13/04/2014

OS INATACÁVEIS/ CAPÍTULO 2: EM CONTATO

No refeitório da penitenciária, um funcionário vem com um carro trazendo os pratos dos detentos. Murilo está na mesma mesa que Irandir, sentado de frente para o mesmo. Ambos não deixam de notar que o homem canta baixo uma música voltada ao público evangélico.
-Eu corro para Ti, não sei viver sem Ti. Sem ter o teu amor, não posso respirar...
-Já tem uns dias que esse cara fica cantando isso- observa Irandir.
-Sabe da vitória que recebeu. E não foi coisa pouca.
-Como sabe que foi uma vitória?
-Não prestou atenção na letra? Ele estava afastado de Deus, decidiu se voltar e uma bênção se cumpriu.
-Por favor... Nem você acredita mais nisso...
-Quem disse?
-Olha pra você: desanimado, triste, pensando que foi abandonado... E foi mesmo. Ontem foi dia de visita e ninguém veio te ver.
-Todo humano é falho. Você acredita que é possível confiar em alguém que falha?
-Se você é inocente, não falhou em nada. As pessoas que “tão” lá fora não confiam em você. Realmente pensa que não te abandonaram?
-Quem eu preciso não me abandonou. Eu não podia ter outra reação, dizer que estou feliz de estar aqui, mas... Posso suportar isso.
-Me diz aí como.
-Nenhum tipo de provação é maior que a nossa capacidade de suportar.
-OK, daqui a pouco você vai dizer que o teto vai se abrir e você vai sair daqui.
-Creio que saio. Mas não blasfeme. Nunca ouviu falar que tudo é possível aos olhos do que crê?
-Por isso: não creio. Vamos mudar de assunto. Ontem você falou de uma mulher que descobriu que o óvulo dela foi parar na sua. E aí?
-Com uma revelação dessas, ela não ficou de braços cruzados. Nem poderia.
-Ela não era de São Paulo? Como é que vocês foram parar lá?
-Verônica, que é minha esposa, já estava comigo antes de eu me tornar pastor. O nosso sonho era ter um filho, mas nada dava certo. A gente juntou umas economias e foi pra São Paulo porque o pai dessa mulher era especialista em fertilização. Sabe referência nacional no assunto?
-“Tô” sabendo... E você não achou que tinha nada errado?
-Nenhum dos dois tinha problema pra ter filho. Foi o que a gente descobriu indo no consultório do médico. Então, recorremos a uma tal de fertilização in vitro. Ele disse que era o melhor pra gente.
-Jogando o óvulo fora?
-A gente não tinha ideia de que ele fosse fazer isso pra gerar um neto.
-Quer dizer que o garoto é seu filho com a filha do médico, que você nunca viu na vida?
-Mulher que até o sumiço do meu filho eu nunca tinha visto.
-Imagino que essa mulher deve ter surtado, hein?
-Não só surtou como decidiu investigar.
-O que ela descobriu?



Na clínica que era presidida pelo pai de Natália, uma secretária se assusta ao dar de cara com aquela mulher, completamente desnorteada e naquele lugar à noite.
-Dona Natália? O que a senhora...
-Onde é que vocês guardam os arquivos de pacientes antigos?
-Nessa sala ao lado. Mas como o seu pai...
-Quer saber como ele está? Morreu! Não resistiu e morreu. Era só isso que você queria saber?
-Espera aí, eu não posso deixar a senhora entrar!
-É melhor você me dar essa chave porque eu não quero ter de demitir você. Anda logo, vai pegar a chave pra abrir isso.
-Mas o que a senhora está procurando?- tira a chave de uma gaveta.
-Procurando, não. Tendo a minha vida de volta. Resgatando aquilo que meu pai me tirou. Abre logo essa porta!- a jovem obedece, e deixa Natália vasculhar a papelada.
- A senhora precisa de mais alguma coisa?
-Não. Pode ir pra casa. Eu vou passar a noite aqui examinando o que eu estou procurando.
-Com licença, então... – sai.
-Letra T, letra U, letra V... Verônica, Verônica... Onde é que está o prontuário dessa mulher?
Cada vez mais impaciente, Natália retira a gaveta com os prontuários e com ela se abaixa. Nela, encontra diversas fichas de mulheres homônimas. Nota que há uma pasta vermelha no meio delas. Decide puxá-la, quando vem junto a da mulher que cuidou de seu filho. Juntas por um clipe, Natália lê em voz alta o que está no adesivo daquela reunião de documentos.
-“Dossiê Nobre”? Por que isso?
E o compara à ficha de Verônica.
-Verônica Nobre? Data de nascimento: 14 de novembro de 1966. Cidade: Olinda. Cônjuge: Murilo Nobre. Procedimento médico: Fertilização in vitro... Ela não sabia que o meu pai havia implantado o meu óvulo nela. Mas vai saber. E vai saber porque eu vou contar.


