01/08/2016

DIÁRIO DE LUTA/ CAPÍTULO 1: CÉSAR

Na beira da praia, Luiza e Talita estão com um olhar triste, contemplando o ato da segunda em segurar uma urna e abri-la lentamente. Talita derrama as cinzas da mãe na beira da praia aos poucos, e deixa suas lágrimas caírem. Luiza também quer chorar, mas parece resistente. Fecha os olhos.
-Me diz que isso é mentira, que ela vai voltar.
-Se eu tivesse chance, eu ia fazer de tudo pra ela voltar. Mas eu não consigo. Ninguém pode.
-Não foi tão de repente assim, mas... A gente via ela sofrendo, reclamando de dor, das vezes que ela ia pro hospital. Foi um descanso pra ela. Mesmo assim, é como se tivessem tirado ela da gente. O que é que a gente vai dizer pra Voinha?
-Tive coragem de dizer nada, não, Talita. Depois que a gente recebeu a notícia, pedi pro médico ligar pro asilo e avisar.
-Meu Deus, eu não quero nem imaginar como foi isso pra ela...
-A sorte é que Tia Fátima resolveu tudo. A liberação no IML, o velório, a cremação...
-E agora? Ela vem pra cá, pra ficar com a gente?
-Tia Fátima tem uma vida longe da gente, Talita.
-E Painho, Luiza?
-Aí é que tá: ele é responsável pela gente. Vai ter que cuidar de nós duas.
-Ele vem pra cá? Vai morar lá em casa?
-Não passou nem pra ver Mainha internada, não deu satisfação no velório, nem ligou pra dizer nada. Mas ele é o responsável. Tia Fátima disse que a gente vai ter que se mudar pro apartamento dele.
-Não sei. Não sei se vou me acostumar com essa vida nova, essa mudança. Eu ainda nem acredito que eu tô aqui, me despedindo...
-Se tivesse outro jeito... Mas tem uma coisa que não mudou: eu vou cuidar de você. Pra sempre- une a sua mão esquerda à direita de Talita.
As duas se olham de mãos dadas e demonstram compreensão uma pela outra, enquanto se despedem de Soraia definitivamente.
 

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Hermínia está num banco de cimento, olhando para o céu. As irmãs chegam juntas ao asilo após terem passado pela praia, parando atrás da idosa.
-Voinha?- Talita chama, e Hermínia se vira para as adolescentes e esboça um pequeno sorriso, enquanto as jovens choram bastante.
-Vocês não imaginam o quanto eu queria ver vocês duas- sem se levantar, a idosa recebe um abraço emocionado das irmãs.
-Desculpa a gente não ter vindo pra cá ontem, mas...
-Deixe disso, Talita. O médico que atendeu sua mãe me ligou avisando. Pior que eu já estava esperando por isso. Passei o dia todo ontem com um pressentimento ruim. Soraia foi definhando. Poucas vezes vinha me ver, e quando vinha... Era aquele cansaço, a cara de derrota, de quem perdia uma batalha todos os dias.
-É... Ela não demonstrava, mas nunca superou o fim do casamento com Painho.
-No fundo, eu sabia que isso ia acontecer. Sua mãe não via mais razão pra continuar vivendo... Assim como eu também não vejo agora.
-Não fala isso!- Luiza repreende a frase de Hermínia- A gente precisa da senhora.
-Pra quê, Luiza? O que eu posso fazer? Daqui a pouco vocês duas vão crescer, fazer uma faculdade, namorar, casar... Vou impedir o curso natural da vida?
-Luiza tem razão. Depois de Mainha, a gente não vai suportar perder a senhora.
-Lutar pra quê, Talita? Minha filha se afastou de mim. Não foi a doença ou a morte que me separou de Soraia. A barreira era ela mesma, comigo e com vocês duas. Só fico mais tranquila porque sei que não vão deixar os estudos, que vão batalhar pra ser gente na vida.
-A senhora já sabe que a gente vai pra casa de Painho?- a neta mais carinhosa sonda a avó sobre a notícia.
-Imaginava, minha filha. César vai oferecer uma vida boa pra vocês, dar tudo que vocês precisam.
-Nem tudo... – alfineta a rebelde Luiza.
-Quando o pai de vocês era casado com Soraia, eu conheci a irmã dele, Fátima. Confio nela. Vai fazer um bem danado pra vocês passarem esse tempo com ela.
-Quando eu me emancipar, ganhar meu dinheiro, eu saio daquela casa e levo a senhora pra morar comigo- Luiza chega a prometer.
-Sou feliz até onde eu posso ser, meu amor. Mas eu vou pedir uma coisa.
-Pode falar- Talita demonstra cuidado com Hermínia.
-Procurem não bater de frente com o pai de vocês. Ele errou muito, mas o mal eu tenho certeza de que ele não deseja pras filhas.
-Não entendi. Ele errou muito em quê, Vó?
-Talita, é melhor a gente ficar na porta do asilo- Luiza procura desviar a atenção da irmã- Tia Fátima já tá com a chave de casa e tá fazendo nossas malas. Daqui a pouco, ela vem pegar nós duas num táxi.
-Peraí, eu quero saber o que ela tem pra dizer.
-O que eu posso falar é que é pra vocês não se preocuparem comigo. César vai saber manter melhor as filhas do que o próprio casamento.
Talita olha para a irmã com feição de dúvida, enquanto esta demonstra compreender as misteriosas palavras da interna.
 

