09/08/2016

DIÁRIO DE LUTA/ CAPÍTULO 7: BETO

-Não era pra você me ver desse jeito...
-O que foi isso, Tia Fátima?- a pergunta de Luiza faz com que Fátima apanhe a toalha e corra para o quarto- Espera, Tia! Tia!
-Me deixa, eu quero ficar sozinha- Fátima senta na cama.
-Desculpa... Perdão, eu não devia ter falado desse jeito.
Após uma longa pausa, e ainda sendo observada pela sobrinha, Fátima responde.
-Tudo bem. Qualquer um teria a mesma reação que você.
-É que... A gente nunca soube de nada... Nem imaginava que a senhora tivesse passado... Por esse problema...
-Câncer. Câncer de mama- Fátima levanta e abre o guarda-roupa, tentando escolher algo para vestir- Não tinha motivos pra saber, não é, Luiza? Quase ninguém notou até hoje.
-Quando foi que a senhora... Desculpa, eu tô perguntando demais.
-Talvez seja bom. Foram poucas as vezes que eu consegui me abrir. A batalha que eu vivi foi muito recente, Luiza, mas a ferida continua aberta. E ela é bem mais nítida do que as cicatrizes dos meus seios.
-Eu... Eu vou procurar a Talita...
-Luiza, não precisa fugir. Eu sei que você está me questionando porque quer me ajudar.
-Isso tudo é tão estranho...
-Pois é. Sempre acontece "com os outros, nunca com a gente, ou com a família da gente". Mas foi isso, minha filha- Fátima veste a roupa, enquanto Luiza senta na cama.
-Tem certeza?
-Sim, eu tenho. Eu preciso falar. Há uns seis anos atrás, eu não morava aqui no apartamento do seu pai. Morava com o meu marido lá em Casa Caiada.
-A senhora era casada? E cadê teu marido?
-Viu? A separação da tua mãe e do César acabaram me separando um pouco de você e da sua irmã. Mas foi um casamento rápido. E também uma página que eu quero esquecer.
-Por quê?
-Ele era alcoólatra. Eu meio que passava por cima disso, acreditando que ele ia melhorar, mas a verdade é que ele não queria nenhum tipo de ajuda.
-Quando a senhora descobriu que... Que tava doente?
-Foi com um ano de casada. Teve uma noite que ele estava num bar, eu fui trazer ele de volta, ele fez um escândalo e então me empurrou. Caí de bruços no chão do bar, na frente de todo mundo. Passei mais de dias com dor num dos seios. Achava que era por causa da queda que eu levei, mas... Um dia eu fui ao banheiro, quando ele não estava em casa, e fiquei de frente pro espelho. Senti que tinha um nódulo. Assim que eu consultei o César, ele me deu o diagnóstico: era maligno.
-O que foi que teu marido disse? A senhora contou pra ele, não contou?
-Foi o mesmo que falar pra uma parede, Luiza. Não teve nenhum momento que ele ficou comigo. Nem pra uma consulta, nem pra cirurgia...
-Quem te operou foi meu pai?
-Foi um amigo que ele me indicou, um oncologista. O César pode ser exigente, teimoso, duro muitas vezes... Só que ele foi meu porto seguro. Tanto é que eu moro aqui. Sou a pessoa em quem ele mais confia...
-Tudo bem, tudo bem. O que eu quero saber é do teu marido. Onde é que ele tá agora?
-Quando eu fui fazer o tratamento, eu passei vários dias na clínica onde o César trabalha. E o meu irmão sabia que eu tinha ficado muito sentida com o descaso do meu marido.
-Por que você não fala o nome dele?
-Pra quê? Eu não quero nem lembrar que ele existiu.
-Nem parece a senhora falando desse jeito.
-César sabia que se eu ficasse do lado dele, ia sofrer mais. Então, ele arranjou uma boa quantia e pagou ao meu ex pra que ele não voltasse pra minha vida.
-Vai dizer que ele aceitou?
-Aceitou. Mas não sumiu da minha vida, como eu esperava.
-Como assim? A senhora voltou a ver esse cara?
-Logo que eu saí da clínica, César me hospedou aqui. Teve uma noite que seu pai fez plantão, e eu fiquei sozinha no apartamento. Eu ainda estava me recuperando. Nessa noite, ele entrou completamente embriagado aqui dentro e... – Fátima chora silenciosamente.
-Fala, Tia.
-Ele rasgou a roupa que eu estava vestindo e me viu mutilada. Assustado, se afastou de mim. Me senti invadida, Luiza, sem confiança dentro da minha casa. E ao mesmo tempo, conheci a rejeição... Seu pai costuma dizer que eu sou doce demais, carinhosa demais, passiva demais... Só que eu tento esconder o que eu sou de verdade.
-O quê?
-Calejada. Forte. Ou pelo menos, tento ser todo dia.
Vendo a tia completamente abatida após ter seu segredo revelado, Luiza abraça Fátima, completamente chocada pela coragem que nunca pensou que teria.

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Num bar, dois professores estão com Júlia e Beto, comemorando a aprovação do projeto de extensão que os colegas desenvolveram juntos.
-Um brinde ao sucesso de "Diário de luta", nova série do jornal do Canal Universitário- um dos docentes ergue uma caneca.
-Saúde!- brada Beto, um pouco alterado. Ainda assim, isto não é percebido pelos demais componentes da mesa.
-E vocês já tem alguma ideia de quando "Diário" vai finalmente pra televisão?- Júlia fica curiosa.
-O mais rápido possível- esclarece outro professor.
-Nossa, nem acredito que o projeto foi aprovado. A gente tava tão nervoso nesses últimos dias, mas valeu a pena- admite Júlia.
-Realmente, a sua ideia foi fascinante, Júlia- o comentário do professor deixa Beto irritado- E a forma como você apresentou, a desenvoltura diante dos professores convidados... Foi exatamente por isso que nós tivemos uma ideia pra divulgação da série.
-Como assim "divulgação"?-  interroga Beto- Eu pensei que a âncora fosse anunciar a estreia da série no jornal do meio-dia, como costuma fazer sempre que começa uma série de reportagens.
-Pois é, Alberto, mas notamos que a violência, seja ela psicológica, física ou sexual, é bastante mostrada como um relato jornalístico, mas nunca como um relato pessoal. Mais do que simplesmente entregar a informação para o telespectador, é preciso fazer com que ele entre na vida das vítimas, e não que elas entrem na sua casa através da TV.
-Que ideia que vocês tiveram, então?
-Aproveitando que Júlia desenvolveu uma postura irrepreensível na apresentação, e que não vai demorar muito pra que ela estreie, nós chegamos a um consenso de fazer uma espécie de teste.
-Teste? Comigo?
-Que tal se veiculássemos chamadas na programação da emissora com você convidando as pessoas a acompanharem a série? Pensa bem: o mercado anda investindo em muitos nomes jovens. Além desse requisito, você é mulher e também é de ascendência negra. Isso vai te aproximar um pouco da maior parte do público que sofre discriminação e relata isso nas entrevistas, seja por conta da raça ou simplesmente do gênero.
-Nossa, eu ia amar!
-Você aceita, então?
-Não precisam nem me perguntar duas vezes.
-Beto, não nos leve a mal, mas é que realmente é nítida que a Júlia possui um carisma maior pra lidar com o público.
-Imagina, Professor. Não precisa se justificar, eu entendo. E realmente, ninguém melhor do que ela pra passar a mensagem da série. Quem melhor do que a pessoa que idealizou o projeto, né?

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Nuno ainda espera uma resposta de Hugo.
-Que isso, cara? Você tá falando?
-Eu?- Hugo volta a gesticular.
-Hugo, eu entrei aqui e você tava falando. O que foi que houve? Você tava gritando "sai daqui". Com quem você tava falando, cara?
-Não sei... Não me lembro. Mas eu sei que eu estava dormindo.
-É a primeira vez que eu escuto tua voz. Será que você recuperou a fala de vez?
Hugo se afasta um pouco e tenta mudar de assunto.
-Nuno, é melhor a gente voltar pra edição do clipe de ontem...
-Por que você não procura um médico, Hugo? Talvez ele te ajude a falar de novo.
-Eu não quero.
-Como que não quer? O que é que tá rolando contigo, irmão?
-Nuno, para de insistir. Eu não quero falar, nem aprender a falar.
-Você tá muito estranho... Eu nunca te vi assim...
-Como foi que você entrou aqui no apartamento?
-A porta tava aberta. Deve ter se esquecido de trancar ontem à noite, quando eu voltei pra casa.
-Deve ter sido isso mesmo...
-Hugo, me diz o que é que tá acontecendo.
-Será que dá pra não tocar nesse assunto, por favor?
-Tudo bem. Você é quem sabe. Mas eu tinha ficado feliz quando te ouvi pela primeira vez.
-Vamos trabalhar? Acho que foi pra isso que você veio aqui.
-OK. Me mostra como foi que ficou a primeira edição que você fez.
Enquanto Hugo procura em seu computador as alterações de seu novo, Nuno desconfia da surdez de seu amigo cada vez mais.

