02/08/2016

DIÁRIO DE LUTA/ CAPÍTULO 2: JÚLIA


-O que foi, meu anjo? Vem aqui, me dá um abraço.
-Claro... –Luiza abraça César, constrangida- O senhor demorou pra chegar, né?
-É como eu disse agora há pouco: o trânsito está cada vez mais caótico. Vocês já jantaram?
-Você demorou tanto, e eu estou cansada que já estava pensando em servir mesmo sem você aqui- enquanto Fátima fala, Luiza olha fixamente para o médico.
-Pois pode servir. Não comi quase nada no hospital, preferi vir direto pra casa.
-Por que o senhor não ajuda ela a servir a mesa?- a sugestão de Luiza faz Talita perceber a provocação, repudiando-a com o olhar.
-Ele teve um dia cheio hoje, minha filha.
-A senhora também!
-Deixa que eu ajudo a senhora, Tia- Talita acalma os ânimos- Vocês ficam aqui e a gente vai pra sala de jantar, tá certo?
César e Luiza sentam em sofás diferentes.
-E... A que horas vocês chegaram aqui?
-Não sei, eu não olhei pro relógio. Mas pelo sol, devia ser mais de uma hora da tarde.
-Pensei que vocês duas chegariam mais cedo.
-A ideia era essa, mas a gente teve que passar em dois lugares antes: na praia, pra jogar as cinzas de Mainha no mar; e no asilo onde Vó Hermínia tá internada.
-Hermínia, é? E como ela está?
-Conformada. Pra ela, isso ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde. Já andava distante, ela via a filha cada vez pior... Mainha também não queria mais saber de fazer visita no asilo... Como a gente não tinha condição de ir até lá pra avisar, pedi pro médico ligar.
-Acredite, Luiza: apesar de todo esse tempo que eu estive separado da Soraia, eu sinto muito pelo que aconteceu.
-Acredito, sim. O senhor tem mesmo muito o que sentir.
César sente que a filha lhe disparou uma indireta, mas se contém.
-A mesa tá pronta, podem vir jantar- Talita avisa ao pai e à irmã.
Luiza se levanta do sofá e segue Talita, deixando César bastante desconfortável com a situação.

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Júlia está tomando um café no apartamento que divide com o irmão enquanto digita parte de seu projeto de extensão através do notebook. Nuno sai do quarto ao acordar.
-Já tá em pé, menina?
-Claro. Aproveitando o domingo pra adiantar ao máximo a parte escrita antes da apresentação.
-O Beto não tinha discutido com você detalhes da parte oral do trabalho?
-Tinha pedido dicas sobre ele, né, meu bem? Beto parece que não entende a manha do negócio. Uma insegurança que eu nunca vi.
-Nem todo mundo nasce com a sua versatilidade, Julinha. Se bem que eu desconfio dessa insegurança do Beto...
-Lá vem você insinuando que ele tem uma queda por mim. Imagina... Se bem que eu não tenho nem tempo pra isso.
-Mas eu pensei que hoje você ia, sei lá, descansar, dormir até mais tarde, pegar uma praia...
-Sigo uma lógica, Nuno: quanto mais tempo trabalhando, mais tempo vou descansar no futuro.
-Tá bom.
-Passei o café agora há pouco, aproveita- volta a digitar sem olhar para o irmão.
-Fala uma coisa, Júlia: você viu quem era a menina que tava ontem no "apê" do Dr. César?
-Sei. E veio acompanhada.
-Por quem? Tem namorado?
-Pela irmã, Nuno! Elas são filhas do César. Parece que a mãe delas morreu e o pai vai ter que cuidar. Na prática: a Fátima, né?
-Tá bem informada, hein?
-Dou ponto sem nó, não. A amizade com essas meninas vai me fazer bem. Imagina! Filhas do César Barbosa Telles? Um verdadeiro bônus pro meu círculo social!
-Você não se emenda mesmo. Vou botar o café que eu ganho mais- Nuno vai até a cozinha ao deixar a irmã rindo.

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Sozinha, Hermínia caminha pelo asilo olhando para o céu. Anda com cuidado, lentamente. Também aos poucos, o seu olhar se entristece. Ela se encosta a uma parede e recorda a trajetória que o casamento de sua filha com César seguiu.

