03/03/2013

CAPPUCCINO/ CAPÍTULO 1: BEM-SUCEDIDA, MAS PRETERIDA

Já são cinco da manhã, e Isabela não dormiu nada, só de pensar que o editor disse que iria revisar a proposta que ela mandou para a editora.
Sai do Ibura, aquela comunidade linda, iluminada e extremamente pacífica para enfrentar aquele trânsito caótico. Nas proximidades da Avenida Recife, toma para si (e para novecentas e sessenta e duas pessoas, porque ela é caridosa) um ônibus da linha CDU/ Boa Viagem (Caxangá). O sol começava a torrar, Isabela começa a se arrepender da hora que nasceu, mas transita exuberante pelo Centro de Artes e Comunicação, pronta para assistir à aula de estágio supervisionado. Coragem.
Voltando ao local de origem de nossa mocinha, Caio está com umas olheiras terríveis. Não é para menos: seria o primeiro dia de aula dele numa universidade. E também não dormiu porque teria que ajudar nos negócios da família mais cedo. Talvez uma viagem à multinacional na qual auxiliava o pai, um escritório de advocacia, uma corretora de imóveis, agência que fez o comercial da Luiza que estava no Canadá.
Foi fazer pão francês.
Sim, Caio trabalhava na panificadora que o pai, o simpático Leônidas, havia aberto há umas três semanas. Claro que ela era frequentada mais pelos que compravam fraldas. Também, a padaria fica no Ibura, e é um bairro que tem pobre. E você sabe que pobre prolifera mais que coelho, não é?
Ao largar da aula, Isabela vai ao prédio da editora de sua universidade. É recebida pelo editor da empresa, com muito carinho. Vamos frisar porque se há uma coisa que letrando sabe ser (menos eu) é altamente irônico.
-Seja bem vinda, Bella. Sente-se, por favor.
-Obrigada.
-Bella Caffé... De onde surgiu esse pseudônimo?
-Da minha segunda paixão.
-Bella, eu acho que você deveria se dedicar à sua segunda paixão.
-Ai, o que foi?
-Querida, nós da editora chegamos à conclusão de que seu romance está enquadrado naquilo que carinhosamente chamamos de... Literatura marginal. Não dá pra ler.
-Como é que é?
-Entenda, minha querida, não é o momento para você publicar uma estória desse teor.
-Eu passei dez meses, vinte e seis dias, treze horas e oito minutos com inspiração para escrever o meu livro.
-Pode ter certeza: não vai passar para a Bienal do Livro.
-Fliporto?
-Nem na esquina.
-Só pode ser um inferno astral. Acabei de terminar o namoro no réveillon, não peguei ninguém na virada e ainda não vou ver o meu livro sendo publicado?
-Quem sabe se você escrever outra coisa?
-Não posso mudar minhas indiretas. O alvo tem que entender na hora.
-Isabela, nosso trabalho não é brincadeira.
-Não estou brincando. Mas quero realmente que meu ex, que me trocou por uma albina siliconada, se lasque.
-Mas você deve ser mais bonita.
-Ela fez plástica no Robert Rey, mudou o guarda-roupa no “Esquadrão da Moda”, reformou o casebre de isopor no “Lar doce lar” e ganhou no “Soletrando”.
-Mas você deve ter qualidades maiores. Uma bagagem cultural.
-Ela é bilíngue. Você não entendeu que o buraco é mais embaixo? Ela aprendeu Libras em três dias. Eu estou no quinto período e não tenho nem o meu próprio sinal.
-Isabela, desiste desse homem.
-E se eu escrevesse um romance no qual as mulheres são subservientes aos homens? Quem sabe uma trilogia?- o editor olha silenciosamente para a moça- Por favor, eu preciso de dinheiro pra comprar café! O que eu gasto de Xerox daria pra dar uma pisa no Eike Batista!

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Ao descer do ônibus, Isabela vai à padaria e compra um pacote de café Pilão. Não nota, entretanto, que a embalagem está furada e a validade vencida. Passa pelo caixa e lá está Leônidas.
-Dá quanto?
-Quatro e vinte e cinco.
-Espera aí, isso é um assalto.
-Dilma abaixou a luz, mas aumentou a gasolina e o salário também. Tudo cresceu.
-Inclusive o peso da minha mão no meio da tua cara.
-Pensando bem, eu vou fazer por dois e cinquenta e quatro.
-Grata.

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-Não demora para Isabela chegar em casa. Logo vai à cafeteira e prepara o seu cappuccino. No armário, pega um pote de açúcar, um pacote de leite Itambé e uma lata de Nescau Active 2.0 (vou para porque sou moderno e não realista). Dirige-se até o armário e pega uma colher e uma xícara com o desenho da Pucca. Fofa ela, não?
Ao dirigir a xícara à boca, dá um zoom (sim, um zoom, colega) na data de validade do Pilão: 05/02/2008. Pra quem já estava naturalmente irritada com a rejeição de seu romance que mais parecia um manual do recalque (li uma cópia), é um estímulo para perder a pose.
-2008, não é? Vai ser a quantidade de pontos que aquele velho vai levar depois que eu rasgar a cara dele. Eu vou lá agorinha? Sim ou claro? Com certeza!

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No caixa, tio Leoni (vou personalizar) percebe que há pouco movimento naquela noite. Do nada, o celular dele vibra. De longe, ele vê o filho.
-Caio, vem pra cá um minutinho.
-O que houve?
-Toma conta do caixa pra mim?
-É aquela mulher secreta de novo?
-A própria. Me deixa atender.
Quando Caio senta, chega Isabela, como um vulcão em erupção.
-Cadê aquele velho?
-O que foi que houve?
-Comprei café vencido.
-Ih, desculpa. Vou pedir a painho que vá trocar o pacote.
-Eu quero meu dinheiro de volta.
-Desculpa, moça, mas aqui a gente não devolve grana de ninguém.
-E eu com isso? Não pari ninguém!
-Dá pra ficar calma!
-Eu estou ótima, meu amor! Nos trinques! O Procon também está!
-Menina, é só trocar o pacote. Nada demais.
-Eu podia ter morrido com cappuccino envenenado.
-Um minuto... Você disse “cappuccino”.
-Falei, por quê? Algum problema?
-Todos! Você sabe o que é se mudar para um bairro há mais de três semanas e a única expressão considerada de bom gosto por aqui é “Eu quero tchu, eu quero tchá”? Eu quero minha vida de volta à Várzea! Cappuccino é o que há!
-Menino, nem te conto? E aquela desgraça de “Bará beré”? Até o duplo sentido pediu pra morrer naquela miséria!
E assim começa uma longa e tresloucada amizade.

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