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Apreensiva, Talita continua na frente do prédio onde mora com sua família. Luiza desce pelo elevador e vai falar com a irmã.
-O que é que você tem?
-Esperando notícias da apresentação do projeto. Beto disse que ia me ligar avisando do resultado.
-Hum... Será que ele não te mandou uma mensagem?
-Já olhei, Luiza, e nada até agora.
-Olha, não é a Júlia ali, não?- avista Luiza, assim que a estudante de Jornalismo desce de um táxi e paga a corrida.
-Júlia? Por que você não veio de carro?
-Fomos a um barzinho pra comemorar. O projeto foi aprovado, Talita! Logo mais a série "Diário de luta" vai ser veiculada no jornal!
-Parabéns, amiga!- Talita fica empolgada e abraça a vizinha.
-Parabéns, Júlia. Você e o Beto mereceram, se esforçaram muito.
-Obrigada, meninas.
-Falando nisso, Julinha, o que foi que houve com o meu namorado?
-Beto? Minha filha, eu nem te conto. Ele ficou tão empolgado com a aprovação que foi o primeiro a comemorar enchendo a cara. Até deixei meu carro por lá, pois não tinha a menor condição de dirigir. Já ele continuou bebendo- Júlia ri.
-Eu não liguei antes porque achei que vocês dois ainda estavam apresentando. Vou ligar agora- Talita avisa, procurando o número do namorado no registro de chamadas e colocando o celular no ouvido- Que droga, deu fora de área.
-Às vezes é o sinal, Talita. Tenta de novo- sugere a irmã da moça, que prontamente liga mais uma vez.
-Não adianta. Continua sem atender. Onde será que ele se enfiou?

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Beto anda por uma ponte movimentada, segurando-se num galho de árvore, chorando muito.
-Sempre me subestimando, não é? Carisma, postura irrepreensível... Como se todo o mérito fosse só seu... Mas não vai ficar assim, não, Júlia. De jeito nenhum. Não vai demorar muito pra você me conhecer de verdade. Já, já você vai saber quem sou eu.

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Um novo dia começa. O assistente social do asilo se aproxima de Hermínia, que folheia um álbum de fotos pertencente à sua família.
-Dona Hermínia?
-Não quero falar sobre minha filha, moço.
-Não é isso, é que chegou uma visita pra senhora.
-São minhas netas?
-Não. É só o pai delas- César chega perto da cadeira onde a idosa está sentada.
-Pode me deixar a sós com ele?
-Claro, Dona Hermínia. Se precisar de alguma coisa, me chame.
-Obrigada- Hermínia espera o rapaz se afastar um pouco para se levantar da cadeira de balanço- Há quanto tempo não nos vemos, César. Desde que a sua infinita bondade me colocou nesse lugar. Isso tem o quê? Uns meses, talvez?
-Hermínia, o asilo é meio longe da sua antiga casa, e é bem mais distante da minha. Portanto, é melhor esclarecer que eu não me desloquei até esse fim de mundo pra falar sobre você, mesmo porque você é uma pauta consideravelmente irrelevante.
-Fala de uma vez o que você veio fazer aqui, e some da minha frente.
-Saber da verdade. Como foi que você envenenou a Luiza contra mim?
A ex-sogra de César cruza os braços.

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Um dos professores do curso de Jornalismo, antes de encerrar a aula, faz a chamada. Assim que confirma sua presença, Júlia sai da sala. Está voltando pra casa, e passando por um caminho florido que dá acesso ao jardim do prédio da faculdade. Alguém, coberto por uma manta cinza, puxa a moça violentamente pelo braço.
-Que é isso?
O agressor coloca Júlia dentro do banheiro masculino que está em reforma, empurrando-a contra um dos espelhos. Enquanto Júlia tenta se erguer, ele tranca a porta e revela seu rosto por debaixo do manto.
-Enfim, sozinhos, Júlia.
-Beto? O que foi que te deu?
-Raiva. Ódio de você. Do jeito que se comportou ontem, aceitando todo o tipo de elogio, como se os créditos do projeto fossem só seus.
-Ah, por favor! Não acredito que você me trouxe até aqui por causa dessa baboseira!
-Nada do que eu fale ou faça te importa, não é? Pra você eu não contribuí com nada dessa porcaria de projeto!
-Por acaso eles falaram alguma mentira? A ideia do projeto foi minha, quem batalhou pra aprovação dele fui eu...
-Mas eu te incentivei! Quando você veio com essa ideia, fui eu quem disse que você precisava investir nisso, que se você transformasse isso num projeto de...
-Com ou sem você, eu ia vencer, Beto. Tem gente que nasce predestinada a isso, meu querido, quer você queira, quer não. Aliás, sabe por que você ficou o tempo todo me ajudando? Porque você, no fundo, queria um pouco dos louros desse trabalho. Sinto muito que os professores conseguiram enxergar o que você não vê: que eu sou mais inteligente do que você.
-É o que você pensa. Se fosse tão inteligente assim, tinha sacado tudo o que eu fiz pra ficar do teu lado. Fiz o papel de amigo e confidente por muito tempo, quando eu queria mais do que isso.
-Beto, você não tá dizendo coisa com coisa.
-Será que você não vê que eu sempre te quis como homem, e não como amigo?
-Você?
-Claro que não percebeu. Se coloca num pedestal, acima do bem e do mal. Pouco se importa com quem te rodeia. A não ser que tenha tanto dinheiro quanto você e o Nuno.
-Agora você quer que eu acredite numa patacoada dessas? Deixa de ser ridículo. Vai me dizer o quê? Que o namoro com Talita é fake?
-Pra mim, ela não passa de uma pirralha iludida. Eu quis namorar a Talita porque sabia que você queria forçar uma amizade com ela, só porque ela é filha do renomado César Telles. O que te interessa é o status, não é? Pois foi por isso que eu me aproximei dela. Pra ver se te causava aflição, ciúmes, qualquer coisa que me desse esperança. Mas, ainda assim, você continuou me humilhando com esse nariz empinado, esse ar de superioridade, sendo esnobe com o cara que mais te quis.
-Abre essa porta, Beto.
-Nem por um minuto, você imaginou que eu te desejava todo dia, e que sempre inventava um pretexto pra te ter?
-Já mandei você abrir a porta.
-Quem sabe assim você comece a me enxergar de outra forma? Ser bonzinho, compreensivo e educado não me adiantou de nada. Só servi pra você como capacho.
-Tá errado, Beto. Nem pra isso você serve.
-Impressionante que nem isso diminui o desejo que eu sinto...
-Não se aproxima de mim. Se você não abrir essa porta, eu vou gritar e vai ser pior pra você.
-Vai, sim. É isso mesmo que eu quero, que você grite- Beto rasga a blusa de Júlia- Você vai pedir pra eu nunca mais parar.
-Olha só o que você fez comigo, seu idiota!
Beto agarra o rosto da jovem e o coloca diante do espelho, machucando-o.
-Como é que você não entende isso? Olha pra você. Vê como você é linda. Olha pro teu corpo, pra tua pele, pra tua boca...
-Me solta!
-Tudo que você faz é um jogo pra me provocar, não é?
-Beto, me solta!
O rapaz beija a nuca da moça, que faz uma expressão de nojo ao senti-lo tocar em sua pele.
-Você gosta de se sentir desejada, não é? Pois hoje eu vou te fazer ser desejada- Beto abre o zíper da calça que está usando com uma das mãos, e Júlia tenta correr.
-Socorro! Alguém me ajuda! Socorro!- Beto a agarra novamente, pressionando contra a parede e tenta arrancar o sutiã da moça, que vai caindo ao chão.
-Você não vai sair daqui! Não até eu te dar o que você merece e o que eu quero!
-Não! Não, me solta! Me solta! Socorro! Alguém me ajuda!
Beto abaixa parte de sua roupa íntima e arrebenta o sutiã de Júlia, que está trajando uma saia. Após levantar uma das pernas da jovem, beija a boca da estudante, que procura se defender mordendo seus lábios, mas ele se irrita e segura seu pescoço com bastante força, a ponto de fazê-la perder a consciência aos poucos, ao mesmo tempo que consume a agressão sexual.

DEPOIMENTO

"Comecei bem cedo a trabalhar na indústria da moda, mas fechava os olhos pra muitas coisas que aconteciam, como diz o ditado, por debaixo dos panos. Como aparentava ter menos idade, isso atraia consumidores em potencial de um esquema até então comum por lá: a prostituição de luxo. À medida que eu via muitas das minhas colegas aceitando os convites de empresários, me retraía. Depois, via que as oportunidades de crescimento na agência não paravam pra elas. Um dia, o esquema foi descoberto. Saiu em tudo que era manchete e capa de revista, jornal, internet... Quando a imprensa chegou, me viu saindo da agência e logo os repórteres vieram tirar fotos. Me colocaram não como modelo, mas como uma acompanhante. A história acabou tomando conta do lugar onde eu morava, e eu tinha vergonha de ser quem eu era, de ter atribuída a mim uma culpa que não era minha, até pensando em sair dali. E os mesmos que um dia me desejaram agora sentiam repulsa, sendo que eram capazes de dar dinheiro caso eu realmente me vendesse. De repente, tudo que eu fazia era uma tentativa frustrada de me justificar pros outros. Uma vez, fizeram um cerco contra mim, e eu até pensei que fossem me bater. Foi então que eu percebi que eu não podia viver preocupada, ansiosa com a imagem que fizessem de mim. A minha obrigação de ser sincera era comigo, e com mais ninguém. E depois, mesmo que eu realmente tivesse aceitado alguma proposta, é o meu corpo. É a minha vida. Meu nome é Paula, e ter o domínio da minha própria trajetória é a minha luta diária."

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