-Eu não acredito nisso! Como é que você teve coragem de vir pra cá, depois de tudo o que aconteceu com o seu irmão?
-Mãe,
calma.
-Eu não
posso, eu não consigo. Você vai pra casa comigo agora.
-Desculpa,
mas não vou mesmo.
-Quer que
eu pegue o cinturão?
-Mãe,
isso tá ridículo, para!
-Parar? E
você tem limites também? A essa hora, você devia estar na sua faculdade de
Medicina, ou do lado do Fabrício convencendo ele a se sentar na cadeira de
rodas... Mas não! A sua preocupação é vir encontrar esse bando de desocupados,
que não quer nada com a vida.
-Olha
aqui, não é só eles que a senhora tá ofendendo, não.
-A você
também? E o que você quer que eu pense, Pedro? Que você é um menino de bem?
Responsável? Que vai fazer alguma coisa que preste na vida? Que não vai me dar
desgosto e seguir a profissão que eu escolhi pra você? Passa pra cá agora,
anda. Quer que eu faça um escândalo?
-Mais um?
-Vai
passar ou não vai?
Para
evitar mais transtornos, Pedro acata as ordens da mãe.
*****
Ricardo está dormindo um pouco. Ao acordar,
percebe que suas roupas continuam jogadas no chão, e as de Cora não estão mais
no quarto. Enrola-se num lençol e pergunta:
-Cadê você?
-No banheiro.
Quando abre a porta, vê Cora chorando,
enquanto põe seu par de brincos.
-O que houve?
-Eu não consigo. Eu não devia ter vindo pra
cá, ter feito isso.
-Foi bom, Cora.
-Foi sujo. Da minha parte e da sua. Eu não
quero repetir isso. Nunca mais.
-Não tem porque se arrepender. Eu gostei
disso.
-O problema é esse: a gente gostar e insistir
no erro.
-Talvez seja imaturo da minha parte, insensível,
mas nesse quarto, a última coisa que posso sentir é remorso.
-Você é casado!
-E daí?
-Não, pra mim, chega!
-Onde é que você vai?
-Pra lugar nenhum. Você é que vai sair daqui.
E não voltar mais.
-Isso não pode ser sério.
-Mesmo gostando de você, eu não posso
permitir que isso se repita. Até nunca mais.
-Nunca é tempo demais.
-O suficiente pra te esquecer, Ricardo.
Vendo que não conseguiria convencê-la naquele
momento, Ricardo aceita a decisão de Cora.
-Me dá um tempo pra eu me vestir?
-Tudo bem.
Cora chora pela despedida e pela culpa que
sente, mas Ricardo ainda não desistiu da professora.
*****
Fabrício dá uma volta pelo hospital e Viviana
o leva até a varanda. De longe, são observados por Werner.
-Sei lá, parece que eu tô respirando, mas me
falta alguma coisa.
-Só de sentar e passear pelo hospital já me
deixa feliz.
-É só pra te ver feliz.
-Você é o mais importante. Tem que parar de
agir como se dependesse de outra pessoa pra ser feliz.
-Não dá, você é a minha felicidade.
-Eu não consigo encontrar a minha, vou ser a
de alguém?
-Se a gente se conhece, não falta mais nada
pra gente ficar junto.
-Tudo o que tem a ver comigo, você não sabe.
-Hora de contar.
-Eu fui... Olha, é muito comprido esse papo,
não tô a fim de levar.
-Conta pelo menos o que você tava fazendo
quando foi me socorrer. Porque a única coisa que eu sei da tua vida é que
Milena é um nome fake.
-Não exatamente. Viviana é o nome que a minha
mãe me deu, quando casou com meu pai.
-E Milena?
-Meu pai me fez usar depois. Eu era muito
pequena, não tinha ideia de que tinha outra identidade.
-De quem você se esconde?
-Dele. Do meu pai.
-Batia em você?
-Não. Fazia pior.
-Ele te...
-Não, também não.
-Fala, Milena.