A ação é transferida para o mês de janeiro de 1998. Soraia, então com trinta anos de idade, está sozinha em sua casa, com as janelas fechadas pelas cortinas e as luzes apagadas. César sai do quarto, já arrumado para o trabalho no hospital.
-Pensei que tinha saído pra comprar o pão e fazer o café, não te vi na cama- beija a então esposa rapidamente...
-Passei a noite em claro, César. Pensando naquela menina que eu vi no orfanato.
-Soraia, pensa: uma criança de outra filiação, completamente desconhecida, pra gente cuidar? O médico disse que nós não temos problema nenhum em gerar um filho.
-Tá, eu sei, mas até quando eu vou ter que esperar? Nós já estamos juntos há onze anos, César. E nada do que a gente vem tentando deu certo até agora. Pensa, meu amor. Pensa como vai ser maravilhoso alguém dentro de casa, correndo por todos os cantos daqui, recebendo o nosso carinho...
-Às vezes você fala de um jeito, como se...
-Termina...
-Como se isso fosse um capricho que você precisasse realizar.
-Acho que a questão vai muito além de um capricho, César. É um sonho, e que não foi idealizado só por mim.
-Desculpe. Mas eu repito que agora filhos não são uma questão pra mim, e sim pra você.
-Mesmo assim, eu quero tentar mais uma vez.
-Quando você toca nesse assunto, eu fico me perguntando: será que nós somos mesmo felizes?
-Somos. Isso não nos impede de sonharmos mais, e unidos. Mas se você se sente incomodado com a situação, eu prometo não tocar mais no assunto.
-OK. Você venceu. E se amanhã eu procurar a assistente social pra saber o que a gente pode fazer pra trazer essa criança pra cá?
-Você não existe, meu amor. Não existe- Soraia o abraça calorosamente, após sorri emocionada.

-Hipócrita... –declara Hermínia, sobre o ex-genro.

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Agora na praça que se localiza em frente ao prédio onde mora com Júlia, Nuno está com uma câmera na mão, gravando a tradução que o amigo e vizinho, Hugo, faz de uma música para a linguagem de sinais.
-Vai que é sua, Hugo- Nuno sinaliza para o jovem.
-"Quando chegar o amanhã, você vai lembrar que vim pra te dizer o quanto eu amo você. Quando chegar o amanhã e anoitecer, pare pra lembrar e jamais deixe de esquecer, porque eu sei que as coisas vão mudar. Basta apenas acreditar e continuar andando junto"...
Beto, que está junto à Júlia e um pouco afastado dos rapazes, questiona a colega de turma.
-Já vi esse carinha umas vezes com Nuno. Quem é ele?
-Hugo, nosso vizinho surdo-mudo.
-E por que Nuno tá gravando ele?
-Ele tem um canal num site de vídeos. Traduz músicas do segmento gospel pra Libras e parece que isso gera uma receita na home page.
-Pelo visto, você não vai muito com a cara dele...
-Normalmente, crentelhos são chatos, né? Nuno tem mania de abraçar o mundo, de ser simpáticos com todos à volta.
-Se veste de uma maneira bem simples, né?
-Claro, não tem berço! O avô do Hugo que era rico, e antes de morrer, deixou um apartamento como herança. Mas ele se vira só como vlogger mesmo. E como meu irmão tem vocação pra enxergar pobre de longe, né?- a observação preconceituosa de Júlia faz Beto rir. Logo, Júlia se vira para Talita e Luiza, que dão uma volta na praça em frente ao prédio- Olha só quem vêm aí.
-Quem são essas?
-Você vai conhecer agora. Meninas!- ambas escutam e olham com desconfiança para Júlia.
Nuno perde a concentração da filmagem ao ouvir a voz da irmã e se deparar com Luiza. Talita chama a atenção de Beto, e este percebe a amizade que Júlia quer construir com as filhas de César. Hugo, por sua vez, pressente que a possível aproximação entre Beto e as garotas não dará certo.

DEPOIMENTO

"Saí do abrigo com onze anos e fui levada pra uma cidade do interior. O homem que me adotou... Desculpa, eu sei que vocês estranham que eu não fale a palavra "pai", mas é que ele foi tudo, menos pai. Pra família, ele era um herói: trouxe a criança que eles tanto queriam. Pra mim também: ganhei uma família. No início, eu pensava isso... Comecei a achar que ser abandonada, preterida, rejeitada era mais cômodo do que viver lá. Quem ia desconfiar de alguém que me quis durante muitos anos, que não conseguiu levar pra casa um bebê de colo, mas levou uma pré-adolescente carente, educada, carinhosa? Pra todos e pra mim mesma, eu era uma criança. Pra ele não. Enxergava longe. Via uma moça linda que eu não ia demorar muito pra me tornar. E eu cheguei a ser o que ele previu, mas sem um resquício de inocência sequer. Era como se em cada chão que eu pisasse eu tivesse condenada a ter alguma coisa arrancada de mim. Foi aí que eu vi o quanto os outros se importavam comigo. Contei a verdade. Todos disseram que eu levantei falso contra um homem decente. Cortei relações, saí sem dar satisfação. Ninguém ia sentir falta de uma menina mentirosa. Só ele, que veio atrás de mim, e eu me escondia sempre. Mas aí eu pergunto pra vocês: se a gente se esconde quando tem culpa, por que eu ia me esconder? Meu nome é Alessandra e viver com uma culpa que não é minha é a minha luta diária."

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