No refeitório da
penitenciária, um funcionário vem com um carro trazendo os pratos dos detentos.
Murilo está na mesma mesa que Irandir, sentado de frente para o mesmo. Ambos
não deixam de notar que o homem canta baixo uma música voltada ao público
evangélico.
-Eu corro para Ti, não sei
viver sem Ti. Sem ter o teu amor, não posso respirar...
-Já tem uns dias que esse
cara fica cantando isso- observa Irandir.
-Sabe da vitória que recebeu.
E não foi coisa pouca.
-Como sabe que foi uma
vitória?
-Não prestou atenção na
letra? Ele estava afastado de Deus, decidiu se voltar e uma bênção se cumpriu.
-Por favor... Nem você
acredita mais nisso...
-Quem disse?
-Olha pra você: desanimado,
triste, pensando que foi abandonado... E foi mesmo. Ontem foi dia de visita e
ninguém veio te ver.
-Todo humano é falho. Você
acredita que é possível confiar em alguém que falha?
-Se você é inocente, não
falhou em nada. As pessoas que “tão” lá fora não confiam em você. Realmente
pensa que não te abandonaram?
-Quem eu preciso não me abandonou.
Eu não podia ter outra reação, dizer que estou feliz de estar aqui, mas...
Posso suportar isso.
-Me diz aí como.
-Nenhum tipo de provação é
maior que a nossa capacidade de suportar.
-OK, daqui a pouco você vai
dizer que o teto vai se abrir e você vai sair daqui.
-Creio que saio. Mas não
blasfeme. Nunca ouviu falar que tudo é possível aos olhos do que crê?
-Por isso: não creio. Vamos
mudar de assunto. Ontem você falou de uma mulher que descobriu que o óvulo dela
foi parar na sua. E aí?
-Com uma revelação dessas,
ela não ficou de braços cruzados. Nem poderia.
-Ela não era de São Paulo?
Como é que vocês foram parar lá?
-Verônica, que é minha
esposa, já estava comigo antes de eu me tornar pastor. O nosso sonho era ter um
filho, mas nada dava certo. A gente juntou umas economias e foi pra São Paulo
porque o pai dessa mulher era especialista em fertilização. Sabe referência
nacional no assunto?
-“Tô” sabendo... E você não
achou que tinha nada errado?
-Nenhum dos dois tinha
problema pra ter filho. Foi o que a gente descobriu indo no consultório do
médico. Então, recorremos a uma tal de fertilização in vitro. Ele disse que
era o melhor pra gente.
-Jogando o óvulo fora?
-A gente não tinha ideia de
que ele fosse fazer isso pra gerar um neto.
-Quer dizer que o garoto é
seu filho com a filha do médico, que você nunca viu na vida?
-Mulher que até o sumiço do
meu filho eu nunca tinha visto.
-Imagino que essa mulher deve
ter surtado, hein?
-Não só surtou como decidiu
investigar.
-O que ela descobriu?
Na clínica que era presidida
pelo pai de Natália, uma secretária se assusta ao dar de cara com aquela
mulher, completamente desnorteada e naquele lugar à noite.
-Dona Natália? O que a
senhora...
-Onde é que vocês guardam os
arquivos de pacientes antigos?
-Nessa sala ao lado. Mas como
o seu pai...
-Quer saber como ele está? Morreu!
Não resistiu e morreu. Era só isso que você queria saber?
-Espera aí, eu não posso
deixar a senhora entrar!
-É melhor você me dar essa
chave porque eu não quero ter de demitir você. Anda logo, vai pegar a chave pra
abrir isso.
-Mas o que a senhora está
procurando?- tira a chave de uma gaveta.
-Procurando, não. Tendo a
minha vida de volta. Resgatando aquilo que meu pai me tirou. Abre logo essa
porta!- a jovem obedece, e deixa Natália vasculhar a papelada.
- A senhora precisa de mais
alguma coisa?
-Não. Pode ir pra casa. Eu
vou passar a noite aqui examinando o que eu estou procurando.
-Com licença, então... – sai.
-Letra T, letra U, letra V...
Verônica, Verônica... Onde é que está o prontuário dessa mulher?
Cada vez mais impaciente,
Natália retira a gaveta com os prontuários e com ela se abaixa. Nela, encontra
diversas fichas de mulheres homônimas. Nota que há uma pasta vermelha no meio
delas. Decide puxá-la, quando vem junto a da mulher que cuidou de seu filho.
Juntas por um clipe, Natália lê em voz alta o que está no adesivo daquela
reunião de documentos.
-“Dossiê Nobre”? Por que
isso?
E o compara à ficha de
Verônica.
-Verônica Nobre? Data de
nascimento: 14 de novembro de 1966. Cidade: Olinda. Cônjuge: Murilo Nobre.
Procedimento médico: Fertilização in vitro... Ela não sabia que o meu pai havia
implantado o meu óvulo nela. Mas vai saber. E vai saber porque eu vou contar.
Paulo, Rebeca e Alexandre
chegam com suas mochilas em um apartamento vazio, com apenas colchonetes e
colchões colocados sobre o chão.
-É aqui que a gente vai
ficar?- pergunta o inseguro Alexandre.
-Um hotel de luxo não “tá”
nas opções da gente, pelo menos por enquanto- esclarece Paulo.
-Fala, Paulo. Qual o próximo
passo que a gente vai seguir?- Rebeca fica curiosa.
-Tem uma loja de conveniência
num posto de gasolina que fica perto do Complexo Têxtil.
-Mas a polícia não fica
passando por lá direto?- observa Alexandre.
-Andei me informando,
Alexandre. Fica frio. A partir das dez da manhã, começa a distribuição de
revistas. A tal editora fica perto do posto. E nesse horário, a polícia nem à
paisana fica.
-Quando a gente vai? Amanhã
mesmo?
-Não, Rebeca. Vai dar muito
na cara. A gente acabou de sair de casa hoje, vai dar muito na vista. Se alguém
da família da gente inventar de botar a polícia atrás de nós, como é que vai
ser? Vamos dar uns dois dias, já é tempo de pensar melhor em como fazer o
assalto.
-Você tem razão. Bom, vocês
trouxeram algum dinheiro pra comida nesses dois dias?
-Eu trouxe- Alexandre tira
uma quantia de duzentos reais- Acho que vai dar pra gente se virar com isso.
-Pensei que você tinha
trazido mais que isso... – Paulo se mostra um pouco decepcionado.
-E trouxe. Mas é melhor
guardar. Vai que depois a gente precisa.
-Tem razão. Melhor guardar
mesmo.
-Já “tô” pensando nesses
vizinhos estranhando eu morando com dois homens ao mesmo tempo...
-Se isso te preocupa, a gente
diz que eu sou teu irmão- “propõe” Paulo.
-Muito incestuoso da sua
parte, meu amor!- Rebeca dá um beijo em seu cúmplice- Vamos dizer que o
Alexandre é meu irmão, OK? Essa estória eles vão acabar comprando. Me dá esses
trezentos que eu vou ao supermercado comprar alguma coisa.
-Já é- Alexandre entrega a
quantia.
-Venho daqui a pouco- abre a
porta do apartamento.
Verônica, a esposa de Murilo,
bate à porta do quarto de seu filho, naquela mesma noite.
-Filho, o que está
acontecendo? Você não desceu pra jantar. O que foi que houve? Sai desse quarto,
meu filho. Eu estou ficando preocupada.
-Cadê ele?- Murilo sobe às
escadas, ofegante.
-Murilo, o que foi que houve?
-Ele não quer abrir a porta?-
tira um molho de chaves do bolso- Vai ver que ele nem em casa está.
-O que está acontecendo?
-Você vai saber já, já. E pro
bem dele, eu espero... Eu estou orando que ele esteja nesse quarto, sem fome,
dormindo... Como eu quero que ele esteja!- entra no quarto- Viu só? Tudo
arrumado, do jeito que você deve ter deixado mais cedo.
-Pra onde ele foi a uma hora
dessas? O que você está procurando?- diz, ao ver o marido abrir as portas do guarda-roupa.
-Tem roupa dele faltando,
isso é nítido... O Gigante fugiu.
-O quê? Não, isso não pode
ser verdade. Pra onde ele foi?
-Isso, eu não sei. Mas eu vou
botar a polícia atrás dele. Isso, sim, eu vou fazer.
-Polícia? Que estória é essa?
Talvez ele tenha saído com algum amigo...
-Como ele vem fazendo
ultimamente, Verônica? Será que você não vê as queixas que ele tem da gente? Do
nosso modo de vida? Da nossa situação financeira? Do dinheiro que é investido
na Lar Celestial?
-Do que você está falando,
Murilo?
-Nosso filho não se conforma
de ver a igreja prosperando, enquanto a gente tem uma vida simples, pacata,
muitas vezes sem ter tanto dinheiro como ele quer.
-Por favor, aonde você chegar
com isso?
-Verônica, a Lar Celestial
acabou de ser roubada. O dinheiro das ofertas dos irmãos sumiu.
-Ligou pro irmão Célio? Ele é
que cuida disso...
-Célio está com virose. E depois,
eu vi ele conferir o dinheiro. Tudo normal, não pegou uma moeda. E hoje, eu vi
que o dinheiro nem na urna estava.
-Murilo, você não está
achando que o Gigante...
-E você também não está? Será
que só eu tenho essa impressão? Porque se você também tiver, é porque já
percebeu como ele está diferente comigo, com você, com todo mundo.
-Meu filho não roubou
dinheiro nenhum. Pode ter sido outra pessoa... Aliás,não pode ter sido: foi
outra pessoa!
-Para, Verônica! O dinheiro
sumiu, o Gigante sumiu também! Será que isso é um engano mesmo? Pois eu vou te
dizer: não é! Aceite os fatos: esse garoto não passa de um ladrão! Um ladrão!
-Cala essa boca!- esbofeteia
o marido- Eu não admito que você fale assim do meu filho, entendeu? Ele não fez
nada! Nada! Você é que está errado! O único que cometeu algum erro aqui foi
você, acusando ele sem provas.
-Sou pai. Sou o pai dele,
Verônica. Você acha que eu não vou sentir meu filho se distanciando de mim? Pra
mim, isso pode até ser uma provação, mas eu sei que vou vencer. E espero que o
Gigante vença comigo. Mas se eu tiver que chamar a polícia pra isso, eu vou
acionar!
Com os olhos marejados,
Verônica avisa.
-Eu vou esperar o meu filho
lá embaixo. Quando ele voltar, a gente vai conversar, e você vai ter que me
pedir desculpas por tudo que acabou de falar.
-De coração, eu quero ter de
pedir desculpa. Mas só se o Gigante aparecer.
Verônica sai do quarto
abalada e Murilo senta na cama, emocionado como que acaba de dizer.
-Eu vou superar isso. Meu
filho também vai superar, junto de mim e da mãe. Creio nisso. É só no que eu
creio agora.
Natália lê o “Dossiê Nobre” e
encontra uma passagem que lhe desperta curiosidade.
-“O filho de Verônica e Murilo
Nobre é conhecido como ‘Gigante’ e não participa com frequência dos cultos
ministrados por seu pai. Há pouco tempo, terminou o ensino médio, mas ainda não
exerce nenhuma profissão”... Gigante... Então esse é o apelido dele... Eu não
vou aguentar guardar essa angústia dentro de mim, calada... Eu vou atrás desse
rapaz. Vou atrás do meu filho- pega o telefone da secretária e disca um número-
Boa noite. Eu gostaria de comprar uma passagem com urgência para primeira
classe. Meu destino? Pernambuco.
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