-lo, mesmo
quando o carcereiro vai embora e tranca a cela. Bebe um gole na já antiga
caneca e solta:
-O café daqui sempre dá um
jeito de piorar, nunca vi... – morde um pão- Antes de vir pra cá, passei uns
dias na delegacia. Era melhor que isso!- o companheiro de cela continua calado-
Vem cá: tu não “fala”, não? Tem que ser em sinal, é?- Murilo responde com um
olhar cansado, demonstrando que não gostaria de responder, até que Irandir se
aproxima, vendo o livro sagrado- Não sei como tem gente que acredita nisso. Só
os “crente burro” mesmo. Sem contar os “pastor”, que “quer” fazer eles
“acreditar”. Bando de ladrão.
-É... Pelo jeito as notícias
chegam num instante por aqui...
-Notícia? De quem? “Passasse”
na televisão?
-Devo ter passado no
repórter. Não se fala de outra coisa. Do pastor que roubou cinco mil reais de
oferta da Igreja Lar Celestial.
-Então “foi” tu mesmo?
-Não é o que todo mundo diz?
-“Tô” perguntando se foi você
que...
-Ah, isso não vai mudar nada.
O verdadeiro culpado não vai pagar por isso.
-E por que não?
-Porque eu não quero que
pague!
-Que é isso? Olha o tempo que
tu “vai” passar aqui dentro, por causa da mancada de outra pessoa... Se você é
inocente, se bem que todo mundo aqui diz que é, por que não dá o fora daqui?
-Se você tiver filho, vai
entender a resposta.
-Foi ele...
-Prefiro pensar que não.
Sempre boto a culpa no inimigo, naquilo que eu não vejo, mas que eu sei que
pode influenciar os outros pra me prejudicar. Não quero lembrar que todo mundo
tem livre-arbítrio pra fazer o que bem entende. Aí meu desespero de pai ia ser
maior.
-E você vai deixar seu filho
livre e pagar pelo que ele fez?
-Sei nem se ele “tá” vivo,
irmão... Não quero meu filho livre. Quero que ele volte pra casa...
UM MÊS ANTES, EM SÃO PAULO...
Natália está no hospital,
visitando o quarto em que seu pai está internado. Está de máscara, acompanhada
de uma enfermeira, que avisa:
-Já tentamos de tudo pra que
ele esboçasse alguma reação, mas até agora nada.
-Me deixa sozinha com ele,
por favor.
-Talvez com a sua presença,
ele possa... Não sei... Talvez um milagre faça ele sair dessa situação. Mas eu
não pude deixar de notar que desde o dia em que ele deu entrada no hospital,
ele pressentiu que era o fim. E por isso fez tanta questão de vê-la.
-Chegou a dizer pra alguém do
que se tratava?
-Não quis. Disse que só a
senhora aqui seria capaz de acalmá-lo. Bom, isso ele disse antes de ficar
inconsciente. Com licença.
-Toda- aproxima-se do leito e
segura a mão do paciente- Pai... Eu sei que essa situação aconteceu assim, de
repente, mas eu desejo que você melhore. Do fundo do meu coração.
Natália é surpreendida quando
o pai, ainda inconsciente, aperta a sua mão. O senhor abre os olhos.
-Filha... Deu tempo de... De
contar a verdade pra você. Toda a verdade.
-Não fala nada, pai. Eu vou
chamar o médico- levanta-se.
-Espera. Não adianta chamar.
Ninguém vai conseguir fazer nada por mim agora. O tempo de ir embora chegou.
-O senhor não pode ir. Não
pode me deixar sozinha, pai. Eu só tenho o senhor. Meu marido morreu, e eu pude
ficar mais perto do senhor quando ele se foi. É a família que me resta.
-Natália... Você precisa
saber o quanto eu errei com você.
-Do que está falando, pai?
-Quando você se casou, há
vinte anos... Você não tinha vontade de ser mãe, nem mesmo com a insistência do
seu marido. Foi aí que você decidiu congelar seus óvulos. Depois de um tempo...
Decidiram ter um filho... Mas o seu marido descobriu que não poderia ter
filhos...
-Pra quê tocar nesse assunto
agora? Eu não gosto de falar sobre isso...
-Eu sei, mas eu preciso
contar... Contar que fiquei frustrado por não ter o neto que tanto queria.
-Como eu poderia ter um filho
se o meu marido era estéril? Mesmo que eu optasse por uma inseminação
artificial, não seria o mesmo, entende? Foi uma iniciativa dele, e eu não quis
contrariá-lo.
-Mas um neto... Um neto era o
meu sonho maior. Seria a minha felicidade. Eu tentei... Convencer você a ter um
filho mesmo assim...
-E eu fiquei do lado dele...
Por que o senhor insiste com isso? Sabe o quanto falar é doloroso pra mim...
-Uma moça veio me procurar na
clínica com o marido, um pastor. Ela estava desesperada porque tentou ter um
bebê e não conseguia. Lembro até do nome deles: Murilo e Verônica.
-Aonde o senhor quer chegar
com isso?
-Ela jamais desconfiou. Nem
você. Eu implantei o seu óvulo nela.
-O meu... Não, isso não pode
ser verdade...
-Essa moça ficou grávida
depois que implantou o óvulo... O seu óvulo...
-Você não tinha o direito de
fazer isso!
-Você nunca permitiria,
Natália...
-Onde é que está essa mulher?
Eu quero saber quem ela é.
-Existe um filho. Um filho
seu que foi criado... Por eles.
Murilo chega a um dos cômodos
da Igreja Lar Celestial com uma fiel chamada Ivone.
-Eu ia entregar pro irmão
Célio, mas ele não veio hoje. Ele está doente, pastor.
-Foi uma daquelas viroses,
sabe, irmã? Mas agora todo mundo “tá” pegando. Acho que nesse sábado ele já vai
comandar o culto. Pode deixar comigo.
-Não vai se irritar? O senhor
sabe que ele gosta que entreguem o dinheiro a ele. E eu só vim pra dar a oferta
e comprar os seis bancos da igreja.
-A senhora também veio pra se
alimentar da palavra. Ou vai dizer que o culto de hoje não foi uma bênção?
-Foi, pastor. Foi, sim. “Tá”
aqui os cinquenta reais. Quando é que o senhor acha que vão colocar na igreja
os bancos novos?
-Célio e eu vamos resolver
isso ainda nessa semana. Pode ficar tranquila.
-Está certo. A paz do Senhor,
irmão.
-Amém. Até o culto de amanhã.
-Até.
Existe uma chave ao lado de
uma urna numa prateleira do quarto. Murilo a abre e descobre que não há
dinheiro dentro desta, deixando-lhe desesperado.
-O que significa isso? Quem
foi que pegou o... – lembra-se de algo- Não foi você, meu filho... Não pode ter
sido você... - ao pensar que talvez algum frequentador da igreja esteja lhe
ouvindo falar, fecha a porta e disca um número de celular- Atende, meu filho.
Atende!- começa a falar em voz baixa.
Num lugar escuro, o celular
do filho de Murilo começa a tocar. Ele o tira do bolso e vê o nome do pai.
-Desculpa, pai, mas a vida que
eu quero pra mim não é a sua. Nunca foi... – joga o celular quando o aparelho
cai numa galeria.
Alexandre, com ar de
determinação, aparece com uma mochila nas costas e vai até o carro onde está o
casal Paulo e Rebeca.
-Você teve coragem mesmo!-
exclama a moça.
-E a sua família, Alexandre?
-Minha família agora são
vocês. Meus únicos parceiros. No crime... E na vida.
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