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À tarde, a tia das garotas, Fátima, carrega duas mochilas, enquanto as adolescentes trazem suas malas para o apartamento onde ela mora com César, seu irmão e pai das garotas.
-Pronto- Fátima dá um suspiro- Graças a Deus, a gente chegou.
-Nossa. Aqui parece que não mudou nada- Talita fica surpresa com o estado impecável que Fátima deixa a organização da casa.
-Eu mesmo nem sei a diferença. Fazia era tempo que eu não vinha aqui.
-Não vai demorar muito pra vocês duas se acostumarem a isso daqui.
-Tá enganada, Tia. A coisa vai ser bem diferente- Luiza demonstra seu pessimismo.
-Cadê Painho? Pensava que ele ia estar aqui pra receber a gente.
-Fui cuidar de colocar o almoço dele. César tinha uma série de consultas agendadas no hospital hoje.

-Tá, mas num sábado?
-Vida de médico é uma loucura sem tamanho, Talita. Sempre o César está à disposição do hospital.
-Vai ver ele não sabia como encarar a gente, depois de tanto tempo.
-Não é bem assim, Luiza...
-Tia, sem estresse, tá? Eu já entendi tudo...

-Entendeu errado. César queria estar com vocês, mas não deu. Só que de noite ele vai vir pra cá, sem falta.
-Deixa ela, Tia. Ela tá magoada. Ela nunca engoliu Painho ser um homem ocupado, sem ter muito tempo pra ver a gente.
-Já você aceita tudo numa boa sempre, né? Parece que adora uma migalha!
-Meninas, por favor. Não é hora de discutir. Ainda mais agora, que nós todos temos que nos unir. Eu posso não ser mãe de vocês, nem ter experiência com filho de ninguém, mas amor nessa casa eu sei que não vai faltar. Pelo menos não da minha parte. Bom, eu vou mostrar o quarto de vocês duas.
-Mostra a ela, Tia. Eu vou ficar aqui um pouquinho.
-Você é quem sabe, Luiza. Vamos, Talita, é por aqui...
Fátima e Talita vão ao quarto e a irmã de Luiza leva também a sua mala, enquanto a solitária jovem anda vagarosamente até a janela, na esperança de ver o carro do clínico geral chegando mais cedo.

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Os amigos Nuno e Beto estão de volta ao prédio onde o primeiro mora, conversando animadamente na fachada.
-Será que tua irmã não chegou ainda, Nuno?
-Se não chegou, daqui a pouco aparece num táxi, cheia de compra do shopping. Isso é gostar de ostentar, né, não?
-Nunca fui disso. Mas Júlia adora. Parece que quer esfregar na cara de todo mundo que tem dinheiro, que é a melhor aluna da faculdade de Jornalismo... Uma autopromoção absurda!
-E eu bem não sei? Convivo com ela todos os dias lá na universidade. Mas a nossa competição é bem saudável. Pelo menos até onde sua irmã deixa ser assim.
-Vocês não competem, na verdade. Convivem juntos, até desenvolvem um projeto de extensão... Já decidisse como é que vocês pretendem fazer isso?
-A ideia que eu sugeri é que nós selecionássemos mulheres que foram vítimas de algum tipo de violência, doméstica ou sexual. Sabe o que foi que sua irmã disse?
-O quê?
-"Você anda entrando demais no Facebook. Já tá afetado por esse mimimi de feminismo".

-Isso é bem a cara de Júlia mesmo, Beto. Mas uma coisa que eu tava em dúvida era o seguinte: a Federal deu um prazo pra que... - Nuno olha para cima e vê Luiza na janela do apartamento, vendo a movimentação pedestre...
-Pra defesa do projeto de extensão? Olha, a pró-reitoria disse que é muito provável que isso aconteça antes do encerramento... – Beto percebe que Nuno não está prestando atenção- Nuno, tá me ouvindo? Ei, irmão! -estala os dedos.
-Desculpa, Beto, é que... – Nuno volta a olhar para a janela do apartamento, e Beto repete o trejeito.
-Hum, tá sentindo esse cheiro? Cheiro de crush no ar- Beto brinca com a situação.
-Essa menina eu nunca vi. Ela tá na casa de quem?
-Deve ser no apartamento daquele médico que mora perto de vocês, o Dr. César- Beto repara que Nuno ainda está olhando pra cima, mesmo quando Luiza entra em sua nova casa- Alô, alô? Planeta Terra chamando!
-Foi mal, cara. Bom... Bora ver se Júlia já chegou?
-Vamos- os rapazes entram no prédio.

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Anoitece, e Luiza está na janela do apartamento, com o olhar totalmente perdido e uma feição extremamente abatida. Talita está no sofá, acessando a internet pelo celular. Fátima sai da cozinha.
-Ah, minha gente. Vocês vão me desculpar, mas dirigir aquela distância todinha, arrumar o quarto pras duas e ainda fazer o jantar pra esperar o bonito do pai de vocês duas? Vou é comer.
-Também vou, Tia. Tu não "quer" comer, não, Luiza?- Talita vê a irmã ainda em distração- Luiza?
-Oi? Me chamasse?
-Tia Fátima vai colocar o jantar. Não vai comer nada? Desde lá de casa que tu não "comeu".
-Tô sem fome. Se me apertar de madrugada, eu como qualquer coisa da geladeira.
Entendendo que Luiza não quer dialogar de nenhuma maneira, Fátima faz um sinal para Talita deixar a irmã sozinha.
-Deixa, Talita. Eu deixo um prato pronto pra Luiza depois. Minha filha, você me ajudar a forrar a mesa?
-Tá, tudo bem.
Quando Fátima e Talita vão até a cozinha, ouve um barulho: é a porta da casa sendo destrancada. César chega com um jaleco no braço esquerdo e a pasta do outro lado, junto ao molho de chaves.
-Tá cada vez pior, viu? Não tem mais condições de sair de casa sem enfrentar um engarrafamento no Ipsep- diz o médico, dirigindo-se à irmã, Fátima.
-César.

-O que é?
-Suas filhas. Você não vai dar um abraço nelas?
-Claro- a resposta é dada de maneira fria, depois puxando Talita para abraçá-la- Como é que você tá, minha filha?
-Tentando me acostumar. Mas eu vou melhorar. Ainda mais que a gente vai ficar mais perto do senhor. Por que o senhor não foi pro velório?
-Plantão, meu amor. Vida de médico faz seu pai abrir mão de muita coisa- Fátima dá essa justificativa, sabendo que César não tem outra melhor para apresentar.
-Deixa ele falar, Tia- Luiza sai de perto da janela e se dirige ao médico- O hospital que o senhor trabalha não lhe dá folga ou é o senhor que gosta muito de trabalhar?
-Ambas as coisas, minha filha. Pedir pra que alguém compreenda meus horários é uma tarefa impossível. E você, Luiza? Como é que você tá?
-Melhor eu não dar essa resposta.
-Tudo bem. Eu imagino o quanto isso deve ser difícil pra vocês duas, mas... Você não vai me dar um abraço, minha filha?- após a pergunta, a garota fica parada, olhando para o pai com bastante ressentimento.
-Responde, Luiza. Ele tá te pedindo um abraço... – Talita espera que a irmã reaja.
-Abraça o seu pai, meu amor.

DEPOIMENTO

"Eu tinha nove anos. Me lembro que era uma festa lá em casa, pra comemorar o aniversário de alguém, não me lembro de quem. Parece que era o meu. Disse pro meu pai que ia usar a roupa que a minha tia me comprou: um vestido rosa, de uma boneca que vivia passando na televisão. Estava me aprontando, e quando coloquei tudo, me olhei no espelho. Vi que uma brecha da porta do quarto tava aberta: era um primo meu, mais velho, que até convivia com a gente. Nunca reparei que ele me olhava diferente, até porque a gente tava sempre rodeado de parentes. Pois é... Foi nesse dia que ele percebeu que ninguém ia entrar ali porque eu trocava de roupa... (longa pausa) Não sabia o que ele tinha feito, nem porque tinha feito. Só achei estranho. Comigo, ele nunca mais fez isso. Dias depois, a família não falava de outra coisa. Pensei que ele tinha falado disso pra alguém, ou que alguém viu na hora e se calou... Passou na televisão ele sendo acusado de ter feito a mesma coisa com outra criança, de cinco anos. Fugiu pra não ser preso, ou então pra que a família da menina não fosse atrás dele. Já se passou tanto tempo, mas eu sempre acho que a qualquer momento, ele pode aparecer na minha porta, enxergar aquela criança que eu fui um dia e repetir aquele horror. Meu nome é Carolina e conviver com essa lembrança é a minha luta diária."

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