Paulo, Rebeca e Alexandre chegam com suas mochilas em um apartamento vazio, com apenas colchonetes e colchões colocados sobre o chão.
-É aqui que a gente vai ficar?- pergunta o inseguro Alexandre.
-Um hotel de luxo não “tá” nas opções da gente, pelo menos por enquanto- esclarece Paulo.
-Fala, Paulo. Qual o próximo passo que a gente vai seguir?- Rebeca fica curiosa.
-Tem uma loja de conveniência num posto de gasolina que fica perto do Complexo Têxtil.
-Mas a polícia não fica passando por lá direto?- observa Alexandre.
-Andei me informando, Alexandre. Fica frio. A partir das dez da manhã, começa a distribuição de revistas. A tal editora fica perto do posto. E nesse horário, a polícia nem à paisana fica.
-Quando a gente vai? Amanhã mesmo?
-Não, Rebeca. Vai dar muito na cara. A gente acabou de sair de casa hoje, vai dar muito na vista. Se alguém da família da gente inventar de botar a polícia atrás de nós, como é que vai ser? Vamos dar uns dois dias, já é tempo de pensar melhor em como fazer o assalto.
-Você tem razão. Bom, vocês trouxeram algum dinheiro pra comida nesses dois dias?
-Eu trouxe- Alexandre tira uma quantia de duzentos reais- Acho que vai dar pra gente se virar com isso.
-Pensei que você tinha trazido mais que isso... – Paulo se mostra um pouco decepcionado.
-E trouxe. Mas é melhor guardar. Vai que depois a gente precisa.
-Tem razão. Melhor guardar mesmo.
-Já “tô” pensando nesses vizinhos estranhando eu morando com dois homens ao mesmo tempo...
-Se isso te preocupa, a gente diz que eu sou teu irmão- “propõe” Paulo.
-Muito incestuoso da sua parte, meu amor!- Rebeca dá um beijo em seu cúmplice- Vamos dizer que o Alexandre é meu irmão, OK? Essa estória eles vão acabar comprando. Me dá esses trezentos que eu vou ao supermercado comprar alguma coisa.
-Já é- Alexandre entrega a quantia.
-Venho daqui a pouco- abre a porta do apartamento.


Verônica, a esposa de Murilo, bate à porta do quarto de seu filho, naquela mesma noite.
-Filho, o que está acontecendo? Você não desceu pra jantar. O que foi que houve? Sai desse quarto, meu filho. Eu estou ficando preocupada.
-Cadê ele?- Murilo sobe às escadas, ofegante.
-Murilo, o que foi que houve?
-Ele não quer abrir a porta?- tira um molho de chaves do bolso- Vai ver que ele nem em casa está.
-O que está acontecendo?
-Você vai saber já, já. E pro bem dele, eu espero... Eu estou orando que ele esteja nesse quarto, sem fome, dormindo... Como eu quero que ele esteja!- entra no quarto- Viu só? Tudo arrumado, do jeito que você deve ter deixado mais cedo.
-Pra onde ele foi a uma hora dessas? O que você está procurando?- diz, ao ver o marido abrir as portas do guarda-roupa.
-Tem roupa dele faltando, isso é nítido... O Gigante fugiu.
-O quê? Não, isso não pode ser verdade. Pra onde ele foi?
-Isso, eu não sei. Mas eu vou botar a polícia atrás dele. Isso, sim, eu vou fazer.
-Polícia? Que estória é essa? Talvez ele tenha saído com algum amigo...
-Como ele vem fazendo ultimamente, Verônica? Será que você não vê as queixas que ele tem da gente? Do nosso modo de vida? Da nossa situação financeira? Do dinheiro que é investido na Lar Celestial?
-Do que você está falando, Murilo?
-Nosso filho não se conforma de ver a igreja prosperando, enquanto a gente tem uma vida simples, pacata, muitas vezes sem ter tanto dinheiro como ele quer.
-Por favor, aonde você chegar com isso?
-Verônica, a Lar Celestial acabou de ser roubada. O dinheiro das ofertas dos irmãos sumiu.
-Ligou pro irmão Célio? Ele é que cuida disso...
-Célio está com virose. E depois, eu vi ele conferir o dinheiro. Tudo normal, não pegou uma moeda. E hoje, eu vi que o dinheiro nem na urna estava.
-Murilo, você não está achando que o Gigante...
-E você também não está? Será que só eu tenho essa impressão? Porque se você também tiver, é porque já percebeu como ele está diferente comigo, com você, com todo mundo.
-Meu filho não roubou dinheiro nenhum. Pode ter sido outra pessoa... Aliás,não pode ter sido: foi outra pessoa!
-Para, Verônica! O dinheiro sumiu, o Gigante sumiu também! Será que isso é um engano mesmo? Pois eu vou te dizer: não é! Aceite os fatos: esse garoto não passa de um ladrão! Um ladrão!
-Cala essa boca!- esbofeteia o marido- Eu não admito que você fale assim do meu filho, entendeu? Ele não fez nada! Nada! Você é que está errado! O único que cometeu algum erro aqui foi você, acusando ele sem provas.
-Sou pai. Sou o pai dele, Verônica. Você acha que eu não vou sentir meu filho se distanciando de mim? Pra mim, isso pode até ser uma provação, mas eu sei que vou vencer. E espero que o Gigante vença comigo. Mas se eu tiver que chamar a polícia pra isso, eu vou acionar!
Com os olhos marejados, Verônica avisa.
-Eu vou esperar o meu filho lá embaixo. Quando ele voltar, a gente vai conversar, e você vai ter que me pedir desculpas por tudo que acabou de falar.
-De coração, eu quero ter de pedir desculpa. Mas só se o Gigante aparecer.
Verônica sai do quarto abalada e Murilo senta na cama, emocionado como que acaba de dizer.
-Eu vou superar isso. Meu filho também vai superar, junto de mim e da mãe. Creio nisso. É só no que eu creio agora.


Natália lê o “Dossiê Nobre” e encontra uma passagem que lhe desperta curiosidade.
-“O filho de Verônica e Murilo Nobre é conhecido como ‘Gigante’ e não participa com frequência dos cultos ministrados por seu pai. Há pouco tempo, terminou o ensino médio, mas ainda não exerce nenhuma profissão”... Gigante... Então esse é o apelido dele... Eu não vou aguentar guardar essa angústia dentro de mim, calada... Eu vou atrás desse rapaz. Vou atrás do meu filho- pega o telefone da secretária e disca um número- Boa noite. Eu gostaria de comprar uma passagem com urgência para primeira classe. Meu destino? Pernambuco.

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