BENEDETTO
(NARRADOR): Havia reprovado uma disciplina e estava pronto para cursar
novamente a matéria. Por uma questão de choque de horários, eu tive que
estudá-la no período matinal com uma turma de outros idiomas. Só que, graças ao
período de modificação de matrículas, fiquei um mês frequentando as aulas sem
ter meu nome na lista de chamada. Foi então que eu passei a prestar atenção na
professora.
LÚCIA:
São oito horas da manhã. Então, vamos começar a nossa chamada inteligente. Vamos
ver... Adriana?
TURMA:
Ainda não chegou.
BENEDETTO
(NARRADOR): Eram duas horas de chamada inteligente e, para cada nome
mencionado, uma pergunta. Mas o que me chamava a atenção realmente era o
curioso uso frequente de uma determinada palavra, que me fez ver que a
graduação era algo realmente de outro mundo.
LÚCIA:
No final de semana eu recebi a notícia de que um amigo meu havia falecido, e
ele morreu de uma maneira completamente paranormal... Há uma história rondando
os corredores da faculdade, dizendo que eu faço um círculo e jogo as provas dos
meus alunos para o alto, e que as provas que caem no círculo serão as quais eu
darei uma nota alta. Mas isso é algo completamente paranormal... O pastoril é
algo próprio da nossa cultura. Ou vocês já imaginaram Lady Gaga cantando no
pastoril? Seria uma coisa paranormal!
BENEDETTO
(NARRADOR): Certa vez, eu cheguei à universidade com bastante sono. Mas a
aplicação da palavra era tão frequente que eu fui obrigado a despertar em aula,
quando alguém, às oito da manhã, perguntou:
JÚLIO:
Professora, “La belle de jour” é um filme bom, não é?
LÚCIA:
Meu filho, “La belle de jour” é um filme ótimo: é a história de uma mulher que,
de manhã, cuida da casa e do marido; e à tarde sai para fazer atividades
paranormalmente sexuais!
BENEDETTO
(NARRADOR): E, de fato, os acontecimentos incomuns daquela disciplina me
atingiram até mesmo quando eu tive um “piriri” violento.
BENEDETTO:
(digita em frente ao computador) Avisa pra professora que eu não vou poder ir à
aula amanhã. Até pro hospital tomar soro eu fui.
BENEDETTO
(NARRADOR): Por causa disso, perdi um dos conteúdos que seria cobrado na
primeira prova. E a questão que abria o exame era justamente sobre isto. Não
respondi, lógico. Isso porque não mencionei o fato de que uma unha encravada
incomodava o único aluno ouvinte da turma durante a aplicação da prova. Três
dias depois, eu enfrentei um engarrafamento terrível e cheguei depois que a
“chamada inteligente” tinha começado. Pensei que levaria uma advertência. E
assim que abri a porta, me deparei com dois alunos sentados ao lado da
professora, ambos com cara de susto, ouvindo quando ela perguntou pra mim:
LÚCIA:
Você é o Benedetto?
BENEDETTO:
Sou eu.
LÚCIA: Ah,
que bom. Pegue uma cadeira e coloque aqui na frente, junto do meu bureau.
BENEDETTO:
Mas eu não li o poema que a senhora pediu que eu lesse...
LÚCIA: Não,
é outra coisa. Pegue uma cadeira e coloque aqui.
BENEDETTO
(NARRADOR): Não tive o que fazer senão obedecer.
LÚCIA: Olhem,
esses três que estão aqui na frente são os que tiveram nota dez na prova.
BENEDETTO
(NARRADOR): Foi como se eu tivesse sido substituído e não soubesse. Mas eu não
deveria ficar surpreso com coisas estranhas acontecendo durante a disciplina.
