-Até
quando você... Quando é que você vai virar essa página, Fabrício?
-O
problema não é quando. Eu não quero virar. E pronto.
-Eu
não tenho nada contra você. Não te odeio, entende isso!
-Mentira
sua.
-Por
quê?
-Sei
que é mentira o que você tá me dizendo. Que se você não tivesse pena de mim, a
essa hora já teria me dado uma surra. Não é porque eu tô assim que eu vou me
calar, e dizer tudo o que eu penso.
-Nem
sei o que te falar, sério.
-Dizer
o quê? Contar a verdade que eu já sei?
-Fabrício,
é pior do que eu pensava. O problema não é o acidente, o que te aconteceu ou o
tratamento. O problema... O grande problema é você.
-Isso.
É o que eu quero. Que você bote pra fora tudo o que pensa e nunca teve coragem
de falar.
-Doente.
É o que você é. Ou o que sempre foi e eu não percebi.
-Quem
tinha que ter sacado alguma coisa era eu. O jeito que minha mãe olhava pra
você, se preocupando mais do que comigo...
-Eu
era o problema. Não você. Não foi você que ameaçou sair de casa, nem teve que
desafiar ninguém, nem ser pedante, lutar contra a intolerância dos outros. É a
minha vida, minha vocação. Sabe o que era pra eu estar fazendo agora?
-Pedro,
sua vida não me interessa nem um... – Fabrício vira o rosto.
-Interessando
ou não, eu vou falar- Pedro levanta a voz e chama a atenção do irmão- Era pra
eu ter vindo visitar meu irmão, mas só isso. Não era pra me inteirar do
assunto, conversando com médico, circulando pelo hospital. Não é a minha
vontade! Sabe qual é o meu erro? É de ter escutado a dona Cristina. Essa aí,
que você não quer aceitar como mãe. A que te deu tudo. Se você é alguma coisa
nesse mundo, a culpa é dela. Até pra ser um desgraçado, você deve isso pra ela
e pro Ricardo. Ela te deu amor. Já ouviu falar nisso? É aquilo que você não
consegue dar porque não tem!
-Escuta
só...
-Cala
a boca! Eu não terminei ainda!
-Eu
acabei! Sai do meu quarto.
-Esse
daqui não é seu quarto! Seu quarto ficou lá em casa, do jeito que você deixou,
antes de sair louco em alta velocidade, a fim de bater num poste e ferrar com a
vida de todo mundo. Quer me ferrar? Me ferra logo! Teu problema é comigo. Mesmo
que você não saiba nem o nome, é comigo! Porque ciúme de irmão não é. No teu
caso, tá ridículo já!
-Terminou?
Pedro
começa a bater fortemente nas pernas de Fabrício.
-Tá
sentindo? Tá sentindo dor? Hein? Tá sentindo minha mão socando aqui?
-Para!
-Viu?
Teu problema é nas pernas. Cego você não é. Para de fingir que não enxerga a
gente te dando amor, te tratando bem.
-É
remorso.
-Remorso
é aquilo que você tem quando acorda e vê as besteiras que diz pra ferir todo
mundo.
-Eu
não tenho medo de você.
-Ótimo.
Eu não manipulo todo mundo.
-Some
daqui!
-Resumindo:
senta nessa cadeira e faz o teu tratamento. Se você acha que depende de uma
cadeira pra ser melhor do que eu, se recupera. Aproveita pra crescer.
-Some!
Depois
do grito de Fabrício, Ludmila volta para a recepção do hospital, e Pedro sai
lentamente do quarto.
*****
Ricardo
e Cora bebem juntos na casa do publicitário.
-Ótima
safra a desse vinho.
-Cora
Lauveríssimo. Nome exótico.
-É
a primeira vez que dizem isso. Geralmente dão adjetivos piores- ambos riem.
-Como
você se resume?
-Quarenta
e cinco anos, solteira, sem filhos e com uma vontade enorme de viver.
-Viver?
-Exclusivamente
para o trabalho.
-Uau!
-Você
não vai se resumir, não?
-Cinquenta
e dois anos, casado, pai de dois filhos. Um é problemático e o outro... Está
começando a me perturbar.
-E
a esposa?
-Um
verdadeiro pilar.
-Isso
é ótimo.
-Pilar
mesmo. Sem ela não existiriam as estruturas físicas das butiques e joalherias.
Passa mais tempo lá do que aqui, em casa.
*****
Pedro
encontra Viviana do lado de fora do hospital.
-Milena.
Estranhei quando não te vi dentro da enfermaria.
-Eu
te vi chegando. Achei que ele quisesse conversar.
-Achou
errado.
-O
que foi?
-Tá
difícil. Muito difícil. Fabrício não abre a guarda, é irritante... Olha, eu
discuti com ele, essa é que é a verdade.
-Você
não pode fazer isso. É o mais próximo que pode ajudar ele na recuperação.
-Ele
não quer a minha ajuda. Como é que eu faço?
-Não
sei, mas não desiste dele, não. Ele se sente sozinho.
-Não
é assim quando ele tá junto de você. Só você é quem ele ouve. A gente tem que
começar por você. Não por mim.
*****
Cora
está um pouco alterada por conta da bebida que toma com Ricardo.
-Você
me prometeu que seria apenas um café.
-É
que a nossa conversa está tão prazerosa que...
-Não
precisa se justificar.
-Tem
certeza?
-Claro.
Eu também estou adorando esse papo. Há tempos não me divertia tanto. Mas eu
acredito que seja melhor eu pegar meu carro, já estou atrasada para o trabalho.
-Poderíamos
nos ver outras vezes.
-Ótima
ideia. Então... Até...
-Até...
Quando
Cora vai dar um beijo no rosto de Ricardo, desequilibra-se e ele a segura.
Justamente nesse momento, eles trocam um beijo. Ela se afasta e sai correndo em
direção ao seu carro.
-Cora?
Cora, onde é que você vai? Você não pode dirigir assim.
-Depois
a gente se fala, Ricardo- a professora de Pedro entra no veículo e foge da casa
do publicitário.
*****
Viviana entra no quarto de Fabrício.
-Posso entrar?
-Você não precisa pedir, né?
-Eu encontrei seu irmão lá embaixo. O que
aconteceu?
-O mesmo de sempre: nada. Há muito tempo que
não tem nada de bom na minha vida que tenha a ver com ele.
-Fabrício, entende só uma coisa: o Pedro é
seu irmão e...
-Ele não é meu irmão. Eu sou adotado. Eu não
tenho nada dele, nada.
-Como não? Vocês moram juntos, foram criados
juntos. E o Pedro não quer outra coisa que não seja te ajudar.
-Tá vendo só? Ele já conseguiu te convencer.
Eu não gosto dele, não quero ele perto de mim. O povo tem que entender isso.
-Pra mim, isso é ciúme.
-Talvez, mas a minha raiva não passou. Eu
tenho pra mim que ele sabia que eu era adotado e não me contou nada.
-Você tem como saber realmente disso?
-Não.
-Deixou de ser ciúme, é implicância mesmo.
-Que coisa... Faz poucos minutos que você viu
o Pedro lá embaixo e já tá defendendo ele.
-Eu tô defendendo o que é certo.
-Ah, Milena, quer dizer que eu não tô?
-Não.
-Você não conhece nada da vida mesmo.
-E você não me conhece. Não sabe o que me
aconteceu, tudo que eu passei, nem como eu cheguei aqui nesse lugar.
-O que eu não sei?
-Você quer mesmo saber?
-Posso, pelo menos?
-Agora não. Muito cedo pra eu falar qualquer
coisa. Eu só sei que o Pedro é médico e é pra ele que você tem que pedir ajuda.
-Dispenso a ajuda dele. Como vou dispensar
toda vez que ele me aparecer aqui. Não é porque a mãe dele quer que eu vou me dobrar.
-Sendo assim, eu vou fazer que nem a sua mãe
e resolver o seu problema. Você não tem dinheiro, tá num hospital do governo,
não quer a ajuda da família... Tá! O Pedro vai te ajudar, com ou sem sua
permissão.
-Milena, se você for atrás daquele cara, eu
vou...
-O quê? Me ameaçar? Toma vergonha na cara,
Fabrício. Eu não tenho medo de ninguém, tá legal? Eu te pedi pra você correr
atrás, procurar um jeito de se levantar, de sair dessa. Eu pedi pra você se
ajudar, e você só não faz isso por causa da implicância com seu irmão. Mas já
que você não quer, quem vai procurar sou eu.
-Milena... Milena!
E Viviana bate a porta do quarto, encontrando
Ludmila em seguida.
-Tava escutando tudo, não foi?
-Do que você tá... – procura disfarçar.
-Relaxa, eu sei que você vai dizer que tá
buscando informações sobre o estado dele, blá, blá, blá... Olha, eu sei que a
gente não é próxima uma da outra, só que eu quero um favor seu.
-Só se tiver a ver com o Fabrício.
-Claro. Você é bem informada, tem suas
fontes. Será que não dá pra descolar o endereço da casa da família dele?
-Pra quê?
-Eu quero falar com o irmão dele. Sabe, pra
ele acompanhar o tratamento de perto.
-Quer dizer que a situação dele...
-Tudo nos conformes. Ele sofreu um trauma, e
o irmão dele é que vai cuidar disso.
-E a transferência?
-Soube que a mãe dele tá resolvendo tudo, mas
ainda tão esperando passar o tempo. Depois dessa entrevista toda, dá o endereço.
-Tudo bem... Eu vou anotar pra você.
*****
Ricardo está na biblioteca, quando Cristina chega.
-Onde você estava?
-Passei o final da tarde num spa!- joga a
bolsa no sofá- Precisava relaxar. Antes, passei na universidade e fui procurar
o Pedro pra que ele me ajudasse com o Fabrício.
-E como é que tá tudo?
-Infernal. Ele não quer aceitar a cadeira de
rodas, anda agressivo, pior a cada dia. Eu cheguei à conclusão de que construí
uma família problemática.
-Não fala assim, Cristina.
-A minha única sorte é de você ter sido a
única escolha da qual eu não me arrependo.
Cristina dá um abraço no marido, que mal
consegue segurá-la, devido às lembranças que tem de Cora.
*****
Já no andar de cima da casa, Pedro está com
um notebook em mãos, quando alguém
bate à porta.
-Já vai, calma aí.
Ao abrir, ele toma aquele susto.
-Você aqui?
-E você já imagina sobre quem eu vim falar.
Olha só, Pedro, não adianta, eu não vou desistir enquanto você não ajudar o
Fabrício.
E a visita de Viviana é uma surpresa que faz
o estudante de Medicina ficar feliz, ainda que seja por um motivo delicado.
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