29/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 13

-Garota de programa? Que história é essa agora? Por que você tá mentindo pra mim desse jeito?
-Eu era conhecida com Alice Dubeux. Me prostituía desde os meus quatorze anos. Mas quando eu fui me apresentar pra você, resolvi usar meu nome verdadeiro, pra que você não fosse me procurar, pra que não se decepcionasse com a Alice. No prédio onde eu morava, todo mundo sabia do meu nome. Mas se perguntasse quem era Amanda, ninguém ia te responder. Quando a gente se conheceu, eu tinha dois celulares. Um só pra atender as ligações dos meus clientes.
-Por que você não me disse nada? Por que você não contou naquela época que... Não pode ser...
-Sabe o que eu era considerada na época que a gente se conheceu, Raffael? Acompanhante de luxo. Se você soubesse da vergonha que eu tenho do meu passado...
-Eu nunca pensei que eu fosse sentir isso na pele... Me envolver com aquilo que eu tenho repugnância...
-Agora você entende por que eu tive que me afastar? O que eu podia oferecer a você sendo a mulher que eu era?
-Peraí... Peraí, peraí! Essa história tá muito mal explicada! Você disse, quando a gente terminou, que só chegou perto de mim por causa do meu dinheiro. Se você era prostituta mesmo, o que você ia ganhar me conquistando?
-Raffael... Você vai ter que ser forte...
-Mais do que eu já tô sendo, Amanda? Amanda, Alice, eu nem sei mais o que você é. Estudante de cursinho, médica, prostituta... Será que eu posso ficar mais chocado? O pior não é o que você me contou até agora, mas sim o fato de que mesmo assim, nada mudou. O que eu sentia por você há cinco anos continua do mesmo jeito. Mesmo que eu não tivesse te encontrado de novo, o que eu sinto ainda tá vivo, entende isso...
Raffael acaba sendo interrompido pela recordação da discussão que teve com o pai no dia anterior, e que falava justamente sobre o seu envolvimento com a médica quando eles estudavam juntos.


-Aprende a ser homem, Raffael! Já passou da hora de você deixar de se sensibilizar com qualquer coisa que te digam!
-Homem como quem? Posso saber?
-Olha aqui, você não me provoca!
-O errado aqui é o senhor! Bota isso na sua cabeça!
-Já acabou?
-Não, ainda não! Se o senhor já se esqueceu, eu vou te dizer o que é ser homem. É se importar com o próximo, é ser sincero, é ter hombridade...
-Ah, pode me poupar desse discursinho barato. Você não resolve seus problemas e quer que arque com os delírios que culminaram na morte da sua irmã?
-Que problemas eu tenho pra resolver?
-Você se enfurna debaixo dos livros e não quer saber de namorar, de ter uma mulher, de levar uma mulher pra cama... Se tem uma verdade é aquela que você admitiu pra sua mãe: sem mim, você não seria nada. Só falta admitir essa verdade pra si mesmo.
-A minha vida particular não interessa a mais ninguém além de mim.
-A mim também interessa. Porque a criação que você recebeu não inclui um comportamento de maricas, que se comove, que chora. Filho meu tem que ser macho, entendeu?
-Sobretudo humano!
-Para de palhaçada!
-Pois eu vou dizer uma coisa, Pai: se você tá esperando que eu arrume uma mulher que agrade, antes de mais nada, a você, desista.
-Você se apaixonou uma única vez, pela moça que fazia cursinho com você, e depois que ela sumiu da sua vida, por quem mais você se interessou? Hein?
-Realmente, eu não imaginava que a minha vida sexual foi um prato cheio pra suas insinuações e preocupações. Quer usar isso pra me atacar, Pai? Pois eu vou dizer em alto e bom som: independentemente do que você pensa a meu respeito, eu sei o que é ter uma mulher e sei o que preciso pra colocar uma na minha cama.


-O que foi? Por que você ficou calado de repente?
-Bernardo Mutarelli- ao falar isso, nota o quanto Alice fica nervosa- Ele te pagou, não foi? Ele te pagou pra que eu perdesse minha virgindade, não foi? Fala!
-Primeiro, ele... Pagou as mensalidades do cursinho pra que eu me aproximasse de você. Ele desconfiava de que você não gostasse de mulher e falou comigo. Prometeu que eu seria bem recompensada se... Se eu seduzisse você.
-Não... – Raffael diz em voz baixa, aos prantos.
-Só que quando eu saquei que você realmente queria ficar comigo, eu resolvi encerrar essa farsa. Porque eu me apaixonei por você, Raffael. Mas eu não tinha o direito de estragar sua vida.
-Mais? Mais do que você e ele já fizeram e eu não sabia?
-Por que você tinha que me procurar? Tanto que eu fiz pra enterrar esse passado e agora ele vem à tona!
-Só que, por mais que te doa, eu faço parte desse passado! É... A verdade pode doer, mas você tinha que me contar... – por meio minuto, fica de costas para Alice, que chora bastante, até que vira bruscamente para saber- Antes de eu sair, me diz só mais uma coisa: você ia pra cama com ele quando a gente namorava, não é?
-Não.
-Fala a verdade!
-Eu não ia pra cama com Bernardo quando estava com você! Mas quando ele me contratou, já me conhecia.
-Claro. Tenho que dar os parabéns. Pelo excelente serviço.
-Você não acredita no meu arrependimento, não é?
-Se naquela época eu tinha que me afastar de você, agora mais ainda. O que eu sentia por você até poucos minutos atrás não era nada que eu tivesse experimentado com ninguém. E eu não tô falando de sexo, mas da vontade de ficar junto, como se você fosse uma parte minha. Hoje, eu te agradeço, porque você me ensinou um novo sentimento. Ódio, por você e por ele- destranca a porta e se retira.
Alice fica devastada com a conversa. Pensa em ir atrás do rapaz, mas nem sequer abre a porta. Chora como uma criança a decepção que Raffael teve, borrando completamente a maquiagem.

...

Portando uma maquina de cortar cabelo, Lucas puxa uma cadeira, liga o objeto na tomada e aciona o celular.
-O senhor tá brincando... –diz Kim, incrédulo com o trato.
-Não tô, não. Vem pra cá cortar o meu cabelo, rapaz.
Kim ainda pega a máquina, mas é interrompido pelo pai.
-Que foi? Quer amarelar, é?
-Vamos botar uma música pra não ficar nada triste aqui.
-Bota aquela em inglês, Pai.
-Que música em inglês?
-Sei lá, é uma que não é do jeito que a gente fala. Aquela que tu tava procurando no computador.
-Ah, em espanhol!- Lucas ri da fala do filho. Aquela do Alex- faz referência a um cantor colombiano chamado Alex Campos- Deixa eu procurar aqui, que eu já baixei- ativa o player- Pronto. Começa.
-E se você ficar de mal?
-Vou, nada, Kim. A gente vai cortar o cabelo juntos. Imagina ficar com o cocuruto liso? Os dois? Vai ser um sucesso com o pessoal!
Entusiasmado, Kim ouve a canção e passa a máquina no meio da cabeça do pai, ao que prontamente dá uma risada e até esquece que está debilitado. As outras crianças também acham graça. Lucas se olha num espelho perto da tomada e faz a mesma brincadeira com o filho, que ri bastante. Em seguida, o universitário pergunta se alguma criança tem um celular que possa emprestar enquanto os dois ouvem a canção e tira uma foto do penteado inusitado. Em questão de minutos, tanto Kim quanto Lucas estão sem os pelos da cabeça. No entanto, não se importam tanto com isso, por agirem juntos.
A canção entoada durante o corte de cabelo diz:
-Sentado, esperando o pôr do sol, gritando no lago de um céu azul agradável, essa realidade começa a falar sobre Você. Os primeiros pássaros cantam Sua música, o gramado da estrada é um poema de Sua voz indelével que se formou ao meu redor. Posso Te sentir perto no riso e na dor, quando o coração me salta ao meditar. Estás no profundo de cada respirar. Com as estrelas, me Falas e cada dia sinto que me mostras Tua bondade. Olhando para o horizonte de onde estou, minha imaginação se perde entre as nuvens e uma suave voz começa a me falar de Você. As folhas vão caindo ao meu redor, elas ficam no passado que me magoou e hoje eu posso entender que Cuidas de mim com amor.

...

À noite, Bernardo volta pra casa e encontra Miguel, junto à Yanna.
-Ai, que ótimo. Tio e sobrinha unidos pelo bem-estar da música gospel. O que é? Vão tentar me convencer daquela papagaiada do disco de novo?
-Não é nada disso, Bernardo. É sobre o Raffael.
-Outro problema pra mim. O que foi que houve com ele?
-Ele sumiu, Pai.
-Como foi que sumiu?
-Ele saiu de carro, não me disse pra onde ia, só que ia tirar uma dúvida e que não ia demorar.
-A que horas foi isso?
-Às oito horas da manhã...
-E só agora vocês me avisam isso? A gente tem que colocar a polícia pra ver se localiza o Raffael, ele pode estar em perigo.
-Calma, Bernardo. Você vai ver que Deus não vai deixar o inimigo tocar nele.
-Do jeito que Raffael anda transtornado, o inimigo só pode ser ele mesmo.
-A que se refere?
-Lucas. O negro golpista ataca novamente, e desarmoniza tudo que eu construo. Sabe qual é a novidade? Raffael descobriu que o filho do preto safado tem um linfoma e ficou sensibilizado com a situação da criança.
-E você não fica?
-Sensibilizado o cacete! Ele não sofre agora nem um décimo do que eu sofri quando perdi a Carolina. Já Raffael ficou mexido com a doença do querido sobrinho... Ah, vá!
-O Kim ficou doente e você não disse nada pra mim?
-Contar, Yanna? Tudo que eu quero é esquecer que esse Lucas existe, e vocês ainda querem vínculos?
-Só que o Joaquim é filho da Carolina. É seu neto, inclusive.
-Você está grávida, por acaso? Só assim pra eu ter um neto, porque se depender da disponibilidade do seu irmão...
-Já chega, Bernardo! O Raffael desaparecido e você despejando o seu veneno contra nós dois?
Alguém bate à porta.
-Pode entrar- avisa Yanna.
-Boa noite- chega o segurança da mansão.
-Alguma notícia do Raffael?
-A gente conseguiu localizar o carro do Raffael. Tava no estacionamento da Oncomed.
-O hospital que trata pacientes com câncer? Só pode ter ido visitar o filho do negro. Viu só? Não tem por que se preocupar. Certamente ele quis render o pai e ficou lá cuidando da criança. Perda de tempo e de dignidade, ficar servindo a um afrodescendente.
-Lucas não ia sair de perto do filho. Imagina. Ele não saiu de perto nem da Carolina quando ela tava morrendo.
-Mas o empenho não funcionou, já que ela agora está a sete palmos do chão. Bom, sabendo do paradeiro do Raffael, eu vou me deitar. Estou morto de cansado. Boa noite.
-O senhor não vai esperar por notícias dele?
-Não, Yanna. Só me chamem se for pra algo importante- vai para o quarto.
-Definitivamente, meu irmão está cada dia mais insuportável!
-Agora fica a gente à espera do Raffael, que nem atende o telefone.
-Sabe de uma coisa? Eu vou pra delegacia prestar queixa do desaparecimento do meu sobrinho.
-Eu vou com você, Tio.
-Não querem que eu avise ao Dr. Bernardo?
-Não é necessário. Só precisa chamar o Bernardo se for algo importante, não ouviu? A prepotência dele, no momento, é bem mais importante do que o paradeiro do filho.

...

Osmar e Lucas dormem nas cadeiras da Oncomed e o pai de Kim se levanta, já de manhã, pra ver como a criança está. Cumprimenta-lhe com um beijo na testa.
-Bom dia, meu amor.
-A benção, Pai.
-Deus te abençoe. O que foi?
-Que foi o quê?
-Você levanta sempre a sua mão quando me pede a benção. O que foi?
-É meu braço.
-O que tem ele? Tá doendo?
-Não. Não consigo levantar meu braço.
-Não consegue? Olha pra mim- Lucas parece que, por diversas vezes, a boca do garoto contrai sem que ele diga uma só palavra- Tem alguma coisa doendo em você?
-Não tá doendo nada.
-Será que você consegue se levantar? Tenta sair da cama, Kim.
-Eu não posso. Tô preso.
Cada vez mais aflito, Lucas se afasta do menino e garante.
-Daqui a pouco eu volto. Vou procurar a Doutora Amanda.
-Cadê Vovô?
-Tá aqui fora. Vou dizer a ele pra ficar com você. Não fica nervoso, não, tá? Já volto.

...

Bernardo sai do quarto, pronto pra tomar o café da manhã, até que reencontra Yanna e Miguel na sala, insones.
-Vocês passaram a noite aqui?
-Não. Assim que você subiu pro quarto, Yanna e eu fomos à delegacia prestar queixa pelo desaparecimento do Raffael.
-Ele ainda não voltou? Mas o segurança disse que o carro estava na Oncomed.
-O carro continua lá, Pai, mas já reviraram aquele hospital e nada do Fael aparecer!
A campainha é tocada.
-Tomara que seja ele- Miguel corre para atender, mas é surpreendido pela presença de sua ex-cunhada- Você de novo?
-Não é possível... O que é que você está fazendo aqui, Sílvia? Eu já não deixei bem claro que você não poria os pés aqui dentro da minha casa?
-Melhor entrar sozinha do que acompanhada da polícia!
-Do que a senhora tá falando?
-Senhora? Isso é uma cobra, Yanna, que deu o bote na própria ninhada. Não seja tão educada assim.
-Sua criação é mesmo comovente, Bernardo. Só espero que os nossos filhos não sigam o seu exemplo!
-Olha aqui, são seis horas da manhã, eu ainda nem tomei café e você já chega disparando absurdos?
-Eles não são piores do que o que você fez, seu calhorda!
-Eu vou chamar o segurança... – Bernardo pega o telefone.
-Chama! Chama o Exército, se preferir. Mas se você tocar nesse telefone, pode chamar a polícia também!
-Mas do que é que você me acusa, sua infeliz?
-De ter orquestrado o assalto!
-Assalto? Que assalto, Pai?
-O assalto aos caminhões que traziam as cópias do seu CD, Yanna! Foi Bernardo o responsável pelo roubo das onze mil cópias. Foi ele quem impediu o seu disco de chegar às lojas.

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