Ele acordou tarde no dia em que fez dezoito anos. O que o
despertou foi o som do saxofone que era tocado pela Madre Joana, numa agradável
surpresa. Ficou sentado no quarto, ocupado apenas pelos dois, uma vez que os
adolescentes que dormiam lá estavam tomando o café da manhã, e o jovem deixou
algumas lágrimas caírem enquanto Joana executava a canção.
-Preciso desejar-te um “feliz aniversário”, meu anjo?
-Somente este momento é um presente. Obrigado por começares
meu dia deste jeito. Só não sei se ele será tão feliz.
-Já conversamos sobre isto. Hoje, o diretor vem ao orfanato,
e eu te prometi que vou falar com ele, não disse?
-Mas eu confio na senhora. Primeiro, em Deus, lógico. Mas não
sei se Ele vai concordar com minha permanência. Independe da senhora,
infelizmente.
-Estás preparado para receber o presente que eu trouxe para ti?
-Como assim? Além dessa surpresa, eu vou ganhar um presente?
-Nesse momento, estás a olhar para ele.
-Quer dizer, o...
-O saxofone. É teu.
-Não, Madre. Eu não posso aceitar.
-Nada te impede de receber. Aceites, meu filho, é de coração.
-Mas o sax é teu. A senhora adora, apresenta-te com ele nas
quermesses, nos eventos do orfanato, nas igrejas...
-E tu aprendeste a tocar, de tanto ver-me. Já te vi
experimentando algumas vezes, e tocas até melhor do que eu.
-Nem me comparo...
-Podes poupar-me das cerimônias. Aceites, eu nunca te dei nada
de valor.
-Como se teu amor de mãe não contasse. Quantas vezes a
senhora não me segurava quando eu via algum menino saindo daqui, adotado, e eu
ficava para trás? Sempre que eu sentia falta de um pai, nem dava tempo- passa a
segurar as mãos de Joana, emocionado- Deus dava-me de presente um amor de mãe.
-Olhes, eu... – Joana pigarreia e recupera o fôlego após a
declaração do interno- Eu vou conferir se ele já chegou para conversar com ele
a respeito da tua situação.
-Desejo-te sorte, então.
-Desejes tu aquilo que nós sempre vamos ter: o amor do Pai.
-Obrigado pelo presente- o rapaz se levanta e, emocionado, dá
um abraço na madre, que se dirige apreensiva à sala do diretor, batendo à
porta.
-Está aberta- responde ao ouvir o som provocado pela madre,
mas de uma maneira seca.
-Como vai, Senhor Diretor?
-Foi bom a senhora ter aparecido aqui, Madre. Queria mesmo
falar com a senhora.
-Algum problema?
-Sim, é a respeito de um dos internos- vasculha os papeis que
estão sobre a mesa- O nome dele é Valente Valença. Sabe quem é?
-Sei, sim, senhor. É justamente sobre ele que eu vim falar.
-Na ficha desse menino... Chamá-lo de “menino” é até meio
improvável. Aqui diz que ele atinge a maioridade exatamente hoje.
-É verdade.
-O rapaz já foi avisado disto?- ironiza.
-Senhor, eu vim aqui para interceder por ele.
-Sob qual propósito, Madre?
-O menino ainda não tem emprego, nem mesmo um lugar para
ficar. Vim apelar para a tua consciência e pedir-te um favor.
-Queres que eu o deixe ficar?
-Nem que seja por um tempo.
-Imaginei que fosse isto. Não fiquei sabendo de nenhuma
movimentação desse garoto para deixar o orfanato. Tampouco das freiras que
comandam a instituição.
-Diretor, não é uma situação que dependa exclusivamente de
nós.
-Ao contrário. Creio que isto poderia ter sido resolvido há
muito tempo, não fosse o fato de que, claramente, vocês fazem vista grossa para
a situação deste rapaz.
-O problema é que ele tem procurado bastante, ao contrário do
que o senhor pensa. Acontece que ele precisa estabelecer-se primeiro, arrumar
um trabalho, ter um salário...
-Não me olhes como se eu não desejasse isso, é exatamente o
que eu quero. Mas bem que o teu protegido poderia fazer isso fora daqui, não
concordas?
-Não estou tirando a tua razão, de maneira alguma.
-Mas estás colaborando dando falsas esperanças para ele, de
que pode ficar aqui quando, na verdade, não há mais espaço para ele. Por favor,
não me venhas com firulas. Fales com esse rapaz o quanto antes e exijas que ele
saia do orfanato.
-Para onde ele vai?
-Isto, Madre, não é problema meu e eu não faço a menor
questão de que assim seja. Agora vás conversar com ele.
-Sim, senhor. Com licença.
-Tens toda.
Os corredores estavam vazios porque os meninos ainda estavam
no café. Pode-se ouvir o choro da Madre Joana, inconformada por não saber o
destino do rapaz ao qual tanto era apegada. Demorou para voltar ao quarto, e
não se deu conta de que não se ouvia o som do saxofone- um sinal estranho em
meio à felicidade do presente que o jovem demonstrou. Muniu-se de coragem e voltou
ao quarto, sendo surpreendida ao ver uma mala aberta sobre a cama, com algumas
peças de roupa que ele organizava.
-O que estás fazendo?
-Desculpa-me, Madre. Acabei ouvindo tudo que ele disse.
-Por favor, fiques. Talvez eu ainda consiga convencê-lo de
que...
-Não adianta usar teus argumentos, o diretor não vai querer escutar-te
novamente.
-Tu não tens para onde ir, meu filho... Como vais conseguir
sobreviver na rua?
-Sabes que fiquei perguntando-me isto à noite toda? Nem
consegui dormir esperando uma resposta. Só que eu não consegui.
-Na rua, tu não ficas.
-Não te indisponhas com ninguém por minha causa. Eu vou ficar
bem.
-Sozinho? Com uma leva de roupas e um saxofone?
-Já se esqueceu de que eu nunca estive sozinho, Madre? Nem
mesmo quando meus pais me deixaram? Porque Deus não se esqueceu de mim, nem me
desamparou- dizia ele, segurando-se numa força que nem ele mesmo acreditava
ter.
-O que tu pretendes?
-Posso tocar na rua. Se eu conseguir alguma coisa, eu tento
passar a noite num hotel ou numa pousada, não sei. A verdade é que a senhora
quis dar-me um presente e concedeu-me o ganha-pão.
-Esperes.
-O que foi?
-Não vais sair daqui. Pelo menos, não sem a minha bênção.
-Que seja, então- abre um tímido sorriso- A senhora pode dar-me?
-Eu abençoo-te em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Não deixes de dar-me notícia, meu filho.
-Podes deixar. Eu vou ficar bem.
O garoto levanta a mala e leva o saxofone, com certa
dificuldade. Até que é indagado.
-Não vais despedir-te dos teus amigos?
-Melhor não. Eu sempre tentei tirar sorriso de todo mundo que
gosta de mim. Não vai ser agora que eu vou arrancar lágrimas de alguém. Prometo
que eu volto para dar notícias. Boas notícias.
Joana o acompanha até o portão do orfanato e despede-se do
jovem, que caminha sem saber para onde numa manhã dublada. Havia chovido há
pouco. As ruas estavam sujas, cobertas de lama, cheias de poças d’água. Ele
dobrou dois quarteirões e foi surpreendido por um carro preto, que passa
rapidamente e acaba por molhar a perna esquerda do órfão. Encosta o saxofone em
um muro e passa a mão na calça que está usando, na tentativa de limpá-la.
Depois, prossegue caminhando sob um céu cinza.
O motorista distraído é Kleber, dono de uma agência de
viagens. Era vinte e cinco de janeiro e ele havia acabado de resolver alguns
assuntos pendentes no local em que trabalhava. Havia conseguido uma folga e
estava ansioso para contar a sua família. Encontrou a esposa e o filho diante
de uma mesa farta, à beira da piscina.
-Já voltaste para casa, Pai?
-Não, senhor. Vocês que acordaram tarde, Otávio.
-O que houve, Kleber? Que tu saíste bem cedo eu já sei, mas
voltaste tão rápido assim por quê?
-Fui à agência assinar uns contratos inadiáveis, e aproveitei
para reservar nossa estadia em um hotel para essas férias.
-E para onde nós vamos?
-Dora... Vamos viajar a Bahamas.
-Ai, não acredito!- a esposa de Kleber abraça-lhe, eufórica,
enquanto Tato retribui com um sorriso. Significava a oportunidade de viajar em
família em muitos anos, atitude esta protelada pelo agente de viagens sempre
que podia.
-E quando é que nós partiremos, Pai?
-Vim buscar os dois para fazermos as malas. Nós embarcaremos
hoje à tarde.
-Kleber, estás tu a falar sério? Isto não é nenhuma
brincadeira tua?
-Que é isso, Dora? Vocês sabem que eu sou muito metódico, que
praticamente vivo pro trabalho... Daí eu resolvi dar-me esta folga e aproveitar
junto com a minha família. O que tem demais nisso?
-Nada, meu amor, só que é inacreditável.
-Vão lá, vão fazer as malas. Daqui a pouco eu subo e apronto
a minha bagagem também.
-Obrigada por esse presente. Realmente ninguém esperava por isto.
-O que é que eu não faço pelo filho e pela mulher que me
enchem de orgulho, hein? Mas subam logo, para nós não perdermos um minuto
sequer com a nossa viagem.
Mais apressada do que Kleber e sua família, estava Cissa no
comando de um conversível pelas ruas da nublada Lisboa, acompanhada da amiga
Beatriz. Esta, por mais que estivesse habituada com o modo doidivanas da moça,
recomendou cautela com relação à direção.
-Para quê essa velocidade toda? Não estamos indo a nenhuma
festa; muito pelo contrário, acabamos de sair da balada.
-Quem te vê assim até pensa que tu nunca me viste correndo. Tu
sabes que eu amo esta adrenalina toda.
-Mas nunca alcoolizada. Melhor que tu pares o carro e chames
um táxi.
-Bobagem, Beatriz. Estou feliz demais para enfiar meu carro
num poste qualquer. Fiques tranquila.
-Sério, Cissa. Diminuas a velocidade desse carro, vai acabar
nos matando.
-Ai, tu quando te esforças, consegues ser insuportável, hein?
Tudo bem, já estou a menos de sessenta por hora. Melhorou para ti?
-O que foi que te deu, hein? Tu não és de passar do ponto,
nem em bebida e muito menos em direção.
-Michel está indo a Bahamas, sem data para voltar.
-Até aí, sem novidades. Teu irmão nunca foi de dar previsão
de retorno. Estranho é ele rodar o mundo e lembrar que tem uma irmã para avisar
da sua próxima aventura, como fez desta vez.
-Mandou uma mísera mensagem no celular avisando. E ainda
disse que vai passar vários dias com o celular desligado, não quer falar com
ninguém.
-Bem a cara do Michel mesmo.
-Só não poderia ter sumido agora, queria tanto o colo dele,
desabafar com o meu irmão.
-Para contar o quê, Clarissa? Que rompeste tu com o Ricardo
pela centésima vez só neste ano?
-Aquele infeliz vai implorar para voltar aos meus braços, eu
prometo-te.
-Vamos ser objetivas, minha amiga: o Ricardo nem é de
rebaixar-se a mulher alguma, muito menos tu te prestas ao papel de lambe-botas.
-Queres que eu faça o quê?
-Que te valorizes, é o mínimo que toda mulher com um pingo de
juízo na cabeça faria.
-Às vezes, parece que tu nunca nos viste juntos. É como se eu
fosse parte dele, como se fosse indissociável, entendes?
-Dele ou do seu corpo?
-Dos dois.
-Amiga, deixes que eu te premie com mais um resquício da
minha imensa sinceridade.
-Fales, Beatriz.
-Ricardo não é feito de mel, não é o único homem do mundo.
-Do meu mundo, ele é mais do que suficiente.
-Duvido muito que ele esteja sofrendo com a decisão do
rompimento que, aliás, partiu dele, não foi?
-Beatriz, tu não estás a ajudar-me com esses comentários
ácidos, se te importas saber.
-Sabe quando tu irás sentir-se bem novamente? Quando
conseguires fazer qualquer pobre coitado passar pelo mesmo martírio que estás
passando agora!
-Imagines, eu não chego a esse nível de egoísmo teu.
-Mas pode chegar. E é melhor que tu te empenhes na tarefa,
porque não consegues fazer mais nada além de prolongar essa agonia por causa do
término de um namoro em que só tu te entregas.
-Tu dizes umas coisas que me dão medo às vezes...
-Nossa amizade sobrevive única e exclusivamente por conta da
minha sinceridade bem dosada. Caso contrário, eu já teria mandado que tomasses
vergonha nessa tua cara e impediria que te rastejasses por causa de homem. Vais
por mim, Cissa. Quanto mais cedo tu fizeres alguém apegar-se a ti, mais cedo
conseguirás desapegar-se do Ricardo. Aí ele vai saber que não nasceu pra ser a
única pessoa desejada da face da terra.
-Prometo que vou pensar sobre o assunto, juro-te.
O carro conduzido por Cissa passa ao largo de uma movimentada
praça, na qual Valente está há dez minutos, paralisado pelo medo de que as
pessoas não vão ajudá-lo financeiramente. Sem perceber, está a doze metros de
uma loja de artigos voltados aos protestantes, de onde sai Fabiano, com seus
óculos de hastes envelhecidas e uma sacola com seis exemplares da Bíblia
Sagrada. Está a procurar a vaga que destinou ao seu carro quando ouve que Jesus
nos amou com amor constante, libertador, transformador, imutável e grande a
ponto de fazer todas as coisas novas.
Fabiano não conhece a canção da Comunidade Cristã de Lisboa,
talvez pelo fato de esta ser voltada ao segmento católico do Cristianismo, mas
comprovou o talento de um homem de dezoito anos recém-completados que forma uma
pequena plateia naquela praça. O pastor encontra não só alguém que acreditava
em seus ideais, mas também um rapaz de fé: Valente Valença.
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