-Bom, ele descobriu que a minha mãe tinha um
caso com um cara perto de casa, que tinha filho recém-nascido até. Minha mãe
tinha se casado porque naquele tempo, ele tinha uma condição melhor. Mas depois
ele não conseguia mais pagar as dívidas, ela foi se cansando dele e ele
descobriu o caso sem ela se dar conta.
-Aí rolou barraco, baixaria, essas coisas?
-Pior. Pra dar um castigo nela, ele fugiu
comigo. A gente foi pra outro estado, ele me registrou com o nome de Milena.
-E por que você fugiu dele?
-Eu fiquei moça já, adolescente, começava a
perguntar da minha mãe, e ele mentia dizendo que ela tinha morrido. Quando ele
resolveu abrir o jogo, eu fugi de casa e vim pro Recife.
-Sua mãe nunca te procurou, não? Porque se
não, você fez uma burrada.
-Ele mentiu a vida toda dele, como é que eu
vou desculpar?
-O pior é que eu nem posso falar nada, tenho
problema com todo mundo. Nem sei da minha mãe verdadeira. Mas vem cá: se você
não é daqui, como é que você fez pra viver aqui?
O papo é interrompido por Werner.
-Desculpa, gente, mas você vai ter que voltar
pro quarto.
-Tava tão bom aqui, doutor.
-Temos uns exames pra fazer.
-Tá certo. Vem, Milena.
*****
Cristina leva o filho pra casa e discute
sobre o conservatório.
-Bonito, não é? Há quanto tempo você vai
escondido àquele lugar?
-Desde sempre!
-E diz isso na minha cara?
-A senhora não quer que eu fale a verdade
toda?
-É muito cinismo da sua parte!
-Cínico? Eu não preciso me esconder e me
escondo porque a senhora acha que eu sou um criminoso! Se eu dissesse que frequento
uma boca de fumo, que vejo o Sexy Hot, que vou ao show do Sheldon, talvez a
senhora passasse a mão na minha cabeça.
-Se tem uma coisa que você precisa entender, Pedro,
é que eu paguei os melhores colégios pra você ser médico.
-Colégios tão bons que os professores diziam
que Medicina não era a minha praia, e sim Música!
-Meu pai se formou como médico.
-Bom pro meu avô! Pra mim, não.
-Olha aqui, eu já estou perdendo a paciência.
Já não basta seu pai que sai sem dar notícia e seu irmão entrevado naquela
cama, você ainda quer me dar dor de cabeça?
-Mas o que é que eu vivo te pedindo? Hein? Minha
faculdade é particular, por acaso? Fiz o cartão de crédito pra comprar o que eu
quiser? Não. Você me mina o tempo todo!
-A sua obrigação é cuidar do seu irmão.
-A minha obrigação é cuidar de quem precisa
de mim, como todo ser humano normal. Eu não sou melhor que o Fabrício e ele não
é melhor do que eu.
-O seu irmão fica à mercê dos cuidados
daquela fulana que você faz questão de manter no hospital.
-Ela trata ele melhor que a senhora.
-Pedro!
-É isso mesmo. A Milena tem paciência. Se
dependesse da senhora, ele saía imitando o Diego Hypólito daquela cama e dava
um monte de pulo. Acorda pra vida. Ele está paraplégico.
-E vai ficar assim se você não operá-lo!
-Operar? Por favor, mãe! Eu sou estudante. Só
de pegar em bisturi numa aula prática eu sinto que é uma baqueta e fico tocando
na maca!
-Por que você me castiga?
-Porque eu não posso mais mentir.
-Pois pode desistir desse sonho idiota!
Enquanto o Fabrício não andar, eu não deixo você largar a faculdade.
-Ah, quer dizer que se eu conseguir fazer meu
irmão andar, eu posso ir pra Música?
Silêncio.
-Bem... É... Não foi isso que eu...
-Pois muito bem, vamos fazer um pacto. Se eu
conseguir tirar o Fabrício da cadeira de rodas, você vai dar uma festa de
arromba aqui na mansão. E só vai convidar a galera que viu o meu vexame hoje.
-Você só pode estar de brincadeira.
-Chama o Vert
et Rouge e aluga uma roupa. Daqui a um ano, o JC vai publicar uma nota
sobre a festa de Pedro Faria, o mauricinho que faz Música- sobe para o quarto.
-Pedro Faria, se você não voltar pra essa
sala agora...
-Se eu não voltar pra sala, é porque eu tô
estudando e fazendo tudo o que a senhora quer. Não é essa a minha vida?
*****
Fabrício está dormindo, mas se mantém
inquieto na cama. Isso porque ele sonha com o acidente. Acorda gritando, e ao se
virar para a direita, vê sua cadeira de rodas.
-O que foi, Fabrício?
-Tira isso daqui! Eu não quero mais usar essa
coisa.
-Mas você passou o dia melhor! O que foi?
-Eu tenho medo. Medo de me operar e não dar
certo. Medo de ter esperança e não andar mais.
Pedro entra no quarto e avisa.
-Acho melhor chamar o Werner. Ele pode dar um
sedativo pra ele.
-Não quero remédio pra dormir.
-Você tá nervoso, cara. Deve ter sido só
pesadelo.
-Foi aquilo tudo de novo, o acidente, a
batida, o carro rolando...
-Werner, traz um remédio pro Fabrício. Ele tá
agitado- Pedro fala ao celular.
-Não é melhor eu sair?
-Tem razão, Milena. Deixa que eu resolvo tudo
aqui.
-Não! Não deixa ela sair. Sai você!
-Não dá, Fabrício.
Werner chega com uma injeção e aplica no
braço do rapaz.
-Eu não consigo. Eu não vou mais andar. Vocês
tão perdendo tempo.
-Fabrício, confia em mim. Eu vou te ajudar e você
vai conseguir.
O garoto passa a ver as pessoas flutuando,
tudo começa a ficar mais escuro com o passar do tempo. Poucos minutos depois,
ele adormece, mas não sem antes chamar repetidas vezes o nome de Milena.
*****
Numa barraca que fica perto do Hospital Melina
Dubeux, Pedro e Viviana tomam uma água de coco.
-Sabe? Eu fico besta com um negócio desses.
-O quê?
-Uma barraca dessas, perto de um hospital
particular. É de dar vergonha.
-Confesso: não é o lugar onde minha mãe
tomaria uma água de coco.
-Mas não é mesmo!
-Como ele passou o dia hoje?
-Andou na cadeira de rodas. Quer dizer, eu
empurrei, né?
-É. Essa reação dele é normal. Foi um choque
muito grande. Vai demorar pra se acostumar.
-Vai, sim.
-Cada dia mais vocês tão próximos.
-Eu gosto dele.
-E eu de você.
-Também gosto de você.
-Às vezes, eu acho que ele teve sorte nesse
acidente. Te conheceu. Você é muito especial.
-Nós somos. Pra ele. Pro Fabrício.
-Você dá licença? É que o meu celular tá
tocando.
-Claro. Vai lá.
Trinta segundos depois da saída de Pedro, o
celular de Viviana toca. É uma mensagem.
-Gosto da ideia de te ver chegar...
Chega outra.
-Sentir seu corpo contra o meu...
Nova mensagem.
-Ficar junto, falar tua língua...
E novamente.
-Gritar pro mundo que o amor valeu...
Pedro volta para a mesa.
-O que foi, Milena?
-Dá uma olhada nisso que chegou pra mim. Lê as
quatro.
-Gosto da ideia de te ver chegar, sentir seu
corpo contra o meu, ficar junto, falar tua língua, gritar pro mundo que o amor
valeu.
-O que é isso?
-Acho que alguém tá te pedindo em namoro.
-Mas quem?
Pedro olha para a mesa, vê um vaso com uma
flor artificial. Tira a planta e entrega à Viviana.
-Quer namorar comigo?
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