01/05/2018

DUAS DÉCADAS/ CENA 1


O dia amanhece no Hospital do Susto. Matheus é visto andando pelos corredores da unidade com um semblante sério e uma bolsa atravessada em suas costas. Logo, é surpreendido por Gabrielle.
(fundo musical: “We’ve got tonight”- “I know it's late, I know you're weary/ I know your plans don't include me”)
GABRIELLE: Até que enfim você apareceu. Estava te esperando.
MATHEUS: Quem? Eu?
GABRIELLE: No meu consultório, agora!
MATHEUS: Espera... (é colocado numa poltrona da sala de Gabrielle, ao lado de Antonio) O que é que eu estou fazendo aqui?
GABRIELLE: Consulta de rotina. Me deixa apenas atender o rapaz do teu lado.
MATHEUS: Mas...
GABRIELLE: Calado! Olha aqui, meu filho, aqui está a receita. Nada de suplementos ou de batata doce quatro vezes ao dia. O que você precisa é de uma dose excessiva de café.
ANTONIO: Sei. Mas isso funciona mesmo, Doutora?
GABRIELLE: Café é vida, menino! Tome uma vez antes de ir ao trabalho, e depois beba setenta e duas vezes antes da meia-noite.
ANTONIO: Tudo isso?
GABRIELLE: Vai discutir com uma nutricionista? Acho que não. Passar bem.
ANTONIO: Obrigado, Doutora (levanta-se da cadeira e deixa o consultório).
GABRIELLE: Agora podemos falar de você.
MATHEUS: De mim?
GABRIELLE: Sabemos que seu prato preferido é lasanha. Mas este prato contém uma dose de calorias com um teor elevado... Coma.
MATHEUS: Eu trabalho aqui, sabia? (a revelação deixa Gabrielle em silêncio por alguns segundos)
GABRIELLE: Verdade? Isso não te impede de se preocupar com a própria saúde.
MATHEUS: Senhora, eu só quero saber se terminou a reforma da minha sala. Eu sou ginecologista.
GABRIELLE: Tivemos um problema na infraestrutura do seu consultório. De modo que, atualmente, o espaço é ocupado por uma especialista em comportamento sexual.
MATHEUS: Especialista em quê? (subitamente, Matheus aparece em sua antiga sala e flagra Danila pregando um cartaz na parede, e neste está escrito: “Se estiver atrás de uma coisa picante, compre um vidro de pimenta”)
DANILA: Ah, você deve ser o ginecologista que atendia aqui há pouco tempo. Sinto muito, meu filho, mas eu já ocupei a sala.
MATHEUS: E onde é que eu vou atender, posso saber?
DANILA: Você eu não sei, mas eu... (ri discretamente e se aproxima do médico) Posso atendê-lo aqui e agora. Se quiser, posso dar um laudo em um lugar mais reservado. Depende de onde o senhor quer que eu faça a avaliação. Pode ser na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.
MATHEUS: A senhora trate de manter a compostura!
DANILA: Falou o homem viciado em hentais na juventude.
MATHEUS: Sabia que eu posso te denunciar ao Conselho Federal de Medicina? Eu sou um homem casado!
DANILA: Eu também sou, mas isso não me impede de gostar de um “urso”.
MATHEUS: Pois, então, eu trato de voltar assim que essa reforma maldita terminar. Passar bem! (abandona a sala).
DANILA: Pobre homem. Deveria ter prestado exame para Medicina Veterinária. Só assim saberia que não se deve desprezar uma mulher na idade da loba.
(fundo musical: “A loba”- “debaixo da pele de gata, eu escondo uma loba”)
Matheus enfrenta um engarrafamento ao voltar pra casa e liga o rádio do carro.
NARRADOR: E agora vamos ao primeiro lugar da nossa parada de música clássica.
(fundo musical: “Na dança do striptease”- “ela me disse/ ela me disse/ que vai subir no palco pra fazer striptease”)
Thiago é visto com a cabeça encostada na janela do ônibus que está ao lado do carro de Matheus.
MATHEUS: O que tá fazendo aqui?
THIAGO: Tô no meu habitat. Nada mais natural do que um pobre num ônibus.
MATHEUS: E o que você tem feito da vida?
THIAGO: Passei no concurso público pra professor. Já faz tantos anos que a gente não se fala que eu me esqueci de contar.
MATHEUS: Verdade. Quanto tempo mesmo?
THIAGO: Já dizia aquela velha do Titanic: “oitenta e quatro anos”.
MATHEUS: Indo pro trabalho agora?
THIAGO: É, eu dou aula. Mas desde que Recife virou capital do Brasil o trânsito, que já era ruim, ficou pior. Estou preso no engarrafamento há duas horas (o celular de Thiago toca). Só um minuto. Alô? Sim, é ele. Sério? Então, fazer o quê, não é? Obrigado por ter avisado (desliga o aparelho).
MATHEUS: Problemas?
THIAGO: O sindicato acabou de declarar greve por tempo indeterminado. Logo agora, que eu saí de casa... Mas me conta: como você tem passado?
MATHEUS: Vendo tua situação, tive um pressentimento.
THIAGO: Sério? Que pressentimento?
(fundo musical: “Solidão”- “de repente, eu tô sentindo/ que você vai se dar mal”)
Matheus desperta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário