-Garota de programa?
Que história é essa agora? Por que você tá mentindo pra mim desse jeito?
-Eu era conhecida com
Alice Dubeux. Me prostituía desde os meus quatorze anos. Mas quando eu fui me
apresentar pra você, resolvi usar meu nome verdadeiro, pra que você não fosse
me procurar, pra que não se decepcionasse com a Alice. No prédio onde eu morava,
todo mundo sabia do meu nome. Mas se perguntasse quem era Amanda, ninguém ia te
responder. Quando a gente se conheceu, eu tinha dois celulares. Um só pra
atender as ligações dos meus clientes.
-Por que você não me
disse nada? Por que você não contou naquela época que... Não pode ser...
-Sabe o que eu era
considerada na época que a gente se conheceu, Raffael? Acompanhante de luxo. Se
você soubesse da vergonha que eu tenho do meu passado...
-Eu nunca pensei que
eu fosse sentir isso na pele... Me envolver com aquilo que eu tenho
repugnância...
-Agora você entende
por que eu tive que me afastar? O que eu podia oferecer a você sendo a mulher
que eu era?
-Peraí... Peraí,
peraí! Essa história tá muito mal explicada! Você disse, quando a gente
terminou, que só chegou perto de mim por causa do meu dinheiro. Se você era
prostituta mesmo, o que você ia ganhar me conquistando?
-Raffael... Você vai
ter que ser forte...
-Mais do que eu já tô
sendo, Amanda? Amanda, Alice, eu nem sei mais o que você é. Estudante de cursinho,
médica, prostituta... Será que eu posso ficar mais chocado? O pior não é o que
você me contou até agora, mas sim o fato de que mesmo assim, nada mudou. O que
eu sentia por você há cinco anos continua do mesmo jeito. Mesmo que eu não
tivesse te encontrado de novo, o que eu sinto ainda tá vivo, entende isso...
Raffael acaba sendo
interrompido pela recordação da discussão que teve com o pai no dia anterior, e
que falava justamente sobre o seu envolvimento com a médica quando eles
estudavam juntos.
-Aprende a ser homem, Raffael! Já
passou da hora de você deixar de se sensibilizar com qualquer coisa que te
digam!
-Homem como quem? Posso saber?
-Olha aqui, você não me provoca!
-O errado aqui é o senhor! Bota isso
na sua cabeça!
-Já acabou?
-Não, ainda não! Se o senhor já se
esqueceu, eu vou te dizer o que é ser homem. É se importar com o próximo, é ser
sincero, é ter hombridade...
-Ah, pode me poupar desse discursinho
barato. Você não resolve seus problemas e quer que arque com os delírios que
culminaram na morte da sua irmã?
-Que problemas eu tenho pra resolver?
-Você se enfurna debaixo dos livros e
não quer saber de namorar, de ter uma mulher, de levar uma mulher pra cama...
Se tem uma verdade é aquela que você admitiu pra sua mãe: sem mim, você não
seria nada. Só falta admitir essa verdade pra si mesmo.
-A minha vida particular não interessa
a mais ninguém além de mim.
-A mim também interessa. Porque a
criação que você recebeu não inclui um comportamento de maricas, que se comove,
que chora. Filho meu tem que ser macho, entendeu?
-Sobretudo humano!
-Para de palhaçada!
-Pois eu vou dizer uma coisa, Pai: se
você tá esperando que eu arrume uma mulher que agrade, antes de mais nada, a
você, desista.
-Você se apaixonou uma única vez, pela
moça que fazia cursinho com você, e depois que ela sumiu da sua vida, por quem
mais você se interessou? Hein?
-Realmente, eu não imaginava que a
minha vida sexual foi um prato cheio pra suas insinuações e preocupações. Quer
usar isso pra me atacar, Pai? Pois eu vou dizer em alto e bom som:
independentemente do que você pensa a meu respeito, eu sei o que é ter uma
mulher e sei o que preciso pra colocar uma na minha cama.
-O que foi? Por que você ficou calado
de repente?
-Bernardo Mutarelli- ao falar isso,
nota o quanto Alice fica nervosa- Ele te pagou, não foi? Ele te pagou pra que
eu perdesse minha virgindade, não foi? Fala!
-Primeiro, ele... Pagou as
mensalidades do cursinho pra que eu me aproximasse de você. Ele desconfiava de
que você não gostasse de mulher e falou comigo. Prometeu que eu seria bem
recompensada se... Se eu seduzisse você.
-Não... – Raffael diz em voz baixa,
aos prantos.
-Só que quando eu saquei que você
realmente queria ficar comigo, eu resolvi encerrar essa farsa. Porque eu me
apaixonei por você, Raffael. Mas eu não tinha o direito de estragar sua vida.
-Mais? Mais do que você e ele já
fizeram e eu não sabia?
-Por que você tinha que me procurar?
Tanto que eu fiz pra enterrar esse passado e agora ele vem à tona!
-Só que, por mais que te doa, eu faço
parte desse passado! É... A verdade pode doer, mas você tinha que me contar...
– por meio minuto, fica de costas para Alice, que chora bastante, até que vira
bruscamente para saber- Antes de eu sair, me diz só mais uma coisa: você ia pra
cama com ele quando a gente namorava, não é?
-Não.
-Fala a verdade!
-Eu não ia pra cama com Bernardo quando
estava com você! Mas quando ele me contratou, já me conhecia.
-Claro. Tenho que dar os parabéns.
Pelo excelente serviço.
-Você não acredita no meu
arrependimento, não é?
-Se naquela época eu tinha que me afastar
de você, agora mais ainda. O que eu sentia por você até poucos minutos atrás
não era nada que eu tivesse experimentado com ninguém. E eu não tô falando de
sexo, mas da vontade de ficar junto, como se você fosse uma parte minha. Hoje,
eu te agradeço, porque você me ensinou um novo sentimento. Ódio, por você e por
ele- destranca a porta e se retira.
Alice fica devastada com a conversa. Pensa
em ir atrás do rapaz, mas nem sequer abre a porta. Chora como uma criança a
decepção que Raffael teve, borrando completamente a maquiagem.
...
Portando uma maquina de cortar cabelo,
Lucas puxa uma cadeira, liga o objeto na tomada e aciona o celular.
-O senhor tá brincando... –diz Kim,
incrédulo com o trato.
-Não tô, não. Vem pra cá cortar o meu
cabelo, rapaz.
Kim ainda pega a máquina, mas é
interrompido pelo pai.
-Que foi? Quer amarelar, é?
-Vamos botar uma música pra não ficar
nada triste aqui.
-Bota aquela em inglês, Pai.
-Que música em inglês?
-Sei lá, é uma que não é do jeito que
a gente fala. Aquela que tu tava procurando no computador.
-Ah, em espanhol!- Lucas ri da fala do
filho. Aquela do Alex- faz referência a um cantor colombiano chamado Alex
Campos- Deixa eu procurar aqui, que eu já baixei- ativa o player- Pronto.
Começa.
-E se você ficar de mal?
-Vou, nada, Kim. A gente vai cortar o
cabelo juntos. Imagina ficar com o cocuruto liso? Os dois? Vai ser um sucesso
com o pessoal!
Entusiasmado, Kim ouve a canção e
passa a máquina no meio da cabeça do pai, ao que prontamente dá uma risada e
até esquece que está debilitado. As outras crianças também acham graça. Lucas
se olha num espelho perto da tomada e faz a mesma brincadeira com o filho, que
ri bastante. Em seguida, o universitário pergunta se alguma criança tem um celular
que possa emprestar enquanto os dois ouvem a canção e tira uma foto do penteado
inusitado. Em questão de minutos, tanto Kim quanto Lucas estão sem os pelos da
cabeça. No entanto, não se importam tanto com isso, por agirem juntos.
A canção entoada durante o corte de
cabelo diz:
-Sentado, esperando o pôr do sol, gritando no lago de um céu
azul agradável, essa realidade começa a falar sobre Você. Os primeiros pássaros
cantam Sua música, o gramado da estrada é um poema de Sua voz indelével que se
formou ao meu redor. Posso Te sentir perto no riso e na dor, quando o coração
me salta ao meditar. Estás no profundo de cada respirar. Com as estrelas, me
Falas e cada dia sinto que me mostras Tua bondade. Olhando para o horizonte de
onde estou, minha imaginação se perde entre as nuvens e uma suave voz começa a
me falar de Você. As folhas vão caindo ao meu redor, elas ficam no passado que
me magoou e hoje eu posso entender que Cuidas de mim com amor.
...
À
noite, Bernardo volta pra casa e encontra Miguel, junto à Yanna.
-Ai, que
ótimo. Tio e sobrinha unidos pelo bem-estar da música gospel. O que é? Vão tentar
me convencer daquela papagaiada do disco de novo?
-Não é
nada disso, Bernardo. É sobre o Raffael.
-Outro problema
pra mim. O que foi que houve com ele?
-Ele
sumiu, Pai.
-Como
foi que sumiu?
-Ele
saiu de carro, não me disse pra onde ia, só que ia tirar uma dúvida e que não
ia demorar.
-A que
horas foi isso?
-Às
oito horas da manhã...
-E só
agora vocês me avisam isso? A gente tem que colocar a polícia pra ver se
localiza o Raffael, ele pode estar em perigo.
-Calma,
Bernardo. Você vai ver que Deus não vai deixar o inimigo tocar nele.
-Do
jeito que Raffael anda transtornado, o inimigo só pode ser ele mesmo.
-A que
se refere?
-Lucas.
O negro golpista ataca novamente, e desarmoniza tudo que eu construo. Sabe qual
é a novidade? Raffael descobriu que o filho do preto safado tem um linfoma e
ficou sensibilizado com a situação da criança.
-E você
não fica?
-Sensibilizado
o cacete! Ele não sofre agora nem um décimo do que eu sofri quando perdi a
Carolina. Já Raffael ficou mexido com a doença do querido sobrinho... Ah, vá!
-O Kim
ficou doente e você não disse nada pra mim?
-Contar,
Yanna? Tudo que eu quero é esquecer que esse Lucas existe, e vocês ainda querem
vínculos?
-Só que
o Joaquim é filho da Carolina. É seu neto, inclusive.
-Você
está grávida, por acaso? Só assim pra eu ter um neto, porque se depender da
disponibilidade do seu irmão...
-Já
chega, Bernardo! O Raffael desaparecido e você despejando o seu veneno contra
nós dois?
Alguém bate
à porta.
-Pode
entrar- avisa Yanna.
-Boa
noite- chega o segurança da mansão.
-Alguma
notícia do Raffael?
-A
gente conseguiu localizar o carro do Raffael. Tava no estacionamento da
Oncomed.
-O
hospital que trata pacientes com câncer? Só pode ter ido visitar o filho do
negro. Viu só? Não tem por que se preocupar. Certamente ele quis render o pai e
ficou lá cuidando da criança. Perda de tempo e de dignidade, ficar servindo a
um afrodescendente.
-Lucas
não ia sair de perto do filho. Imagina. Ele não saiu de perto nem da Carolina
quando ela tava morrendo.
-Mas o
empenho não funcionou, já que ela agora está a sete palmos do chão. Bom,
sabendo do paradeiro do Raffael, eu vou me deitar. Estou morto de cansado. Boa
noite.
-O
senhor não vai esperar por notícias dele?
-Não,
Yanna. Só me chamem se for pra algo importante- vai para o quarto.
-Definitivamente,
meu irmão está cada dia mais insuportável!
-Agora
fica a gente à espera do Raffael, que nem atende o telefone.
-Sabe
de uma coisa? Eu vou pra delegacia prestar queixa do desaparecimento do meu
sobrinho.
-Eu vou
com você, Tio.
-Não
querem que eu avise ao Dr. Bernardo?
-Não é
necessário. Só precisa chamar o Bernardo se for algo importante, não ouviu? A
prepotência dele, no momento, é bem mais importante do que o paradeiro do
filho.
...
Osmar e
Lucas dormem nas cadeiras da Oncomed e o pai de Kim se levanta, já de manhã,
pra ver como a criança está. Cumprimenta-lhe com um beijo na testa.
-Bom
dia, meu amor.
-A
benção, Pai.
-Deus
te abençoe. O que foi?
-Que
foi o quê?
-Você
levanta sempre a sua mão quando me pede a benção. O que foi?
-É meu
braço.
-O que
tem ele? Tá doendo?
-Não.
Não consigo levantar meu braço.
-Não
consegue? Olha pra mim- Lucas parece que, por diversas vezes, a boca do garoto
contrai sem que ele diga uma só palavra- Tem alguma coisa doendo em você?
-Não tá
doendo nada.
-Será
que você consegue se levantar? Tenta sair da cama, Kim.
-Eu não
posso. Tô preso.
Cada
vez mais aflito, Lucas se afasta do menino e garante.
-Daqui
a pouco eu volto. Vou procurar a Doutora Amanda.
-Cadê
Vovô?
-Tá
aqui fora. Vou dizer a ele pra ficar com você. Não fica nervoso, não, tá? Já
volto.
...
Bernardo sai do quarto, pronto pra tomar o
café da manhã, até que reencontra Yanna e Miguel na sala, insones.
-Vocês passaram a noite aqui?
-Não. Assim que você subiu pro quarto, Yanna
e eu fomos à delegacia prestar queixa pelo desaparecimento do Raffael.
-Ele ainda não voltou? Mas o segurança disse
que o carro estava na Oncomed.
-O carro continua lá, Pai, mas já reviraram
aquele hospital e nada do Fael aparecer!
A campainha é tocada.
-Tomara que seja ele- Miguel corre para
atender, mas é surpreendido pela presença de sua ex-cunhada- Você de novo?
-Não é possível... O que é que você está
fazendo aqui, Sílvia? Eu já não deixei bem claro que você não poria os pés aqui
dentro da minha casa?
-Melhor entrar sozinha do que acompanhada da
polícia!
-Do que a senhora tá falando?
-Senhora? Isso é uma cobra, Yanna, que deu o
bote na própria ninhada. Não seja tão educada assim.
-Sua criação é mesmo comovente, Bernardo. Só
espero que os nossos filhos não sigam o seu exemplo!
-Olha aqui, são seis horas da manhã, eu ainda
nem tomei café e você já chega disparando absurdos?
-Eles não são piores do que o que você fez,
seu calhorda!
-Eu vou chamar o segurança... – Bernardo pega
o telefone.
-Chama! Chama o Exército, se preferir. Mas se
você tocar nesse telefone, pode chamar a polícia também!
-Mas do que é que você me acusa, sua infeliz?
-De ter orquestrado o assalto!
-Assalto? Que assalto, Pai?
-O assalto aos caminhões que traziam as
cópias do seu CD, Yanna! Foi Bernardo o responsável pelo roubo das onze mil
cópias. Foi ele quem impediu o seu disco de chegar às lojas.
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