-Não,
não estou. É a oportunidade perfeita. Você substitui Lavínia e eu carimbo toda
a documentação que você precisa pro estágio.
O
jornalista deprimido fica em estado de choque.
-Mas
como é que eu vou fazer isso? Eu nunca dei aula.
-Pra
tudo tem a primeira vez. E só vai precisar dar aula pra uma turma só, a da
manhã. O 3º B pode se virar sem professor, até porque ali todo mundo só vai vir
mesmo quando chegar a caixa de tablet.
-Eu
não sei... Agora não tem ninguém pra observar aula aqui na escola. E as outras
que fui também não aceitaram um estagiário.
-Pois
então vai subir de padrão. É uma solução provisória, meu querido. Dois meses, e
pra uma turma só. A melhor que tem dos terceiros anos.
-O
que eu faço? Além de dar aula, assumir uma turma durante dois meses, eu ainda
tenho que dar conta da faculdade e escrever um relatório. Você, desconhecido
que está nos olhando desde o capítulo anterior, fala alguma coisa!- dirige-se a
Gabriel.
-Quem
é você?
-Acho
que tenho a solução do problema desse rapaz. Eu tenho experiência com textos, e
posso ajudá-lo a redigir o relatório.
-Continuo
esperando a resposta, rapaz.
-Muito
prazer, eu sou Gabriel Arenas, repórter da Folha.
-De
São Paulo?- o ingênuo Fred questiona.
-Não.
Daqui mesmo- a resposta gera uma taquicardia em Amparo, uma vez que ele escutou
a negociação estranha- Bom, eu fui designado para tentar uma entrevista com a
diretora da escola, mas... Não imaginava que fosse descobrir tanto em cinco
minutos.
-Não
vai colocar essa conversa toda no jornal, vai?
-Senhora,
eu não quero saber o que vai acontecer aqui. O que me interessa é o que levou a
tal professora a agredir o aluno.
-Stress!-
exclama rapidamente- Uma crise de stress absurda. Sabe como é,né? Lidar com
alunos é brutal.
-A
ponto de ela agredir o aluno com uma bofetada?
-Deu
pra ver que ela estava fora de si. Mas eu não a culpo. O trabalho e a vida
pessoal têm estressado ela demais, coitada.
-Lembro
de ter visto vocês dois no vídeo... Sabem por que ela agrediu o aluno?
-Cheguei
com a diretora na hora da pancada, nem cheguei a conversar com ela.
-Ué,
mas você não é o estagiário observador?
-Fred
veio à escola no dia da confusão. Ele havia acertado comigo que ia acompanhar
as aulas de Lavínia, mas não chegou a conversar com ela porque eu a afastei
temporariamente.
-Certo...
E o aluno?
-Tomarei
medidas socioeducativas com relação ao Felipe.
-Futuramente?
Por que ele não foi punido na hora?
-Acaso
o senhor entende o que é ser diretora de uma escola?
-Entenderia
perfeitamente se o aluno não tivesse feito nada. Ou a senhora quer me convencer
de que a tal professora deu no menino de graça, só por causa de um stress?
-Caso
não acredite, entre em contato com a professora Lavínia.
-E
vou mesmo!- a afirmação assusta Amparo.
-Vou
ter que ir também. Tenho que me inspirar no plano de aula dela pra fazer o meu.
Ou pensa que vou esperar a biblioteca sair da greve pra pegar o livro de José
Carlos Libâneo?
-Ótimo.
Pode dar o endereço pra gente, diretora?
Não faça essa cara de contragosto. Melhore!
E como na TV e no cinema horas são
minutos, consideremos que essa estória não é documentário. Portanto, vamos dar
outro salto no tempo.
Domingo, quatro de outubro de 2015...
Já
são quase quatro horas da tarde. Zilda abre a porta do apartamento. Lá, estão
Fred e Gabriel.
-O
que desejam?
-É
aqui que mora a professora Lavínia?- Fred pergunta timidamente.
-Sim.
E vocês, quem são?
-São
da escola, Zilda- Lavínia chega à sala- Amparo me ligou avisando que eles
vinham. Por favor, podem se sentar.
-Com
licença- Gabriel entra no apartamento.
-Vocês
aceitam alguma coisa? Uma água, um café, um suco?
-Não,
obrigado.
-Eu
vou aceitar uma água, Lavínia... Posso te chamar de Lavínia?
-Pode,
sim. Zilda, aproveita e traz uns biscoitos que comprei hoje- a empregada se
retira- Você deve ser o estagiário que ia me cobrir... Quer dizer, que vai me
cobrir, não é?
-Não.
Eu sou Gabriel Arenas, da Folha do Recife. Fui até a escola ontem pra saber se
alguém poderia me dar detalhes sobre o que aconteceu nessa semana.
-E
acredito que Amparo tenha sido muito vaga com relação ao assunto...
-Foi.
Vai me desculpar a sinceridade, mas acho que ela só me deu seu endereço porque
achou que fosse se comportar da mesma maneira.
-Também
achei isso. É o direito dela de preservar a imagem da escola. Mas não me
importo de ver meu nome sendo jogado no ventilador. Mesmo porque eu não vou
passar tantos dias sendo assunto da mídia, já que estão pouco se lixando com a
educação. O que você quer saber, Gabriel?
-Tem
ideia de como foram parar na internet as imagens da sua agressão contra o
aluno, o tal de Felipe?
-Na
sala, só estavam mesmo os meninos da turma e, depois, vi chegarem Amparo e esse
rapaz. Ela não tinha me contado que ele seria meu observador.
-Então,
a senhora não nega que agrediu mesmo o aluno?
-E
ia bater mais. Vai botar isso na reportagem? Pode botar. Bateria nele de novo.
Pra aprender a me respeitar.
-Sinceramente,
não entendo o motivo.
-Felipe
anda de rolo com uma menina da turma chamada Rayane. Ela é namorada de
Alexandre, que é o melhor aluno da turma. Nesse dia, eu entrei pra dar aula
umas dez e vinte, e eles ficaram na porta se beijando. Quando acabaram os
quinze minutos de tolerância, mandei os dois pra dentro. Felipe fechou a cara e
disse que eu só estava cuidando da vida deles porque a minha não devia ser tão
agradável assim.
-Como
assim? O que ele disse exatamente?
-Que
meu marido não deve dar conta do recado, foi isso. Argumentei que não trago meus
problemas de casa pra contar pros meus alunos, e ele debochou dizendo que se eu
precisasse resolver meu problema, poderia contar com ele. Isso, depois de ter
sido apalpada por ele, na frente de todo mundo.
-Sabe
se isso foi filmado?
-Se
foi, não quiseram colocar pro Felipe sair de vítima na estória.
-Felipe
tem problemas com outros professores?
-De
uns tempos pra cá, sim. Ficou mais respondão, agressivo, parece que ele tem
raiva e quer descontar no mundo os problemas dele. Antes, era um aluno bem
relapso. Agora, foge da aula, escala o muro, conversa bastante, atrapalha todo
mundo... Pode perguntar pra qualquer professor de lá.
-Então,
sua indignação foi por ter sido agredida pelo Felipe?
-Não
só por isso. Também porque Amparo não fez nada. Ficou refém dele. Tudo pra não
comprometer a imagem da escola. Muitos dos alunos de lá costumam ser chamados
pra fazer intercâmbio na Suíça. Mas entendo o lado dela, quis abafar um
escândalo.
-Me
desculpe, mas não tem que concordar com ela. Tudo bem que ninguém recomenda devolver
a agressão de um aluno, mas você foi desrespeitada.
-Desde
quando alguém entende lado de professor, meu filho? A gente tem que engolir
calada. É bom você escutar isso, Fred. Vai ter que engolir muito sapo se quiser
se firmar na profissão.
-Imagino
a sua agonia de querer voltar pra lá o quanto antes.
-Mas
sabe que foi até bom ter me afastado? Olha, eu estou realmente passando por um
problema aqui em casa, e quero usar esse tempo pra resolver. Se bem que... Não
vou mentir dizendo que me sinto em segurança com ele lá. Quinta-feira ele fez
isso comigo, imagina o que vai fazer com você. Toma cuidado com esse menino,
Fred. Não tire brincadeira com ele. Ignore que é melhor.
Zilda
volta com a água e os biscoitos.
-Obrigado-
ambos os rapazes dizem à empregada.
-Zilda,
cadê Caíque?
-Se
enfurnou no escritório.
-Em
pleno domingo à tarde? Tudo bem, Zilda, pode ir. Fred, você pode ficar com meus
planos de aula, separei tudo nessa pasta. No fim do estágio, você me devolve.
-Desculpa
incomodar a senhora desse jeito, professora...
-Imagina.
Eu já fui como você. Também passei por isso, ouvi meus futuros colegas de
profissão falando horrores de alunos e pensei: vou mudar o comportamento dele
com a minha intervenção. Não muda nada, meu filho. Você pode ser o melhor
professor do mundo, mas se o aluno não tiver interesse na sua aula...