Afinal de contas, no dia 23 de março de 2012, eu tinha ido à faculdade pela
manhã e encontrei uma turma de alunos seminus protestando em frente a um dos
prédios por conta do calor provocado pela falta de ar-condicionado. Ao sair,
dei de cara com eles tentando tomar banho numa piscina de bebês, e fiquei
aguardando até começarem as aulas da tarde. Entrei, acompanhei uma das
disciplinas e, depois de alguns minutos, inventei de ir ao banheiro. O
sanitário do segundo andar estava interditado, e então desci ao térreo. Foi
quando avistei o batalhão do corpo de bombeiros correndo de um lado para o
outro. Voltei para a sala sem dizer o que estava acontecendo, coisa que nem
mesmo eu sabia. O representante da turma interrompeu a aula de Norma e avisou:
JONAS:
Desculpe, professora, mas é que eu fiquei sabendo que há uma ameaça de bomba no
prédio. Os bombeiros já estão lá embaixo procurando, e desconfiam de que exista
uma bomba na biblioteca. Acho melhor cancelarmos a aula de hoje.
NORMA:
Meninos, por favor, acho que não é para tanto. Se fosse algo realmente grave
Angélica, que é a coordenadora do curso, já teria chegado até aqui para pedir
que nós evacuássemos o prédio. Vamos voltar ao assunto aqui. O discurso do
presidente da república denota que o país...
(fundo
musical: “Na captura”)
BENEDETTO
(NARRADOR): Norma foi interrompida pelo seu celular, que registrou uma ligação
de Angélica.
NORMA: Alô?
Oi, querida, tudo bem? (afasta-se do aparelho momentaneamente e fala com os
alunos) É Angélica (volta ao telefone). Sim, sei... Está bem. Eu vou avisar aos
meninos. Obrigada (desliga o celular). Então, pessoal... Angélica me ligou para
avisar que realmente existe a suspeita de um material explosivo aqui e, por
causa disso, as aulas foram canceladas e vocês serão dispensados. O que ela me
pediu foi que vocês deixassem o prédio, sem pânico...
(fundo
musical: “Eterna magia”)
BENEDETTO
(NARRADOR): Ao contrário do que Angélica recomendou, todos abandonaram a sala
apressadamente. Mas eu encontrei Janaína, uma amiga que estudava em outro
turno.
BENEDETTO:
O que é que você está fazendo aqui, mulher? Não sabe que existe uma ameaça de
bomba aqui?
JANAÍNA:
Eu sei. Estava aqui estudando pra fazer um trabalho, mas quando vi aquele
corpo...
BENEDETTO:
Corpo?
JANAÍNA:
O de bombeiros... Não consegui sair.
BENEDETTO:
Vamos embora daqui, Janaína. Até a Folha chegou pra saber se tem bomba mesmo.
JANAÍNA:
Vai lá, Benedetto, pode ir... Acho que vou acompanhar o trabalho do pessoal.
BENEDETTO
(NARRADOR): No fim, eles não encontraram nada. Mas eu tenho para mim que eles
não procuraram direito. Talvez se tivessem entrado na biblioteca e vasculhado
um livro temido pelos alunos do segundo período...
(fundo
musical: “Morte Vilar”)
O longa-metragem
mostra a “Grammatica Portoghese Moderna”, obra trabalhada no referido período
por Angélica.
LOCUTOR:
“Moderna Gramática Portuguesa”.
BENEDETTO
(NARRADOR): O dia estava longe de acabar. Assim que se confirmou a inexistência
de explosivos, a última aula permaneceu inalterada, para o desespero de quem
iria para casa mais cedo. Mas bastou que eu abrisse a porta e desse de cara com
os alunos do prédio assistindo à apresentação dos outros estudantes cantando a
música do protesto.
MANIFESTANTES:
(em tom de pagode) “Sauna, sauna de aula... Sauna, sauna de aula... Ai, que
calor do”...
(fundo
musical: “Iniciação”)
A cena
termina com Benedetto percebendo que o verso terminaria na pronúncia de uma
palavra depreciativa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário