Depois
de um belo de um calmante, Xande percebe que guardou o celular da irmã no bolso.
Aproveita e manda uma mensagem para Felipe, pedindo pra que ele venha ver Rayane-
sem se identificar.
-Por
que não manda a mensagem do seu celular?
-Porque
é capaz de ele não vir, Professor. Daí, é melhor mandar do dela.
-Não
precisa me explicar nada. Já é muito estranho ter wi-fi que preste num
hospital. Aqui não funciona nem sinal de telefone.
-O
que foi que houve? Cadê Rayane?- Felipe chega apavorado ao Pronto-socorro.
-Como
veio pra cá tão rápido?
-Dramaturgia,
Professor. Mas eu recebi uma mensagem de Ray. O que foi?
-Não
foi ela que mandou. Fui eu. Enviei uma mensagem pelo celular dela.
-Posso
saber o que tu "quer" comigo?
-Sabe
aquela suspeita que Rayane tinha de que tava grávida? Se confirmou.
-Rayane
grávida? Mentira, velho...Tá de brincadeira comigo.
-Ele
não vai brincar com um assunto desses, Felipe.
-Não tô falando com você, fica na tua.
-Mas eu tô. Você acha que Xande ia falar com você disso
em tom de brincadeira? A não ser que você quisesse ser pai.
-Tô falando na boa contigo, Professor. Vê se não se mete.
-Muita cara de pau a tua querer cantar de galo aqui, não
é? Você não tá na escola, onde pinta e borda com todo mundo, não. Aprende a ser
homem, rapaz!
-Quem é você pra falar assim comigo?
-Sou teu professor. Mas não vou abrir a boca só lá na
escola e ver você fazendo cagada aqui fora!
-Problema seu. Escolheu ser isso porque quis. Agora
aguenta. Não vem com lição de moral pra cima de mim, não. Senão, eu te dou um corretivo.
-Vem dar.
-Para de me provocar, cara! Tu não sabe com quem tá se
metendo.
-Vou descobrir agora. Eu ia ter medo de um cara que
assumisse os erros. Mas você nem isso.
-O que é que tu "sabe"? Chegasse um dia desse
lá no colégio. Não apita nada naquela porcaria. Se eu fizer isso aqui- estala
os dedos- Amparo bota você pra correr. A banda toca do jeito que eu quero.
-E você acha que eu tenho medo de você? Se toca, Felipe.
Xande me contou que Rayane suspeitou da gravidez e você se fez de esquecido.
Devia ter torcido pra ser engano.
-Você não tem mais o que fazer aqui, não?
-Tem mais do que você, que fica levando minha irmã pro
banheiro, sabendo que ela pode ser expulsa e ficar de fora do negócio do
intercâmbio.
-Deixa, Xande. Deixa. O melhor é ir embora mesmo. Não
tenho o que fazer aqui. Nem eu, nem Gabriel. Por favor, me manda notícias.
-Tudo bem, eu mando. Valeu mesmo, Professor.
-Tchau- o professor regente vai embora.
-Cadê Rayane? Quero falar com ela agora.
-Procura o médico. Eu não sei em que quarto ela tá. Diz o
nome dela pra segurança da Upa e pergunta.
-Qual o nome completo dela?
-Rayane Sobral Cruz. Viu como você sabe tudo sobre ela?
Vou procurar Gabriel pra agradecer. Ele é que trouxe a gente pra cá- Xande
também se retira, deixando Felipe sozinho.
-Ele é que vai aprender a ser homem. Pode me esperar, que
ele me paga essa de hoje.
Sexta-feira, nove
de outubro de 2015...
Mesmo com uma crise matrimonial intensa, Caíque não se
disponibiliza para resolvê-la ao lado de sua esposa. No entanto, tenta cometer
suicídio ao vir almoçar em sua casa, adiantando a discussão que estava marcada
para as sete da noite em sete horas.
Abrindo a porta, encontra a casa com vários grãos de
arroz espalhados. Sim, arroz. Imagina que a bagunça tenha sido tramada por
Zilda, ou que alguma criança tenha feito isso, mas não.
-Lavínia? Lavínia, você está em casa?- Caíque passa a
estranhar também a ausência da esposa. A porta da área de serviço está trancada.
Para esclarecer o que acontece, o engenheiro resolveu entrar em seu quarto, mas
nota que pelo caminho pode encontrar mais arroz. Por um momento, até tem medo
do que pode ver assim que entrar no quarto. Dito e feito: está a cama cheia de
sushis sobre bandejas e a cortina fechada- Mas o que é isso?
Lavínia, que está ao lado da janela sem ser percebida
pelo esposo, ilumina o quarto abrindo a cortina e revela estar com os cabelos
amarrados, um rosto mais branco que a farinha Dona Benta e um quimono.
-Gostou, honorável senhor?
-O que é isso, mulher? Halloween é no dia trinta e um, e
no Brasil a gente não comemora!
-A gente faz a festa assim mesmo. Como diria Marisa
Monte: "não é proibido".
-Por que essa palhaçada?
-Olha pra cama. Tantos pratos deliciosos. Deu um trabalho
de procurar no Google, então apelei para o sushi com diferentes molhos. Tem
certeza de que não quer experimentar?
-Sabe que essa roupa ficou maravilhosa em você?
-Sei, sim. Agora vamos comemorar a chegada do ano novo
chinês- Lavínia agarra o marido.
-Mas você está vestida de chinesa ou de japonesa?
-Estou vestida com um roupão de banho vermelho e com fita
durex nos olhos. E em vez de se preocupar com a verossimilhança do disfarce,
cala a boca e me beija.
A professora avança com extrema violência contra o rosto
do engenheiro. O único detalhe que pode ser dado sobre o que está acontecendo
agora é que Zilda vai passar o dia todo recolhendo arroz do apartamento.
Hoje, Fred não tem aula na faculdade à tarde. Então,
vamos aproveitar que a Lavínia também daria aula nesse turno e coloquemos o
professor substituto pra trabalhar. O assunto do dia é redação.
Só que antes, vamos ver Rayane chegando à escola bem
tarde. A moça preferiu ficar em casa de manhã, e apareceu na instituição com
cara de enjoo (por que será?). Vivi vai falar com ela?
-Por que tu não "viesse" hoje?
-Não tava bem,não. Passei a manhã todinha no banheiro,
vomitando.
-Bulimia?
-Nem brinca com isso. Mas é outra coisa.
-O que foi, Ray?
-Fui pro hospital ontem, socorrida pelo professor, Xande
e aquele estagiário.
-Danou-se! O que você tem?
-O médico contou pra eles que eu tô grávida.
-É o quê?
-Psiu! Fala baixo! Quer que todo mundo fique sabendo?
-Se ninguém ficar sabendo por mim, você vai colocar o
ultrassom como foto de capa do Facebook!
-Pior que eu vou mesmo.
-Mas e Felipe? Já sabe?
-Sabe já.
-E o que ele disse?
-Nada. Xande mandou uma mensagem pelo Zap Zap pra ele ir
lá pro hospital. Ele e Fred contaram, mas Felipe não entrou pra me ver.
-Vai ver ele ficou em choque, né, amiga?
-Mesmo assim, Vivi. Felipe tá fazendo de conta que não é
com ele, que não tá nem aí pra essa gravidez. E eu já tô começando a achar que
não tá mesmo.
-Não tô falando disso. É desse merchandising involuntário
de redes sociais que a gente fez em uma cena só.
-Mas também, a gente é descrita na sinopse como melhores
amigas, e não tivemos uma cena juntas. Já passamos da metade de capítulos.
Vamos faturar, pelo menos.
Dentro da sala da aula, Fred começa a conduzir a aula.
Felipe está na última cadeira da terceira fila, perto de André e Bernardo. O
vilão ainda tenta trocar olhares com Rayane, mas ela prefere conversar com
Vivi.
Eis que o nosso herói vem com sua proposta de aula para
esta sexta-feira, que é redação... Eu já falei isso, mas preciso colocar uma
barriga quando não tenho muitos acontecimentos pra jogar no enredo (obs.:
"barriga", para você que não sabe, é um determinado momento de uma
estória que se caracteriza pela ausência de ação- um marasmo!).
Bom, Fred aparece com a proposta, sendo observado por
Gabriel e pelos demais alunos.
-Um dos temas que os jornais e os meios de comunicação
têm dado muita ênfase ultimamente é a crise na economia. Para alguns
especialistas, o Brasil demorou a seguir a tendência de uma crise que já
existia no exterior, manifestando-se até mesmo em potências maiores. Para
outros, o país sofre o reflexo das políticas públicas.
-O senhor tinha adiantado que queria que a gente
escrevesse uma carta.
-Achei melhor fazer isso, Xande, porque soube que você
não estão habituados a esse tipo de gênero.
-Ué, mas gênero não é só masculino e feminino?- Bernardo
faz o comentário apenas para desconcentrar os demais estudantes, num conluio
com Felipe e André.
-Eu pensava isso também, mas faculdade fala tanto de
gênero que a gente acaba não restringindo a essa questão. Mas já que você tocou
no ponto, Bernardo, me tira uma dúvida: o que uma carta precisa ter pra gente
considerá-la como uma carta mesmo?
-Hum... Veja bem... Veja bem... Veja bem!
-Cimento Poty: ou você usa bem ou... Veja bem! Lembra
esse comercial?- a turma fica em silêncio devido a essa referência de uma
propaganda feita em 2007, constantemente veiculada pela TV, e que só está sendo
explicada aqui para encher linguiça, gastar cartucho, criar a já citada
barriga.
Gabriel, coitado, até fica orgulhoso, pensando que Fred
está dominando realmente a sala de aula. Até que...
-Precisa ter local, data, destinatário, assinatura... Ah,
tem gente que coloca o atenciosamente. Não é isso, Fred?- Vivi decide colaborar
(ou a gente é que está dando espaço para essa coadjuvante? Veja que hoje até
seu irmão, Bernardo, teve fala).
-Isso aí. Mas não tá faltando mais alguma coisa?
-É... Destinatário ela já falou. Mas quem vai ser o
destinatário?
-Aí é que mora o perigo. O que eu proponho pra vocês é
que cada um escreva uma carta endereçada ao nosso maior representante,
solicitando medidas que visem melhorar a economia.
-Fred, boiei. Tá mais complicado do que ver "A Regra
do Jogo". Qual o perigo de ser escrever uma carta pro presidente?
-O problema tá na linguagem que você vai usar para se
comunicar com o destinatário, Rayane. Você não vai falar com o presidente
usando o tom que utiliza numa conversa informal, com as suas amigas, por
exemplo. Tem que usar a norma padrão.
-E por que não pode? Quando não existia e-mail, as
pessoas mandavam cartas. Ou o senhor vai me dizer que todas as cartas do mundo
eram escritas pela norma padrão?- Felipe tenta provocar uma discussão.
-Mas nesse caso, é uma solicitação, Felipe. O redator da
carta não vai falar do mesmo jeito que fala com um amigo. Ninguém vai escrever:
"mano, tô ligado que a falta de grana tá afetando minha quebrada. Sabendo
que as tretas do país são mais velhas do que parece, respeita nossa estória,
velho"!
-A gente não fala assim.
-Eu sei, mas foi a primeira coisa que veio à cabeça. O
fato é que a gente não traz pra carta o comportamento da oralidade.
-Dê um exemplo, Capitão- Felipe ironiza, sem saber do
estrago a seguir.
-"Bom dia, pessoal! Me desculpe incomodar a paz
espiritual de vocês, mas eu tô vendendo a promoção do dia. Por cinquenta ʼcentarroʼ,
você leva três ʼpaçocaʼ. E seis ʼéʼ um real. Quem quer?".
Felipe parece no momento ter uma crise causada por pedra
dos rins, mas é galhofa diante da caracterização que faz o estagiário. Ri
muito, percorre a sala ao ser observada por Fred e quando finalmente consegue falar
alguma coisa, dispara uma única palavra:
-Paçoca!
-Quanto é a paçoca, Fred?
-Repete aí, professor!
Sim, os figurantes ganharam espaço nessa joça. Fred fica
constrangidíssimo com a comparação politicamente incorreta. O olhar coordenador
do jornalista Gabriel vem acompanhado de um comentário doloroso.
-O problema nem sempre é a primeira coisa que vem à
cabeça, mas a segunda!
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