-Dona
Lavínia, desculpe eu me meter, mas aí pode ser falta de educação doméstica.
-Ou
o aluno tem educação doméstica e usa o livre-arbítrio pra não usar.
-Pois
é. Sinto isso com meu sobrinho. Trato ele tão bem, cuido dele com se fosse meu
filho... Mas só faz o que quer de uns tempos pra cá. Vai ver é falta de pai,
não é?
-Tem
muito filho que é criado sem pai e dá pro que presta, Zilda.
-É...
Cada um é responsável pela escolha que faz- avalia Fred.
-Toma
cuidado com ele, Fred. Ninguém responsabilizou esse menino. Deve achar agora
que tem carta branca pra fazer o que bem entender.
Bem
longe dali, na casa de Felipe, o rapaz está na cama abraçado à Rayane.
-Você
não tem ideia de como é bom ficar assim contigo...
-Pena
que escondido de todo mundo.
-Escondido
é melhor... – tenta beijar a moça.
-Por
quê? A gente não tem que se esconder de ninguém.
-Só
do seu irmão, que não vai com a minha cara.
-Xande
não manda em mim, eu não sei se você sabe.
-Mas
você dá valor ao que ele diz.
-E
ao que eu sinto também. Isso não conta?
-A
gente podia repetir a dose amanhã, né? Minha tia vai dormir no emprego hoje, só
volta lá pra de tarde... E amanhã não tem aula de Lavínia, que é no último
horário...
-Não
vai rolar, Lipe.
-Por
que não?
-Porque
não tem como ser igual a hoje. Você sabe como tá sendo tudo tão especial pra
mim. Eu cheguei aqui, morrendo de medo, e você...
-Shiu!-
põe lentamente a mão na boca da namorada- Não fala nada, não, Ray. Só quis
dizer que amanhã a gente pode ficar sozinho de novo. Mas o dia ainda não
terminou.
-Lipe,
deixa disso, eu tenho que ir pra casa.
-Antes,
vai comigo até o fim do mundo- beija a namorada e a envolve num longo abraço.
Segunda-feira, cinco
de outubro de 2015...
Fred fica sentado num banco de praça, localizado em
frente à Escola de Referência em Ensino Médio Antonio Nipo (devo ganhar um
salário astronômico para repetir esse nome enorme a cada capítulo, hein?). Os
alunos repararam no estagiário, que traja uma camisa branca, e logo pensam que
se trata de um estudante novato. Os alunos do Terceiro A, que acham o rosto do
rapaz familiar, comentam entre si.
Toca o sinal às sete e meia da manhã. Amparo abre o
portão e põe todos pra dentro. Logo, Fred se junta à diretora, que o leva até a
sala dos professores.
-Aquele teu amigo jornalista não chegou?
-Mandou dizer pelo WhatsApp que daqui a pouco vem pra cá.
-Muito bem- afirma, mesmo descontente- Fred, você pode
ficar aqui na sala. Sinta-se à vontade.
-Onde estão os outros professores?
-A maior parte participa hoje de um indicativo de greve,
não sei quem vem mesmo pra cá. Mas é bom. Assim, você analisa com mais calma o
plano de aula que Lavínia deixou. Mas me conta: o que vai fazer com eles?
-Pensei em passar uma atividade. Cinco questões, pra
revisar esse conteúdo sobre pronome que Lavínia deixou inacabado.
-Ótimo. Entretenha os meninos o máximo que puder. Não
deixe eles saírem antes das doze. Não se esqueça de que sua aula é no último
horário.
-Tá certo. Eu trouxe o pendrive pra imprimir a atividade
na sua sala.
-Infelizmente, a copiadora daqui não funciona faz um
tempinho. O jeito é escrever no quadro mesmo. Tem problema?
-Não, imagina- Fred tenta ser compreensivo.
-Bom, se precisar de mim, sabe onde me chamar.
-Tudo bem. Obrigado.
Amparo sai da sala dos professores no momento em que
Felipe chega à escola. Quando a diretora fecha a porta, o rapaz percebe a
presença de Fred no recinto. Sem se lembrar do universitário, espera que ela se
afaste para bater na porta. Antes de ouvir qualquer resposta, faz uma pergunta
pra sondá-lo.
-Professora Lavínia tá aí?
-Não... – Fred se recorda do rosto do estudante- Ela não
vem hoje.
-Ah, tá... E você? É aluno novo?
-Não é aluno novo, não- Gabriel os surpreende entrando na
sala dos professores- É o seu novo professor de Português, Felipe.
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